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cantar trovoadas ao som da chuva, o som dos passos, o caminho e o caminho, cajados são bastões de peregrino, são bengalas de cartolados, caminhos são diferentes, mas o som é o mesmo, do pau na calçada, granizo, trovoada

Disclaimer

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Disclaimer:

Social situations may enhance the probabilities of self-harm, depression, self-loathing, mutilation, vomits, mental disorders, anxieties, hyperventilation, overdose, numbness, starvation, low self-esteem, repression, inferiority, heartache, smoking, alcohol consumption, drug consumption, addiction, self-destruction, auto-inflicted burns, mutilation, torture, and may, in extreme cases, provoke suicide. Please, contact your doctor or hospital in case of suicidal thoughts. There's nothing they can do, really, but they'll give you self-help helpless books, numbing addictive pills, hopeless advice, rehabilitation in pain, brain scans to tell you that you are normal, electroshock to tell you that you are normal, mental hospitals full of normal people, un-comforting comfort, illusions of hope, dreams regulations, ideas restrictions, barking dogs, company of misunderstanding, extravagant bills, and the ultimate guarantee that what you are going through is normal, feels normal, and that millions of people got over it.

 


Paredes caladas

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Faz de conta que nos cruzámos no metro,
e que tu ias a ler aquele meu livro preferido e eu te quis falar,e não disse nada.

Faz de conta que nos cruzámos outra vez no metro,
e tu ias a ouvir qualquer coisa um pouco alto demais,e eu não conhecia, mas quis-te perguntar,e não disse nada.

Faz de conta que hoje não nos cruzámos no metro,
e eu amaldiçoei todos os dias em que não te disse nada.

E amanhã, se te vir,
terei coragem para te falar?

Nem sequer está bem escrito

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Nem tem a força das palavras desenhadas na parede.

Nem tem a simplicidade da poesia.

Nem faz muito sentido, se calhar.

E a mesma voz que me diz, "arrisca, atreve-te", é a que me manda sentar.

E é o mesmo amor que não faz sentido,
porque meia dúzia de palavras não são nada.
E a cegueira é a mesma cegueira que noutros dias faz sorrir,
que noutros dias faz sonhar,

E só porque ele gosta das mesmas tretas que tu,
não o faz teu amigo para uma vida.

E só porque alguém é simpático para ti,
não cria um elo especial de sorrisos entre ambos.

E só porque tu achas que sim,
não quer dizer que haja um dia mais que um sonho tolo, mais que este sonho tolo,

Mas neste momento, agora mesmo,
estou bem capaz de te dizer,
entre ter-te assim, e nunca mais te ver,
casavas-te comigo?


(enfim, para que te mostro isto, se nem sequer está bem escrito)

A cor das Joanninhas

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Quero falar-te dos dias de tempestade. Dos dias em que acordo de um sonho para um pesadelo. Quero falar-te das ondas do mar, e como num dia te elevas na crista, para no outro te afogares no peso da rebentação. Da espiral que começa lenta e calma, e que cada vez te leva mais depressa para o fundo do poço, e só te dás conta quando já não podes sair. Quero falar-te do quanto os olhos pesam o dobro, do quanto o céu pesa o triplo, do quanto sair da cama pode ser adiável, para daqui a uma hora, para daqui a duas, para amanhã. Quero falar-te de como a cara dói quando tentas sorrir, porque até sorrir magoa. 
Quero falar-te daquele teste, no primeiro ano, onde comecei a chorar, mas não por causa do teste. Quero falar-te daquela aula, no segundo ano, onde comecei a chorar e ninguém deu conta. Quero falar-te daquele laboratório, no terceiro ano, de onde saí para ir à casa de banho, para abrir os pulsos em sumo de morango.
Quero falar-te dos dias em que a dor física doía menos que a amargura no meu coração. Daqueles em que os meus braços, o meu corpo, eram campos de batalha, de um ódio enraizado e um desespero transbordante. Quero falar-te de todas as vezes em que achei divertido o efeito alucinante da bebida com a medicação. Quero falar-te daquele dia em que tomei um, e tomei dois, e tomei três para ser feliz, e tomei quatro, e tomei cinco, e tomei seis, e somei sete, e ao fim já eram oito os que contaste, quando foram nove, e talvez dez, e até onze, e só parei nos doze porque já não tinha mais comigo. Quero muito falar-te desse dia, porque me salvaste, quando eu não queria ser salva. Quero falar-te das misturas, das buscas em casa por todo o tipo de drogas, e da pequena lata-bomba, guardada para emergências. Quero contar-te das vezes em que lancei tesouradas no cabelo, para não ser na carne. Quero contar-te de todas as vezes em que levei os dedos à boca sem querer saber. Quero falar-te daqueloutra vez em que o álcool foi demasiado abaixo com os comprimidos, e quem sabe não foi a segunda vez que tentei. Quero dizer-te de todas as vezes que fui para a cama por um beijo, por um abraço, porque penso assim tão pouco mais de nada de mim.
Quero falar-te de cabelos louros e olhos azuis, há tantos anos, afundados numa tristeza demasiada, e não conseguir fazer nada para ajudar a pessoa que mais amei no mundo. Quero falar-te de cabelos morenos e olhos castanhos, que hoje vi, e que são iguais àqueles azuis, e que são iguais àqueles que vejo ao espelho, e saber que não posso fazer nada.
Quero falar-te das músicas, dos livros, dos filmes, das pessoas, dos momentos virtuais que me ajudaram a aguentar nos piores momentos, e a sair, degrau a degrau, a escada infinita do fundo do poço.
Do fundo do poço, quero contar-te como a vida não volta a ser a mesma, porque agora viste o fundo. Do fundo do poço, não te quero nem falar.
Do cimo do poço, quero dizer-te o que nunca me disseram, como é difícil o intermédio, com um buraco aos nossos pés, a ameaçar puxar a qualquer momento. Quero contar-te dos meus passos inseguros e vagarosos para me manter à tona da água. Quero falar-te das coisas pequenas, da respiração devagar, de tudo a que me agarro para ir em frente, como uma corda invisível, e tentando esperar que me leve ao sítio certo.
Quero explicar-te que as minhas lutas ainda não estão vencidas.
Mas quero dizer-te que, um dia, o escuro torna-se luz, e respirar é fácil outra vez.

Esgotamento Vocabular

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Eu conheci o homem da minha vida, catorze vezes, talvez mais, se as contar, se as conseguisse contar. Em momentos como esse, um olhar, uma palavra basta, de súbitos presos. Às vezes, dura meses, outras vezes dias.
Conheci catorze homens da minha vida e cada um deles o foi, numa vida paralela, só na minha imaginação.
Um dia, esgotámos todas as palavras para dizer o que sentimos. Abusámos delas, sem lhes conhecer o significado. Um dia, contentámo-nos em ter sempre mais dinheiro, a subir sempre mais alto, mas esquecemos o que é subir nos sentimentos. Onde as palavras que gastamos acabam, acaba o mundo, acaba a ambição. Perdemos o "gosto de ti" da infância, que valia por cem "amo-te" que possamos dizer agora. E a nossa cabeça anda às voltas, enquanto nos "apaixonamos", um dia esgota-se-nos o vocabulário e não pedimos mais, sem saber que podemos mais.
Já encontrei a minha alma gémea em centenas de bares, em incontáveis noitadas, de cada vez mais certa de que tinha encontrado aquela pessoa, a pessoa certa, com quem partilhar mais que beijos e carícias, uma manhã no baloiço, um chá ao adormecer, uma série demasiado longa. De todas as vezes, tive tão forte certeza, sem querer saber mais, ou, sabendo o suficiente, achei que já sabia tudo.
Um dia, não pedimos mais nada, porque conhecemos aquela pessoa simpática, porque lhe dizemos "amo-te" e acreditamos piamente no que dizemos, porque brincamos com a nossa cabeça até nos convencermos que é verdade. E, no final, ficamos com aquela pessoa simpática, porque ela disse "também te amo" e porque é simpática e porque nos convencemos do que dizemos. No final, assentamos com a pessoa simpática, no nosso final feliz, só para dizermos que conquistámos qualquer coisa, encontrámos a vitória no amor e na união, riscámos uma tarefa da lista, agora só falta o dinheiro e o emprego, e a casa grande.
Um dia, sentimo-nos cansados e não sabemos porquê. Gastámos os amos-te, com os anos e a falta de paixão, e a pessoa simpática ao nosso lado não é mais que um hábito.
Um dia, encontramos a pessoa da nossa vida, uma daquelas catorze com quem trocamos frases e olhares e sabemos que lhe pertencemos. Falamos com ela, com calma, porque assentámos, e tornamo-nos grandes amigos.
Um dia, gastámos o vocabulário, antes de as sensações serem todas descobertas e, no dia seguinte, ficamos sem palavras que acarinhem o que sentimos agora. Um dia, julgámos amar demasiado cedo.

Depressão Pós-Depressão

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Depressão Pós-Depressão
(aquilo de que ninguém nos avisou)

É mais um dia de viagem, da viagem inevitável que passo a semana a adiar, com medo de qualquer coisa que não existe. Já parece que passaram semanas desde a última, quando escrevi aquela carta num guardanapo, num misto de desespero e de melancolia, uma espécie de pedido de ajuda que ninguém vai ouvir - e que ninguém pode ajudar. Hoje, enquanto estendo a roupa, peça por peça, e dou uma entrevista imaginária, penso na depressão, que um dia esteve tão presente, ou todos os dias desde há três anos, agora sim, três anos e meio (e uma semana). Ainda os conto, aos dias, às semanas, aos meses, agora aos anos desde que perdi tudo. A esta hora, a 16 de Novembro de 2009, chovia intensamente e eu estava para apanhar o comboio nocturno até casa. Entrei com um sorriso no comboio, saí com um peso no peito e lágrimas incontáveis, e algo que não sabia bem o que era. Foi aí que a guerra começou.

Agora, olhando para trás, vejo os dias com terapia, sem terapia, com depressão, sem depressão, com medicação, sem medicação, com uma clareza infinita. Aqueles dias em que lutei, em que não precisei mais de lutar, cada dia, cada acção, teve  uma resposta no meu cérebro. Um dia, deixei de viver, de pensar, de lutar. Limitava-me a estar e a receber toda a dor insuportável, sem pensar muito dela, porque pensar implicava sentir cada golpe com uma intensidade incrível. Afinal, de que nos serve pensar?
Os dias da depressão vieram e ficaram, e, hoje, olho para a romantização e preconceito para com a doença. As pessoas diziam-me para ir correr, para sair de casa. Belo. É doloroso olhar para trás e saber que todas essas pessoas não me podem ajudar. É como dizer a alguém que tenha cancro para ir correr e sair de casa, na esperança de que a doença desapareça, como que por magia. Não há magia. Não há ajuda. Nem o psiquiatra pode fazer-nos ultrapassar, se bem que torne a dor um pouco mais suportável, quando é demasiada. Consegue ajudar-nos a deixar as noites de insónias, mas tudo o resto é trabalho nosso. Gritamos por ajuda, mas estamos presos no nosso próprio corpo. Não há nada de bonito ou fácil na depressão.
Porém, um dia, a dor desaparece. Um dia, conseguimo-nos levantar da cama, conseguimos vestir-nos com energia, tomar banho, sair de casa. Conseguimos querer alguma coisa, fixar objectivos. No entanto, tão depressa como aparece, estes espasmos vão embora. Esta é a pós-depressão, aquela de que ninguém nos avisa. A minha primeira vez foi no verão de 2010. Deixei os comprimidos, depois de mais de meio ano presa a eles, fiz os exames, comecei em férias. No ano seguinte, fui viver para Coimbra. Então, em Janeiro de 2011, recomeçou. Como se volta a uma depressão depois de sair das garras, do fundo do poço? Não tinha a certeza, mas, quando em Fevereiro voltei a perder tudo, já não queria saber. Eu *merecia* aquela bem dita depressão. Como raio conseguiria sobreviver sem ser debaixo dos lençóis e sem pensar em nada? Durante o verão, as coisas não melhoraram. Apesar de ser só uma ligeira sensação, não tão forte como a primeira vez, nada mudava.
Já em Setembro, a vida começou a dar frutos positivos. Um exame de época especial que resultou num 15, um novo ano, colegas de casa fantásticas. Estava a caminho da felicidade, da normalidade, outra vez. Estava outra vez na pós-depressão - e, em breve, ia voltar aos calabouços da minha mente. Muito em breve. Fins de Outubro, inícios de Novembro, voltei a faltar às aulas, a cortar-me na casa de banho. Talvez em Março, a minha mãe arranjou-me anti-depressivos leves, e eu tentei fingir que as coisas estavam a melhorar.
A primeira vez que me tentei matar, foi a 19 de Junho de 2012. Depois disso, ao ver-me tão desesperada, voltei ao psiquiatra.
A minha última consulta foi em Dezembro e, no início de Abril deste ano, já tinha deixado totalmente a medicação - outra vez.

A vida estava melhor, tenho de dizer. Eu a viver em Guimarães, num mestrado com os colegas mais fantásticos que alguma vez tive. Sim, o mestrado não era exactamente aquilo que eu queria, mas há coisas piores. Já tinha meio ano, um semestre feito. Só faltam mais 6 cadeiras. Deixei os comprimidos. Não me sinto deprimida, raios.
Então, porque quero desistir?
A depressão pós-depressão não está nos folhetos de aviso à entrada dos dentistas. E qualquer pessoa assume, o cancro não metastizou, foi completamente erradicado do teu corpo - a guerra acabou - está tudo bem, certo? Claro que está tudo bem. Então, porque quero desistir?
A depressão pós-depressão é aquela letargia, aquelas tentativas. É quando voltar ao mundo real dói. Foi aí que estive tantas vezes, sem saber, e voltei à depressão. A depressão pós-depressão é como estar numa cidade destruída pela guerra. A guerra acabou, mas não sobrou pedra sobre pedra. Essa cidade é a nossa cabeça. Temos de reconstruir tudo outra vez. Pedimos ajuda. Queremos ir para fora, para longe, recomeçar, como se o problema fosse o mundo e não fomos nós próprios. Agarramo-nos com uma força incrível às pequenas alegrias, que acabam demasiado depressa, porque o mundo, se não queria saber da depressão, também não quer saber da estúpida impatológica depressão-pós-depressão.
Estendo a roupa, peça por peça, com cuidado, acarinhando o sol, enquanto penso em tudo isto. Ouço e vejo os pássaros, tento descobrir com cuidado a origem de cada canto, cada bico aberto, com alegre simpatia. É primavera, mas sei demasiado bem que as minhas depressões não são sazonais. Estar na pós-depressão é como um preso que, depois de 20 anos a cumprir a pena, descobre um mundo totalmente diferente e não sabe o que fazer nele. A prisão pode ser o que é, mas, ao menos, é o mundo conhecido, por 20 anos. É claro que ele quer voltar.
É claro que eu quero voltar. Dou-me em voltas com perguntas que não sei como formular, quero desistir do mestrado e fugir para uma cidade desconhecida, e fazer um trabalho simples, limpar um supermercado, qualquer coisa com um horário fechado, sem trabalho para casa, para chegar e escrever, ter ideias enquanto trabalho e escrever um livro quando acabar. Uma vida com o mínimo de preocupações, até estar pronta a ter responsabilidades, uma vez mais. De momento, estou inapta a ter responsabilidades. Não estudo. Não faço os trabalhos. Não me junto ao grupo. Vou a casa sempre que consigo, mesmo que tenha coisas marcadas. Choro nos braços da minha mãe, sem conseguir compreender porquê. Mas hoje, hoje compreendo, e sei que só dependo de mim. Que ninguém me conseguirá dar ajuda. Não sei o que fazer, mas precisava que os outros compreendessem. Precisava de congelar a matrícula este ano, mas não posso. Não me importo de não acabar o mestrado. Neste momento, não me importo com nada, a não ser tentar não regressar ao estado depressivo.
Repito-me mil vezes. Pergunto-me quando escrevi cada texto, se estava ou não neste estado, se foi a depressão ou a pós-depressão que me escreveu O Chapéu e o Pássaro, o Rapaz da Bicicleta. Setembro de 2010, Agosto de 2011: pós-depressão. Guardo esperança. Enquanto aqui, talvez consiga continuar a escrever. (Topiramato: pós-depressão, quase); (Diários da Avó Velha: Setembro de 2012, pós-Santiago, pós-depressão)
Ao menos isto, conseguir escrever. Conseguir esquecer. Voltar ao que já escrevi e ser o que sempre fui.

My First Kiss

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Tricky. Because I'll have to tell you a love story.
So I'm turning 10. I meet this girl. She's a little bit awkward but so do I and one day we start to talk. And we do get along pretty well. Though we don't like exactly the same things, we seem to the world and people through the same perspective. We sort of connected, right there. We played together, invented games and new worlds and crazy stories together. One of the most intense and magic things was that most of the time we didn't even have to talk. Like we were brain-connected, thought-connected.
I'm 13. I'm young. We're colleagues again. We're the best mates. We soon discover that everything we didn't share with each other (reading habits, musical taste, etc) we now did! She sits just right behind me in classes and I'm glad for that. Her hands are soft. Her eyes are pure passion, sky-ish blue.
I'm 14-15. High school is starting and she's there, beside me, all the time. We share everything. We laugh without having to explain things to each other. She's my best friend and deep down, she's my soul mate. High school without her would have been awful.
I'm 16. I've never kissed anybody. I've never been in a relationship - and neither has she, so she tells me. We're both single and virgins and except for my occasional crush we don't care about it that much.
But one day, it strikes. She didn't tell me, and you need to understand, she had her reasons, she wanted me to be her best friend and not to see her as everyone else did from that moment, she wanted to protect me and also to protect herself: but the truth slapped me in the face. First, I wasn't sure, I would tell myself it wasn't true. Even when the depression started to take her down: I would try my best to make her smile, to make her laugh, to be the same around her.
But, you know, it was true. She had been raped. We were 16, she had been raped. And she has this older sister and they're fighting all the time and she also has this uncomprehensive mother who always yells at her for the smallest things, even when I go with her. And she has this father who she loves so, but he's divorced and away and doesn't really care that much for her.
You know, I want to help her. I try to believe her when she says the cuts on her wrists were accidents. I try to make her days better for simple things. I want to grab her and pull her out from depression, but I also know I have no idea how it is to feel what she's been through.
And one day, we're 17. I invite her out to the beach. It's early summer, not too hot, but good enough to swim.
We had the most amazing time together, swimming, laughing, holding hands, holding tight. We go home. At night, I lay by her side. She's asleep because of the depression pills. I look at her. She's like an angel, breathing softly, by the moonlight. I turn my head near her face. I won't admitt it, not even to myself, but I want to kiss her. I want to kiss her so bad and close her wounds and fix her soul and tear up the pain. I want her. Just there. Maybe holding hands. I want to give her a soft kiss on her lips.
But I ask myself: will she allow it? Will she thinks that I'm mocking her? Will she take it so badly after what happened to her? How can I do it? Though I love her so deeply from the bottom of myself, how can I do it?
And I don't.
And then holidays pass by, college begins. In Portugal, we have all kinds of traditions regarding the freshmens, so I didn't have much free time.
I'm almost 18. One week left. And 9 days left to her 18 birthday, also. I planned to write her about how everything was going on and how much I loved her. I'm on a train back home thinking about nothing.
I see some old high school colleagues sitting near me. I wave to them and watch the rain.
Soon, I hear my name. One of the boys comes towards me, kneels beside me and tells me with the most peaceful and kind voice (bad sign, because he's the mocking clown since ever), that my best friend, my soul mate was gone. Killed herself.
And, you know, my world fell apart right then. But this isn't about my depression.
And then there's the funeral. I planned to ignore everyone and kiss her goodbye right on the lips. My last goodbye. My first kiss. My mom told me not to look to her in the coffin, but I planned otherwise all along. It was my only shot. I gather myself. I would have to be brave. Balls, I longed for that kiss! I was almost 18 and had kept myself waiting for the right person, the right kiss. It was a big deal, you know?, far more big than sex.
Well, I get there, but I acknowledge how she had died: she jumped off a building. And in those cases there's no open coffin because... you know.
Next day, I talked with a kinda friend, 8 years older than me, for help, because he also had a friend who killed himself. We talked a lot. And, before I knew what was happening, he kisses me. It lasted long, because I didn't know what to do. I was torn apart, dying inside and astonished. I just waited until it was over. God, it was bad. I kept telling myself that wasn't happening. After that, I couldn't talk. I didn't talk for 20 minutes, the time that took us to get to the train station. I couldn't say a thing.

You know, he didn't knew it was my first kiss. I was a 4-days-till-18 girl. He just wanted to give me some comfort, some caring - and just did the opposite.

There you go. My big love. My first kiss. All tangled.

Esperando que a chuva passe (que tudo passe)

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Ela chegava às quintas a Guimarães, às vezes de expresso, outras de comboio. Vinha de Coimbra, de mala, mochila e portátil e quem lhe acompanhasse o percurso teceria a história habitual: jovem estudante em Coimbra, regressando de fim-de-semana, esperando no shopping que alguém a venha buscar. A verdade, porém, ironiza esta ideia. A jovem vive, afinal, numa vila, para os lados de Coimbra, e está a tirar mestrado, na Universidade do Minho, em Guimarães, com aulas às sextas e sábados, apenas. Está ali, sozinha, mas ninguém a virá buscar. O que ela espera não é mais que a chuva passe, para iniciar a escalada até ao castelo - e até ao quarto alugado.
Quando começou, com o desespero, a perspectiva de vir a ter de ficar em casa um ano, ainda a pesar e sussurrar, não cabia em si de contente. Nervosa, conheceu os colegas de casa e os colegas de turma. Ambientou-se, pôs-se nos eixos: seguiu em frente. Então, de súbito, tudo começou a descarrilar.
A princípio, culpou a depressão, para a qual estava a ser tratada. Lidava com a frustração que o mestrado lhe trazia, dizendo, para si mesma, "também isto há-de passar". Afinal, também na licenciatura sentira aquele desalento, aquela vontade de fugir.
Porém, quando, meses depois, já se sentia livre das garras da nuvem escura no seu interior, o desalento continuava e algo bastante novo - coisa que não lhe passara pela cabeça durante a licenciatura - dava ares de emergir, aos poucos: uma vontade irreprimível de desistir do mestrado, precisamente quando já era demasiado tarde.
As cadeiras do 2º semestre estavam a ser, uma por uma, deixadas para trás. Nos trabalhos de grupo, metia os pés pelas mãos e deixava a timidez tomar conta. Estudar para os testes era tempo perdido, passados cinco minutos, não se lembrava de nada do que tinha lido. Nada dava ares de passar. A matrícula não podia ser congelada.
Sentia-se presa. Começava a afastar-se daqueles que conhecera. Em casa, preferia resguardar-se no quarto e não dar sinais, sequer, de estar em casa, para não falar com os simpáticos rapazes, com quem já partilhara histórias, jantares, noitadas, limpezas, gargalhadas e tudo o mais que se consegue numa casa de estudantes. No seio da turma, era fácil não dar nas vistas, nunca dera. Porém, o seu coração sempre estivera com aquelas 13 personalidades, tão únicas à sua maneira, tão especiais e tão marcantes. Agora, começava a pôr-se de lado, a ouvir menos para não ter de ouvir, a enterrar-se na cadeira, a desaparecer como uma vela no fim da noite.
Em casa, com os pais, a pressão não se tornava mais fácil. "Queres ou não queres?, Fazes ou não fazes?" eram perguntas impostas cada vez que o assunto vinha à baila. No entanto, ela sabia que a forma de todo aquele assunto não era assim tão linear. Eu não gosto daquilo. Talvez consiga fazer tudo, tenho capacidades para fazer tudo, mas estou a desgastar-me por cada coisa. Desgasto-me de cada vez que não consigo fazer um integral de cabeça, de cada vez que a lei de Ohm não é óbvia à primeira. As pequenas coisas que me são importantes e que vou esquecendo dão cabo de mim. Mas já gastámos todo o dinheiro no quarto e nas propinas e independentemente do que vocês digam eu não consigo tirar esse peso de cima. E o problema é se depois não acabo tudo e tenho de ficar mais um ano, longe, a tentar acabar esta merda - mais um ano de quarto e de propinas e de frustração. Eu sei que sempre fui uma boa aluna, mas nunca não ser boa aluna teve tais implicações. Não sei onde estou. Estou perdida. Não podia responder. Não sabia responder. E o assunto esgotava-lhe as energias.
Era nisto que matutava naquela tarde, enquanto mastigava a fatia de pizza e bebericava a 7up. O que pensariam aqueles que com ela constantemente se cruzavam e a viam rabiscar um pedaço de guardanapo?
Foi então que Adriana formulou e pôs por escrito o que nunca imaginara proferir:

"As coisas eram mais fáceis com a depressão."

~ Esperando que a chuva passe
(que tudo passe)
16.o5.2o13

Adriana Gaspar

Guimarães

Outro bilhete de eterno adeus

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Se hoje morrer, quero pedir desculpa por tantas coisas:
por livros que não li;
por livros que não escrevi;
pela pessoa que seria nos anos futuros - e que sei que seria boa pessoa, sei que seria eu;
por ser tão fraca que não aguente a pressão, as pequenas coisas que vão acumulando com as grandes e fazem mundos desabar.

Se hoje morrer, tenho de acrescentar uma verdade:
estava destinado,
já há muito,
muito antes de tudo cair por terra,
já que em pequena me perguntava,
"porquê eu? por que vim a nascer e não qualquer outra pessoa no meu lugar, qualquer outra consciência?"

Se hoje morrer, nunca fui forte, a não ser quando lia, quando vivia na minha imaginação, quando fugia para o único mundo que conhecia.

Se hoje morrer é porque nunca fui feita para viver.

A Mid-Night Poem

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They said those who kill themselves are weak
So I cutted, instead

They said those who cut are weak
So I took pills instead

They said those who take medication are weak
So I ate instead

They said those who eat are weak
So I puked instead

They said those who puke are weak
So I starved instead

They said those who starve are weak
So I fell in love instead

They said those who fall in love are weak
So I cried myself to sleep instead

They said those who cry are weak
So I killed myself instead

Reflexos Humanos

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Sei bastante bem quem eu sou: um ser apreciador da natureza, das formas, das interacções do mundo e do universo, de todas as coisas. Eu vejo a água a luzir ao sol, do mesmo modo que o fumo a trovejar de uma chaminé. O sabor do café. A calma e ordem de uma montra de bolos, de uma pastelaria antiga. Todas as coisas têm o seu sabor e a sua intensidade, cada experiência é única, intocável - e eu quero descrever todas. É por isso que adoro ver desenhos, a expressão de uma visão, e quero repeti-los e também eu expressar as minhas visões. É por isso que adoro música e tento tocar o máximo que consigo, sem fazer qualquer esforço, apenas expressando-me, e, principalmente, é por isso que leio - e que escrevo, em absoluto, tudo o que toco, tudo o que penso, numa tentativa de encaixar toda esta maravilha num singelo texto, frase, livro. A tarefa pode parecer impossível, mas basta-me captar um pequeno vislumbre para conseguir espantar e deslumbrar - primeiro, a mim mesma, depois, aos outros. Cada pequena insignificância tem a sua expressão, em palavras, em música e em desenho. Em teatro, em dança, em vídeo, em filme. A arte, apesar de distorcer o que os olhos vêem, clarifica o que vê a mente. Sem ela, expulsamos e ignoramos os nossos próprios sentimentos, as emoções, as nossas verdadeiras visões, e tornamo-nos completamente vazios. Sem ela, somos máquinas, autómatos, que, por mais que tirem fotografias perfeitas ou toquem sonatas nos tempos certos, não sentem, não vivem, não são mais que pedaços programação e não poderiam nunca ser mais do que isso. Nós vamos cada vez mais esquecendo de onde viemos e assemelhando-nos cada vez mais com eles. Dominamos a ambição, a ganância.

A humanidade dos dias de hoje faz-me aflição, uma aflição danada.

Mas, depois, aparecem-me pessoas, pessoas, e eu volto a sorrir, porque o mundo é uma coisa linda.

Declarações de Guerra

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Declaramos guerra um ao outro, ali mesmo, no momento em que nos fitamos, ou, talvez, no momento em que um de nós arremessa uma troça, ou, ainda, quando acontece tropeçarmos no caminho um do outro, fingindo que não nos demos conta. Entregamo-nos à assaz batalha, batemos com os punhos, com os braços, com a mão aberta, com as unhas, agarramos cabelos, pedaços de carne, parecemos dois gatos, a bufar, a guinchar, a gritar, a rir, a fugir, porque o primeiro riso é o primeiro gesto de rendição, já escorrego e caio, já escondo a cara e viro-me para enfrentar a minha pena, repito o que disse, "Julgas que me metes medo?", e sorris e eu insisto em debater-me até ao fim da batalha, já mais que perdida em meios sorrisos, em meios carinhos, ainda tenho forças e levanto-me, mais uma vez, persisto em agarrar-te os braços que me agarram pacientemente, levo-te as mãos doces ao rosto e aninho-me nelas, toco-as com pequenos tímidos beijos e ainda finjo que ainda não perdi, "Julgas que me metes medo?", guardo-te os braços atrás das costas e tu aproveitas a proximidade para colares o teu peito ao meu e beijares-me a testa, e aproveitas cada hesitar meu para libertares os braços e me apertares com força, mas eu não me dou por vencida, tento dar-te pequenos empurrões nos ombros, a esconder os sorrisos, e tu segredas-me ao ouvido, "Julgas que me metes medo?" e beijas-me o sorriso escondido.

Negrito

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Já me levantei às cinco da manhã e fiquei a ouviu o bater da chuva na calçada, de hoje, de amanhã, dos dias que virão. Há pássaros pequenos que não se importam das gotas gordas, aproveitam o banho para ir à caça das migalhas. Eu nem me consigo levantar da cama. Aquelas ovelhas e aqueles galos e até mesmo as vacas que pastam não têm doenças mentais, não têm de tomar os comprimidos às horas certas. A pergunta é, queres ficar bem? A pergunta é, queres deixar de ser quem és? Queres abandonar a rapariga, a menina que, no casamento, despiu a camisa, desatou o cabelo, descalçou os sapatos e acarinhou a água? Queres deixar de ser a paixão do dono do café? Queres não ser especial para o fotógrafo do casamento? Que importa se os outros te acham estranha? Que importa se o rapaz da bicicleta não parou naquele dia, mas parou no teu texto e veio falar contigo? Que importa se o rapaz da bicicleta, o mesmo que gostou do teu desenho, não gosta realmente de ti - porque não tem motivo nenhum para gostar e és tu que crias todos estes fantasmas na tua cabeça.
Voltando aos cavalos, ao mato, a ouvir a chuva. A ouvir o esgoto, como uma cascata, debaixo dos nossos pés. Voltando à terra tenra. À terra verde. A andar no meio dos plátanos, acariciá-los. Tudo o que eu escrevo é uma confusão, mas passo a mão pelos troncos, enquanto passeio, enquanto piso o chão que piso, com a agilidade de quem voa em sonhos, aquele voar sem certeza, sem ligeireza, só com a crença de voar, de quem cai ou não cai, de quem pode fazer tudo, de chegar ao café e dizer, vim para aqui a voar, vou voar o mundo todo. Como quem diz, vou caminhar o mundo todo - e é isso mesmo que vou fazer.
Já fervo, como o chá. Já desapareço entre um bolo que não trouxe hoje das Trinas, daquele belo paraíso de três mesas e um amor, e uma obsessão  O paraíso dos loucos em liberdade, das pessoas que são o que são, sem medos.
Já fervo, porque ele viu o desenho e disse logo, "o rapaz da bicicleta".
Já fervo, porque a borboleta morreu, mas em mim não morre nunca e eu vivo em inferno, na minha memória, a reler e reler o que acontece.
Preciso de outro psiquiatra.
Tento ver a beleza em tudo e vejo, mas quando tento ser feliz, sinto-me a traí-la. "Hei-de amar-te para sempre". Ser feliz é traí-la, é esquecê-la.
Eu bloqueio porque não tenho mais nada a dizer. Não tenho mais histórias, não tenho mais caprichos, não tenho mais ambições. Pergunto-me se estou mesmo a viver a minha história, se estou a fingir que vivo alguma coisa. A minha vontade ainda é a mesma que no verão passado.
Ajuda-me, Santiago!

Topiramato

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A chaleira ainda arde no fogão, aceso, como que esquecido. A água para o chá há muito que evaporou. Ela correu, como quem abandona, como quem corre, como quem foge. Saiu de casa, sem sequer desligar o fogão, porque tinha os copos de vidro, nas mãos, e, enquanto os secava com o pano da loiça, sabia que os ia atirar ao chão e partir. Não ia deixar cair, ia atirar, para receber estilhaços das coisas materiais, como os estilhaços que lhe iam por dentro do coração. E fugiu, sem estilhaçar, sem desligar o fogão, sem levar chaves, sem trancar a porta.
Ainda bem que desligo o fogão, da água que já ferve, para o chá para adormecer. Ainda bem que estes contos são apenas ficção e que a chama azul já morreu, e que eu não parti nada, mesmo sem medicamentos. Ainda bem que tremo pelo corpo todo, mas que não fui embora, e agora fico contando minutos de fazer o chá, sem tremer, como quem quer estilhaçar o vidro para que fique em cacos, como o meu coração.

Conto dos Livros Desconhecidos

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Ela ia às livrarias e escolhia livros desconhecidos de autores de que nunca tinha ouvido falar, porque achava que as grandes histórias eram aquelas que estavam escondidas, aquelas de que não eram faladas. O maço era cada vez maior, os livros empilhavam-se, cada vez mais. Um dia, dizia ela, hás-de ler todas estas histórias. Um dia, respondia ele, hás-de escrever todas essas histórias.
Os livros desconhecidos eram livros esquecidos, era como intrometer-se numa história de amor já passada, por intremédio de cartas esquecidas numa caixa de latão, embrulhadas por um típico laço cor de rosa ou dourado, ou histórias que contam um trocar de olhares e ficamos a imaginar. Aquelas eram todas as hipóteses possíveis. Ali, estava todo o espectro, toda a magia. A verdadeira literatura residia no armario do mistério.
"Encontrei um livro fabuloso", e ele sabia que ela o tinha arranjado talvez numa venda de garagem, em segunda mão, por uma bagatela. E ela sabia que não teria ninguém a quem falar dele, que não encontraria discussões acerca dele online, aquela cópia era única e exclusiva, como se feita para ela só, como se escrita mesmo por ela. A magia estava ali.
Não eram livros que se pudessem encontrar sequer nas grandes livrarias, em grandes Bertrands ou famosas Fnacs ou populosas Almedinas. Quantos daqueles seriam roubados do sótão dos avós? Quantos daqueles teriam vindo de Angola, Moçambique, Brasil?
Todos reunidos, ali. Há quem coleccione selos, ela colecciona livros.

Mãe Mãe

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Nós divergimos porque eu posso ficar longos momentos a contemplar a lua, enquanto ela lhe deita um vislumbre e desvia o olhar. Nós divergimos porque eu tapo os ouvidos, cada vez que ela discorre sobre roupas e roupas e mais roupas, como se a conversa não me fastiasse, como se o interesse fosse mútuo. Nós divergimos porque não conseguimos ver os mesmos filmes. Ela vê os meus e diz que são muito tristes, eu vejo os dela e não consigo decifrar um pouco de originalidade ou um pensamento um pouco mais profundo. Claro que conseguimos ser parecidas e gosto que ela tenha alguma profundidade de pensamento, mas, por tantas vezes, as vontades dela vêm contra o suposto "amor incondicional" que tem por mim. E eu quero dizer-lhe, gosta de mim como sou, não como queres que seja!, mas sou a boneca dela e nada posso fazer.
Olho para a lua e sinto-me cósmica, sinto-me a orbitar, naquele espaço enorme, "pendurado" do outro lado da atmosfera, tão perto no universo, tão longe e tão visível, tão belo. A suspensão das nuvens, o espectro das cores do céu, não consigo evitar sentir-me aérea, as estrelas, o sol, não consigo evitar sentir-me cósmica.
Quando tu me falas em roupas, quando tu me mostras roupas, eu não sinto nada a não ser um vazio. Ok, sim, eu visto, estou quente, sobrevivo ao inverno. Não, mais não. Deixa o meu cabelo. Deixa-me roer as unhas. Deixa-me ter as sobrancelhas por arranjar. Não quero saber se fico bem de vestido ou não, não sou uma boneca, não sou uma peça de exposição, mãe, sou uma pessoa, mãe, não quero que as pessoas vejam, quero que as pessoas ouçam, apesar de não falar. Quero sentir-me infinita com elas, estelar como as constelações, natural como o vento. Não quero saber quem fez quando nem o quê, não quero saber do carro novo nem do carro velho, se me vens falar, fala-me de viagens de comboios, de passeios a pé, de grandes peregrinações a Santiago, de grandes viagens na estrada, sim, de carro, mas não do carro, a menos que o carro seja a tua casa.
Mãe, deixa-me fazer figuras infantis, hoje, na baixa, deixa-me pisar a pedra branca mas não a azul, deixa-me gritar de alegria ao ver uma das setas amarelas que segue para Norte, deixa-me andar pela beira dos passeios. Não sou uma boneca. Não sou uma obra de arte.
Eu não te conheço, tu não me conheces, vivemos longe, na mesma casa. Às vezes, estamos tão ligadas, até tu desconverares com essas tretas.
Já pensaste por que raio tenho de ir ao psiquiatra todos os meses? Já pensaste por que raio estou a tomar anti-porcarias e anti-doenças-mentais? Já pensaste por que raio às vezes grito, do nada, de medo, de fúria, de alegria, de tristeza?
Não sou a tua boneca, mãe. Vivemos em mundos diferentes.
With love,
me

Utopia

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[Sonhos de Utopia, num jardim de infância]
Uma casa, afastada de tudo, num campo meio ao descampado, meio à orla da floresta. O meu sonho, é uma casa, uma casinha, sem vizinhos, sem excessos. Um jardim de ideias, jamais limpo dos musgos e das poeiras do inverno. Uma gota que passa, sem se lavar. Uma casinha, com o mais simples, esta casa adorável, onde as divisões se fundem e que uma vasta biblioteca preenche. Estamos no inverno, estamos no verão. Uma casa sem microondas, sem tostadeira, sem triturador, só uma casa, com meia dúzia de festas e afectos, carinhos a quem por lá passe, para ir ler um livro, ou para me ir ver a mim. O branco, no meio das madeiras, no meio das tílias. Os livros, o cheiro a livros. O meu sonho é uma cama no chão, rodeada de livros. Música.
Uma casa onde as coisas pequenas são aquelas que a tornam casa. Como caixas em lata e os segredos que nelas se escondem, como bilhetes de comboios que já nem existem, ou cartas, quando já não se escrevem cartas. Como malas de papelão, com cadeado, a fustigar a imaginação. Como estojos de canetas de aparo, de tinteiros, de lápis de desenho, a carvão, a grafite, a pastel, como tintas de aguarelas. Onde os cadernos se amontoam, com vergonha do que trazem escrito, eu com vergonha do que neles escrevo.
Uma casa onde o chá sabe a chá, onde a televisão não é mais que um mito longínquo, onde, de vez em quando, se ouve o bater do teclado de uma máquina de escrever, antes de se dar o sonoro fim de parágrafo:
PIM!
Uma casa, com, queiram ou não, um livro de visitas, como se fosse um albergue do caminho, onde se sabe que a concha é o símbolo do viajante. Sem urgências, só meditações contemplativas, enquanto o sol se põe, o lusco-fusco adorna, ou quando a noite batalha com a manhã, em preto e branco, ou quando fechamos os olhos e somos só nós.
Com flores a brotar de lâmpadas, porque a imaginação cresce em lugares criativos.

Que te deu hoje, Adriana, nunca te vi tão optimista! (parece que o frasco das alegrias resulta mesmo), e ouvir boa música também *

Mãe Coimbra, Guimarães Madrinha

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De volta a Coimbra, quer-me parecer que os dias que estive em Guimarães foram num lugar tão distante que é quase um milagre estar aqui. Como que se o berço de Portugal fosse na distante China, na vertigem da Austrália, e o apagar da realidade consome-me. Coimbra abraça-me, mãe que me acarinha, uma vez mais, depois desta longa jornada. Até parece, mãe, que estive muito longe, se em duas horas voltei. Lousã, que era casa, Coimbra, que passou a ser casa, Guimarães, que casa é, em tão pouco tempo. Este nada de que preciso para tomar a vaga iniciativa de viajar. Nenhuma viagem é pequena - nenhuma viagem é grande. Santiago repete-se, na memória, tal como mil e uma outras recordações. Do que me leva, em passos, em comboios, em autocarros, sem tirar o dedo da tecla, a mão do lápis, os olhos do caderno. A forma é sempre a mesma. Um começo. Uma novidade. Os medos, a frescura. A liberdade, a independência. Acabei de ver a Maria Valverde passar, - aparte, para afirmar o meu deslumbramento. O NaNoWriMo está aí. Eu sem ideias. Em breve, terei de estudar e trabalhar e escrever 1300 palavras por dia. E eu a desviar o assunto. Estava a falar de Guimarães e da viagem de Guimarães por causa de uma epígrafe de que me lembrei na Fnac e que agora se esvaiu, agora, pois então, já não há texto, quando mais NaNo, quanto mais livro. Quanto mais.
Quer-me parecer que os dias da Nova China estão a ser demasiado dourados - ou sou eu que sei aproveitá-los demasiado bem, ou nunca tive tal liberdade, ou tem tudo a ver comigo, enfim, há qualquer coisa que deixa uma certa afinidade entre mim e a cidade berço. A beleza da baixa, os traços prontos a ser desenhados, as calçadas prontas a integrar páginas de romances, mistérios, contos. É esta a magia de Guimarães, a minha magia com Guimarães.

Diários da Avó Velha

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A Avó Velha diz coisas, conta-nos histórias, da Avó Velha, que nos quis a todos. Levo-a hoje pela mão, ver o mar à chuva, porque a Velha gosta, porquê não sei.

Anda, Velha, digo-lhe, por avó já não a trato, ninguém a trata, e a quem a chame Avó Velha, logo responde, a quem chamas avó?, que, sempre fui velha, mas avó não sou a ninguém, nunca tive filhos.

Porque a Avó Velha não tem memória, não lembra o passado, não imagina o futuro, não sabe o presente. Vive, num mundo dela, díspar, alheado. Por isso a temos de puxar pela mão. Velha é o único nome que tem. Os papéis, os documentos, perderam-se. Os filhos, meus pais, meus avós, sabem de onde vieram, mas não sabem de onde ela vem. Esqueceu o nome, ou diz que esqueceu.

E as autoridades danadas. Dizem-nos o sermão, muitas vezes, que sem identidade, só há incógnita, e das incógnitas nasce o caos: e, com caos, não há civilização. Mas, depois de toda a investigação, saem sempre de incógnitas, cuspindo, entredentes, "Escumalha cigana", para a Avó Velha e, quem sabe, também para nós.

Trago-a pela mão e sentamo-nos no muro molhado que ladeia a costa, virados para o mar, os pés balançando como pêndulos. A Avó suspira e solta,

Acho que deixei o chá por beber na mesa de cabeceira.

Com uma mão, seguro o guarda-chuva que nos abriga a ambos. Com a outra, protejo uma série de cadernos de capa dura, pretos, encarnados, verdes, amarelos, carcomidos pelo tempo. Toco-lhe o braço, para saber que é com ela que falo.

Velha, lê.

Estendo-lhe um dos cadernos. Ela toma-o e abre-o. Passa os dedos pelos caracteres indecifráveis.

Está uma boa chuva, comenta. A chuva areja o ar e areja o chão, lava as cidades e deixa os campos respirar.

Para meu desconsolo, devolve-me o caderno, sem nada revelar. Do que sabemos, foi ela quem os escreveu, ao longo dos anos, porque às vezes a vemos fazendo, na mesma linguagem oculta, deixando-os esquecidos pelos cantos. Já foram lidos e investigados e corridos de uma ponta à outra, pelas autoridades, em busca de um nome, de uma identidade. Por familiares, à procura de histórias, contos, material que se possa vender pelas livrarias. Por mim, e pela congregação, para darmos o nome à campa e a Deus. Vá lá, velha...

Um dia, disse-lho, assim. E ela respondeu-me, queres tu saber o que aqui está escrito? Que não queria outra coisa, prosei eu. Por Deus?, tornou. Benzi-me e ela riu-se. Sendo assim, continuou, não to direi.

Apesar de sentido, agora não menciono Deus, mas ela não esquece. Por maiores as minhas manhas, sabe sempre que fui eu. Ou me responde com silêncio, ou pergunta,

Olha lá, acreditas em Deus?

E eu não posso mentir. E, aí, sei que perdi.

Ela olha ao mar, às ondas, e os lábios movem-se, num murmúrio imperceptível, dir-se-ia, numa oração. Porém, para um ouvido tísico e atento como o meu, as leis das marés, dos luares, da precipitação, decifram-se no vago mistério daqueles rumores. Talvez sejam assim compostos os cadernos da Velha. Mas será fatal a minha insistência, pois nunca perco a esperança de os descodificar, tal como às supostas orações. Quem sabe, aqueles cadernos sejam efectivamente os diários que todos supõem ser. Quem sabe, a Avó Velha não é tão herege quanto se pensa e cada palavra seja uma confissão e uma comunhão com Deus. Pois que a Avó Velha é tão bondosa, para com todos, e sabe tanto, parece que tudo, e faz gestos que provocam milagres. A Avó Velha é, afinal, a última santa - ou assim o espero.

Quando eu era criança, chocava-me verdadeiramente quando ela dizia que não tinha filhos. Porquê, Velha, porquê?, se tens a casa cheia deles? Respondia-me que nunca quisera ter filhos. E eu chorava. Depois, quando apareceram as autoridades, quando os nossos pais e avós foram buscar os documentos, para ver quem era aquela grande mãe que a todos educara, descobriamos nós, os mais novos, e eles, os polícias e advogados, que ninguém era filho da grande senhora. Não satisfeitos, não convencidos, mandaram fazer testes e testes, ADN e maternidade, e cada resultado confirmou-se. Descobri que os meus primos não tinham o mesmo apelido que eu. Quem eram todas aquelas pessoas em minha casa? Quem era, especialmente, aquela senhora velha, que de nada se lembrava? Com o tempo, perdoei-lhe a pouca ortodoxia, a heresia, pela bondade que praticava, como todo o bom crente deveria praticar. Porém, há coisas que não se engolem e a minha esperança tem permanecido depositada naqueles mil e um cadernos, mil e um quartos trancados, portas de pedra.

Ponto Final

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25.11.2010
"Bom dia."
Uma mensagem no telemóvel. Um sussurro de passagem. Uma nota escrita ao canto de um jornal. Um aglomerado aleatório na sopa de letras. Duas simples palavras que podem ser vistas em qualquer lado, mudaram o mundo para sempre.
"Bom dia, são oito horas em Portugal continental e na Madeira, sete horas nos Açores." diz o locutor, a voz vagueando pelos recantos do carro estacionado. O homem suspira. O carro é roubado. O homem suspira. Liga o motor e volta para trás e deixa o carro no exacto sítio onde o havia encontrado. Sai e fecha a porta com um estrondo. Lá dentro, a voz do locutor de rádio continua a fazer-se soar. Quem se aproxime, há-de ouvi-lo a desejar uma boa viagem, se for o caso.
"Se hoje trabalha, não se atrase, faltam seis minutos para as oito em ponto."
"Bom dia."
O homem caminha, em passos largos. Caminha de mãos nos bolsos e pragueja. Está arrependido e envergonhado. Olha as pessoas e todos o olham de volta e todos o julgam. Faces repreensivas é tudo o que consegue ver. Os pássaros. Lá no alto. Pardais cantando os crimes de que é acusado, os melros debitam a sentença. Lá no alto. As aves de rapina, em círculos apertados, prontas a arrancarem-lhe os olhos a qualquer momento.
"Bom dia."
Em Portugal. Porquê em Portugal? Parecia um país completamente aleatório. O minúsculo jardim sujo do canto da Europa. O homem sabe que não deve caminhar de mãos nos bolsos nem em passadas largas e rápidas, como um fugitivo. O homem sabe como se comportar - mas não consegue. Há uma urgência incontrolável que lhe toma a caminhada.
Atravessa um sinal vermelho sem se aperceber. Não vem lá ninguém. Continua pelas ruas, está quase lá. Os passos não abrandam. As mãos insistem em casar com os bolsos. No ar sente-se o aroma fumegante do preparado do dia, das cantinas azuis. O passeio está limpo. Não há lixo. A calçada é branca, ainda mais que a camisa suada do homem. Ele desce a avenida principal. Passa pela biblioteca, pelo mercado. Por estátuas de gentes que nunca conheceu. Na torre do relógio, o ponteiro dos minutos dá um pequeno salto e aponta certeiramente o céu. Faz soar oito badaladas.
O homem chegou à estação. Traz um porta-moedas gasto no bolso de trás. Tudo, tudo, tudo errado. Dirige-se à bilheteira. Os comboios apitam e o homem está cada vez mais nervoso.
- Bom dia.
As palavras são para ele, directas e ditas em voz alta.
- Bom dia.
O homem quer fugir dali. Quer falar com uma máquina acerca do bilhete. As máquinas compreendem-no muito melhor e não chamam a polícia.
- Salamanca. Ida e volta.
Que desperdício. Ida e volta. Mas era o máximo que podia por não dar nas vistas.

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Já és mais velha que ela, quando morreu.
E que fizeste da tua vida e da vida dos outros? Em que inovaste? Quando pensaste? Quando é que o teu espaço de vivências, já tão extenso, quanta vida tanta vida, já tão vivida, ultrapassou, marcou, foi mais que o simples recorte de outros já experimentados, já feitos?
Já és mais velha, já és velha. E tudo o que fizeste foi nada. Estás à espera de quê para partir à caça da vida? Quais os teus anos dourados? A infância? A juventude? Entras nos 20's, nos 30's, nos 40's. Entras nos 50's, velha. Estás à espera de quê?, bolas!, sempre tão parada, a olhar para a roupa que vais vestir amanhã, sempre a ver qual o aspecto da tua filha, essa asquerosa feia, que não se sabe vestir e só se preocupa com os livros e com as coisas inúteis lá da escola, com as matemáticas que não servem para nada, com as programações, sempre as máquinas, sempre os computadores, se arrumasses era o teu quarto e te vestisses como deve ser...

Trança de Mãos Dadas

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Foi um dia como os outros. Estava eu com os outros e, como outras vezes, mandei-te uma mensagem, para o número privado que só eu conheci. Sem esperar resposta, suspiro. "O quanto gosto de ti, quanta falta tu me fazes", etc. Eu sabia que nunca a ias receber. Que nunca irias responder. Eu sei que tu nunca vais responder, mas, ainda assim, mantenho contacto. Quando volto a olhar o ecrã, lá estás tu. Não consigo acreditar. Os meus olhos enchem-se de névoa e não consigo ler. Não podes ser tu. Creio chorar. Não consigo, não pode ser verdade - mas é, mas és. Tu, delicada borboleta, ofereces-me palavras de graça. E eu leio-as, saboreio-as, choro-te. Corro à tua procura e não quero acreditar quando te vejo. Não pode ser verdade. Como te agarro. Como te choro. Como é pesada a saudade que tenho tua. Não acredito que estás nos meus braços, mas estás! Vou ter com os meus, com os outros, apresento-te, apresento-vos. A maioria não liga muito, mas o olhar dele prende-me, incrédulo. É ela, sim, é ela, digo, sem dizer. Não pode ser, diz-me ele. Mas eu tinha razão. Sorrio. Eu tinha razão em continuar a mandar-te sinais de vida. Tinha razão a procurar-te em cada esquina, em cada pessoa. O meu coração grita. O meu peito explode. Será possível morrer de felicidade? Quero dizer-te tudo, pedir desculpas, dizer que te amo, chorar-te, pedir-te desculpas. Não acredito ainda, meu amor, que estás comigo outra vez. És tu, sim! És tu!
Deixo-te por instantes. Estou louca de arrepios, sou eu toda uma erupção de sensações. Choro como nunca chorei, grito, rio. Ele encontra-me e pergunta-me, casualmente, 'Então, é agora que vais ser feliz?'. Estou a escrever, mostro-lhe, «Passei tantos anos sem ti, em dor, em luto, em choro, em pranto, que agora não me consigo habituar tão cedo à ideia que tudo isto é realmente verdade. Tens de me dar tempo, para abandonar, aos poucos, enfim, a depressão. Tens de me dar tempo para reaprender a ser feliz. Contigo.»
Viro-me para ele, mas o sorriso escorregou-me dos lábios. E lágrimas de felicidade são agora negras. 'Não,' respondo, 'porque tudo isto é um sonho e quando acordar ela vai estar morta outra vez.'
Ele consola-me, que disparate, diz, que isto não é sonho nenhum, que nós vamos viver felizes, muitos anos. Eu digo-lhe que não. Eu tenho a certeza. Mas como dizer não a esta vaga de esperança, a este apertar de felicidade? Depressa esqueço e depressa regresso ao pé de ti.
E então acordo. E tu estás morta. E eu não acredito, porque ainda sinto a tua mão na minha. Ainda vejo os teus olhos azuis, os teus dedinhos rosa, a linha do teu nariz, o teu cabelo, numa traça, sobre o ombro. Quero-te tanto. Tu não me mandaste mensagem nenhuma, tu não vives escondida. Os teus ossos jazem agora num buraco de cemitério. Ainda consigo sentir os teus lábios debaixo do meu beijo. Tudo o que te quis dizer não disse. Acordei e ainda sinto a felicidade de estares viva, afinal. É então que a derradeira desgraça recai sobre mim. É como que morresses outra vez. Nem te consigo chorar. Nem consigo respirar, sufoco em mim mesma. Olho o vazio, em dor. Não me levanto da cama. O mundo tem o dobro do peso.
A meu lado, a caixa de calmantes, a caixa de anti-depressivos, as outras caixas todas. Outra vez, tiro um de cada, como outras vezes. Tudo garganta abaixo com água. E outra vez. Por favor, alguém me acorde deste pesadelo.

Cicatrizes

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Nestes dias em que tudo o que quero é morrer, surge esse cão em casa dos meus avós que me deixa apaixonada. Samoieda, cães grandes, como eu gosto. O Freddie tem 6 anos. Parece uma grande ovelha. Tem o focinho arranhado, vê-se a carne junto ao nariz. A orelha esquerda está caída. Tem várias feridas ao longo do corpo. Os antigos donos fartaram-se dele. Uns vizinhos dos meus avós, lá da terra, tinham-no abrigado e davam-lhe de comer. Por vezes, ele fugia e só o viam muito depois. Ofereceram-no aos meus avós. E aqui está ele, agora. Quis voltar da cidade dos estudantes para casa no dia em que o trouxeram. Hoje, demos-lhe banho. Está escovado, asseado, mas o pêlo ainda não adquiriu o tom original branco. As crostas das feridas saíram no banho e ele começou a sangrar por demasiados lados. Está cheio de pulgas. Há que o levar ao veterinário. Agora, eu, com os braços cortados, quando só me apetece morrer, com ataques de ansiedade e de pânico dia sim, dia não. Eu, que assim que chego à terra roubo os medicamentos da minha mãe. Aparece-me o Freddie e eu não lhe resisto. O Freddie é um cão grande que só ladra quando precisa de ladrar. Eu gosto de cães grandes, não gosto nada dos pequenos. O Freddie enternece-me. Adoro fazer-lhe festas, correr para ele e abraçá-lo. Adoro dar-lhe beijinhos. Adoro quando ele me deixa lambuzada. Quero morrer, mas também quero o Freddie. O Freddie é óptima companhia. É um bom amigo. Agora que a Pantera desapareceu, há já mais de um ano, eu preciso de alguém. A Joanna desapareceu, o Yuri está longe. Não vou mentir a ninguém, não vou mentir a mim mesma. Não tenho mais amigos. Tenho o André, mas não posso falar com ele como falava com a Jo ou com o Yuri. E ele não me pode fazer companhia como a Pantera ou o Freddie. Estou a pensar voltar ao psiquiatra, à psicóloga. Quero curar-me, definitivamente. Voltei a ler. Escrevo, de vez em quando. Estou a escrever para o NaNoWriMo, mas muito pouco. Adoro as minhas colegas de casa, mas estou a ir-me a baixo, injustificadamente. Quero estar sempre onde não estou. Em casa, quero estar em Coimbra. Em Coimbra, quero estar em casa. Na praia, quero estar bem longe dali. Quero dormir o tempo todo. Para não pensar nas promessas de nunca mais me magoar. Para não pensar na vontade infinita e assoladora de parar já. Para não pensar que não há sentido em continuar. Tenho o Freddie e o Freddie vai morrer em breve, sabe-se lá quando. A mamã diz que estou a ficar como a minha prima e é quase verdade. Sabe-se lá se não é verdade mesmo - só que de maneiras diferentes. Sabe-se lá porque sou tão parva.
Sinto que me cortam as pernas cada vez que quero viver os meus sonhos com alguém. Não é que não o possa fazer sozinha. Mas quero muito mais partilhada. Quero entardeceres de outono com o Freddie.

Rapaz da bicicleta I

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Há um banco de jardim, velho, inclinado, junto à ponte. A bicicleta não cai do braço, no rio já é pouca a água, não é só de ser verão, também o rio se cansa, também o rio se morre. No início, há apenas espaço vazio. Então, começa ele, aquilo das mães é verdade. E muito ficou por dizer. Acha-las monstros, todas. Todas não, há sempre quem fuja à regra, mas nem tudo que não seja premeditado é desculpável. És muito dura para com ela, odeia-la. Não, amo-a, só que também não lhe perdoo. Devias aprender. Não. Ficam segundos em calma. Foi uma infância difícil. E que infância não é, se perguntas se me batiam, se me faziam trabalhar, se não me davam amor, se passei fome, se passei frio, se tive traumas, a tudo responderia não. Então. Esquecemos facilmente do quão difícil é ser criança, é tão fácil chorar, é tão fácil ter medo do absurdo, é tão fácil recear, a crueldade inocente dos adultos. Não achas que seja a altura em que somos mais felizes. Nunca somos, apenas achamos que sim, porque logo o esquecemos, aliás, o próprio conceito de felicidade é absurdo. Explica-te, por favor. Não sei, ao certo, no fundo felicidade é um estado tão inalcançável quanto a perfeição. Ninguém é perfeito. Ou ninguém perdoa as faltas dos outros mas desculpa, inevitavelmente, todas as suas. Já o pôs a sorrir com o trocadilho. Suponho que sim. Não seria tão radical quanto tu, não quer dizer que a perfeição exista, apenas que é efémera, se é que sabemos realmente o que é, é um estado, um momento, cristalino, onde tudo existe em harmonia e que se quebra no segundo seguinte. E aplicas o mesmo à felicidade. Essa contradiz-se a si própria, sabes, por intuição deve estar interligada com a perfeição, a tua satisfação pessoal depende do grau de perfeição do momento. Hum, estou a seguir. E a felicidade teria uma resposta mais ou menos positiva, como um riso, não. Acho que sim. Então pensa num momento verdadeiramente perfeito, que sintas toda essa harmonia cristalina, por mais curto que seja. Imagino. Consegues rir. Rir. Sentes-te mais inclinado às gargalhadas ou às lágrimas. Agora que falas nisso. Ou seja, a felicidade exclui-se a si própria. Ou a perfeição não seja felicidade. Consegues dizê-lo sinceramente. Não sei, tenho de pensar, mas não tem de ser a única fonte. Dá exemplos. Alcançar algo que se deseja, talvez, aquela alegria. Que parece durar para sempre. Sim. Mas nunca dura, nunca é permanente. Podes ter tudo quanto queiras. E nunca ser feliz. Desejar não alimenta a felicidade, mas a vontade de viver. Então, que sentiste quando eu parei a bicicleta e vim falar contigo. Incredulidade. Só. Bom, pelo meu raciocínio, vontade de viver. E felicidade. Talvez, um pequeno esgar. Como um momento perfeito. Só em sonhos imaginado. Mas desejado. Sim. E não te apeteceu sorrir, por dentro. Não. Não me mintas. Agora que penso nisso, os sorrisos só vêm depois, naquele momento é só aquilo. Lágrimas. Por dentro, como dizes. De alegria. De felicidade. Não é o mesmo. Não. Então que é alegria. Pensar que te vou ver amanhã.

Livro do Inferno - As Cores

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As cores.
Misturam-se, fundem-se, confundidas em manchas difusas, de castanho, de breu, de vermelho, talvez de verde muito, muito morto. Das paredes agrestes, do chão rude. Ela vai, enquanto caminham as pessoas. Esses espectros magoam de os olhar. Fantasmas não falam, não murmuram, talvez rumurejem para si mesmos, sem, porém, se darem. Ela vai, em passos, olhando em volta. Eles assomam à janela, medonhos, caras sem cara, secas, apenas para regressar ao interior. Sabem-se os próprios passos, só ela não sabe os que lhe pertencem.
A fome rói-lhe as entranhas. Comida a há. Suspiros abatidos aos cantos, dos que devoram o bife do prato. Os ovos enfrascados, remexidos até ao sumo. Não é que falte a comida, falta-lhe a ela.
Passos dos que sabem para onde têm de ir, não ela. Olha em volta, procurando recordar-se de algo que lhe remói a mente de há muito, muito tempo, sem saber o que é. As Galerias têm escuro apesar da luz. Têm calor, apesar do néon e da infinidade. Os corredores começam, acabam, terminam, desbocam em salões de figuras e silhuetas. As figuras são pessoas. As silhuetas são coisas.
A fome que a domina, os dentes que apodrecem.
Algures num canto há-de haver comida.
E por que não aventurar-se por outro corredor escuro, se todos são iguais e em todos há fantasmas.
Uma porta. Outra. Uma perante outra. Há que decidir-se. Pelo círculo ou pelo triângulo. De qualquer modo, são os dois o mesmo. Acaba onde começa. Matematicamente, perfeitos. Há que decidir entre um ou outro. Escolhe a porta à direita. Um bafo nauseabundo vem a seu encontro no momento em que se esvai pela curta fresta que delimita a porta e o limiar. O interior - ou exterior, da perspectiva dependendo - arde como as entranhas da própria terra: e instantâneamente ela compreende que ali não há comida. Talvez na porta à esquerda. De um passo atrás, puxa a maçaneta: e um cheiro semelhante, um vapor da mesma textura, sombras da mesma consistência vêm a seu encontro. Como portas paralelas darem para o mesmo simétrico mundo.
Já não se lembra porque aqui veio, aqui, ao mundo. Não se lembra de nascer, como se, desde todo o sempre, houvesse vivido nas galerias. Mas tem os dentes podres, pelo que se decide a uma das portas. Dos tubos exala o fumo, do chão, das paredes. Bacias marmóreas, donde escorre água. Passa-lhe as mãos. Em frente, um espelho; creme para os dentes. A água ferve. Enche os dentes em creme. Tem de se lavar nos lavabos públicos, porque não tem mais onde ir. Enconcha as mãos e recolhe líquido à boca. Espera e deita fora. As bacias, mármore; o chão, mámore; o branco, verde, em lodo. Regressará. Mas não ali, pois lavabos os há em cada corredor escuro. Não sabe como o sabe, mas sabe. Está certa da sua própria verdade.
Por agora, retirar-se-à, com a cadência da névoa ardente.

Livro do Inferno - Morte da Morte

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Mar haveria... mar...
Porém, costa aquela de um imenso, imerso, infinito corredor. Outras dessas colossais Galerias sem nome. Mar onde? Mar o quê? Mar, seco, agora, só palavra desidratada. Mar: muito, grande quantidade. Mar de calor, mar de corredores interligados, cavernas artificiais, forjadas na pedra. Como tantas palavras mortas, mar. Mortas, céu.
Céu: tecto, luz. Abóbada sem fim, pululada de luzes a todo o comprimento. Toda a extensão de galerias, corredores, céu, e céu tecto e céu luzes. Palavra morta, como tantas.
Mas não há palavra mais mora: que morte, morrer: morto.
Falar.
Falar também lhe parece morto, enquanto atravessa, em passo lento, as galerias infinitas. Pessoas, como fantasmas. Só.
Memória.
Não é que se esqueça das coisas, mas não há nada para recordar. Galerias, luzes, néon, corredores, fantasmas. Caminhar. Saber onde está: não sabe. Saber quem é: não sabe. E, depois, ecoam-lhe estas palavras soltas na memória, mar, céu, morte, outras, mas ela não se consegue lembrar do que significam, a que sabem. Sentir, nada. Sonhar, dormir, nada. Tudo confusão, como que um vidro sujo ou embaciado, que deixou ver e já não deixa. Comer. Tem fome.

Desde que se lembra, tem fome. Desde que se lembra, nunca comeu.
Decerto se lembraria se tivesse comido. Sim, de certeza. Talvez…

O Livro do Inferno - O Pobre Diabo

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As escarpas abriam numa clareira circular. O céu sangrava todo o vermelho. Do outro lado, uma caverna negra, com o fim a cair de vista, como uma grande boca de um peixe emergente, colossal.
Sentado, resguardando a entrada, uma aterradora figura, de olhos atentos, postos nela. Sentiu-se a paralisar. Talvez devesse voltar atrás, mas nem ao menos era capaz de pensar. Nenhum músculo respondia. O ar tinha fugido. O coração não parava, magoava como facas cravadas no peito.
Quis acordar. Aquele pesadelo macabro tinha de terminar. Oh, mas, para seu terror, sabia-se bem consciente. Nada podia ser mais real. Tomou coragem. A jornada fora imensa, não podia deixar-se naquele impasse, pois a besta não parecia fazer nada, limitando-se a observar. Engoliu em seco.
Um primeiro passo em frente.
Diabo seja! - berrou a criatura, fazendo-a saltar em sobressalto. Que raio és tu?
Permaneceu sem articular palavra.
Não esperava que um som minimamente humano saísse das entranhas de tão inconcebível ser. Os olhos que a fitavam, agora, carregados de inquisições.
A medo, começou.
Eu vim até aqui. Para vir morrer, pensou. Para vir morrer, disse em murmúrio.
O quê? replicou a criatura. Tens de dizer isso mais alto, porra!
Ela fez-se repetir, um pouco mais audível. Ele respondeu com cara de troça.
Anda até aqui, chamou-a com o braço. Que não entendo um corno do que dizes!
A medo, cautelosamente, avançou. Avançou até olhar, nos olhos, a besta. Foi então que reparou que este era mais baixo que ela.
Desembucha de lá.
Vim para morrer.
O medonhinho franziu o olhar.
Argh! Bah.
Lançou-lhe um esgar de nojo.
Mas será que ninguém me deixa em paz? Primeiro lá de dentro, agora do raio daqui de fora!
Ela estranhou-lhe a linguagem. Sim, era grosseiro.
De onde já se viu um ser divino tão grosseiro. Apontou-lhe a boca de baleia encovada.
Sabes que é aquilo?
O inferno?, perguntou-se, em voz alta.
A besta deu pequenos passos, de um lado para o outro.
Inferno, purgatório, submundo, o que lhe quiseres chamar. É terra de ninguém, to garanto. Quem morre, é para ali que vai. Naturalmente, põe alguém de guarda, porque aqueles danados querem voltar à vida. Onde já se viu isto? É o Diabo, o Bicho, o bobo da corte, a troça de todos que se escolhe. Estou cá, desde sempre, impedindo os tolos de voltar. Vivos e mortos no mesmo mundo! Separo-os aqui. E agora chegas-me tu, a quereres entrar. Saem uns, entram outros. Lotação esgotada, aguarde, por favor! Bah. Ao menos aqui nem há música. Aqui estou eu, para todos rirem. Do cornudo, sem maneiras.
Dizem as lendas que o Diabo é maldoso. Que causa o mal no mundo.
O mal? Já não basta ser porteiro, agora sou o mal? Achas que sou segurança de lá de baixo? Achas que não te vou deixar entrar? Qual quê! Todos os vivos seguros, comigo aqui. Protejo este mundo, assim é que é! Sem mim, eram almas penadas a vingar por todo o lado. E só espaço para essa gente toda? Ali em baixo há todo o espaço que possas imaginar! Aqui não, já mal podemos connosco, olha o que iria ser do mundo sem mim!
Dizem os mitos que o Diabo é o imperador dos Infernos, o supremo soberano.
O quê?
E isto di-lo com voz de grande espanto. Depois, contorce-se para trás numa gargalhada, meia risada, meia grunhida.
Tanta fama! Proveito, qu'é dele? Mas digo-te uma coisa. Poucas vezes estive ali abaixo e não guardo saudades. Ser rei naquilo não era reinar, era ser escravo! Lá em baixo estão todos mortos. Ah ah, eu rei! Bem bom, talvez pudesse ter descanso. Em vez de porteiro do casebre fúnebre.
Faz uma pausa para a olhar, de cima a baixo. Franze as sobrancelhas.
Com que então queres morrer, hum?
Assente. Sim, senhor.
E como descobriste o caminho para aqui?
Um mapa, responde ela. Um mapa, num anúncio de jornal. Folheio o jornal e ali está. Como morrer em cinco passos, Guia para a travessia do Vale dos Infernos.
Os tempos, Diabo!, os tempos! Já não me bastam os que passam a morte a querer viver, agora terei filinha a compasso de espera, todos para falar com o Diabo!, entrevistas com o Diabo!, 24 horas na vida do Diabo!, fora os parvalhões que não querem viver. Não o sabias ter feito com um veneno ou uma corda, como antigamente?
Ela desvia o olhar. Não quero deixar vestígios de mim. Não quero que nada fique para trás, nenhuma prova, nenhum corpo. Quero ser uma vaga memória na mente daqueles com que me cruzei. Parou para respirar. Quero que elas se perguntem se eu existi realmente ou fui apenas sonho ou imaginação, até que me esqueçam.
Tá bom, 'tá bom, já percebi, não digas mais nada. Sabes, deixa-me curioso esse artigo de jornal
Anúncio, interrompe ela.
Anúncio, pronto. Intriga-me, porque és a primeira da eternidade a aparecer aqui.
Agora, a nossa personagem vai ser um pouco maldosa para com o diabo e dizer-lhe algumas palavras de mau gosto. Nós, alheios, vamos ouvir, tentando compreender. Eles os dois entendem-se, isso é que interessa para a história, mas nós, aqui deste lado de fora, podemos ficar algo confusos. Aí ficam as palavras, de mau tom, que de mau tom só o sei serem, porque o Diabo se ressente e responde algo que não responderia a todos, ela diz
Por certo a sua mulher, ele responde com um olhar de poucos amigos, algo desconcentrado, e com o fraseado,
Cautela miúda, só se entra uma vez, dali não se sai, se a Morte é certa, porque não esperar?
Esperando, já há muito, responde-lhe assim: Porquê esperar?

Não há nada de bom lá em baixo.

Só vim para morrer.

Não encontras mais portas aqui. Só guardo para fora.
A entrada da caverna parece coberta com um véu negro, onde nem os vislumbres da vermelhidão do céu chegam. Talvez se devesse despedir, mas não sabe de quem nem do quê. Do Diabo, da clareira morta?
Só vim para morrer. Debruça-se nas portas do inferno, perante toda a escuridão. Só vim para morrer, ou assim espera que seja.

O Livro do Inferno - Nos Portões do Inferno

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Um segredo. Montas, altas, como ondas. Precipícios cor de uma laranja sangrenta. Um segredo, esse que caminha por entre os escombros. Sabemos e vemos, dando passos inseguros. Estacando, por vezes. Hesitante, outras. Confiante quando apressa. É um cabelo escuro. Ela está pronta, mas nem sempre avança. Tem arrepios. A certeza não consegue esfumar o medo. Um segredo. Ali, não há quem a detenha.
Tenho-te em passo passadiço, no passeio enfadonhado dos negados ao mundo. Já esperas a morte atrás de cada escarpa. Um vulto esquelético, um sorriso que não sorri. Esperas frio. Tenho-te ao meu ritmo, passo após passo. Esperas dor. Doença. Crueldade.
Não se apercebe da caminhada, por vezes, absorvida nos próprios pensamentos. O céu torna-se um vermelho cada vez mais vivo. Como se o sol se estivesse a pôr e a noite não mais chegasse. Não há plantas. Nem o mero vestígio de verde. Um tímido musgo, um feto. As escarpas ladeiam o desfiladeiro. Sem pedras. Sem imperfeições. Não pode ver para lá dos desvios.
Aqueles caminhos, pensa, são cruelmente labirínticos. Agarra-se com força ao papel, cheio de vincos, amachucado, que traz consigo desde ainda antes dos Jardins desérticos que atravessa.
Da vida injusta. Cruel.
Caminha ao fim, sem saber quando o fim irá chegar. Caminha ao sabor de si mesma, aterrada. Sabe bem porquê. Sabe que não há meia volta a dar. Todos os passos são em frente, os dela dados, os dela pensados. Inclinam-se as encostas, em seu redor, ora vira à esquerda, ora à direita, sem vislumbrar desfecho a tanta perambulação.
Tenho-te em minha lei e, apesar disso, no caminho certo. Irás chegar onde tens de chegar, confio-te essa conversa. Passeia-te, frágil, com os teus receios. Falta menos de nada.
Os Portões estão ao virar da esquina.
Sim, a escrita gasta não mente. As letras impressas indicam-lhe o passeio, guiando-lhe os passos. Sim, já está na última linha, as palavras ditam-lhe para continuar. Está no fim.
Perante si, a figura escura, que tanto receava.

Mundo de todos iguais (humildade zero)

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Quase nos queimam vivos se damos a nossa pouco humilde mas sincera opinião. Frequentemente me dizem: "Já imaginaste o que seria do mundo se fossemos todos iguais?". Na verdade, somos todos praticamente iguais - aliás, alguém que apareça diferente é rapidamente alienado. Os mecanismos de tortura social são activados. Imagino um mundo de pessoas todas iguais: e vejo cidades repletas de arranha-céus, vejo salas e cozinhas e quartos e casas de banho, vejo as famílias reunidas no sofá, à televisão. Por isso, dando uma outra volta à questão: imagino que já o seja. Não faço parte desse mundo precisamente por ser diferente. A entrada é-me vedada. Um mundo repleto de pessoas que aguardam as instruções: programas na televisão para verem, revistas de moda que lhes dizem que vestir, prateleiras de hipermercados que decidem o que hão-de comer, estações de rádio que ditam as músicas que se devem ouvir - e estaríamos, ainda, no princípio desta lista de instruções, do manual de viver e conviver. Se fossem pessoas como tu, o cenário seria ainda mais cruel que a realidade.

Porém, se, acaso, fossem todos como eu. Vejo um mundo como uma espécie de paraíso. Vejo músicos e cientistas, físicos, engenheiros, matemáticos, violinistas, pintores, escritores, pensadores. Vejo-nos a criar algo livre de preconceitos. Vejo-nos a construir algo com gosto. Vejo a cultura a ser mais que meros massivos: a crescer, evoluir, edificar, grandiosa, construtiva, humana. Homens que beijam mulheres que beijam mulheres que beijam homens que beijam homens. Vejo amor, bondade, criatividade. O modo sublime como eclipsar-se-iam todos os defeitos: qual truque de magia!

Pseudo-grito-por-ajuda (ficção #2)

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Já escrevi tantas cartas de suicídio que lhes perdi a conta. Desta vez, porém, não vou cair na hipocrisia de desculpar toda a gente. Não vou dizer à minha mãe que a culpa não é dela. Oh, sim, porque a culpa é tua, mãe. É tua, pai. Avós, primos, tios, de toda a família. A culpa é dos caixas de supermercado e dos fabricantes de rolhas. Das apresentadoras de programas de entretenimento familiar, das actrizes das novelas rascas da televisão. Dos catálogos da LaRedoute, das músicas sem música que passam na rádio, dos exames nacionais, dos médicos, dos relojoeiros, dos banqueiros, dos romances baratos, dos feridos de guerra, das empregadas de limpeza. A culpa é dos técnicos de manutenção de piscinas. De quem nos faz uma geração mais estúpida, a cada dia. Das gerações anteriores, por terem tantos problemazinhos. Dos padres, dos polícias, dos encenadores. Das faculdades.

Já escrevi tantas destas que me sinto afogada. Tantas vezes voltei atrás, por remorsos. Pedi desculpas, absolvi-vos do crime.

Aos modelos de perfeição dirijo esta responsabilidade. Como nos tapam os olhos. Compremos mais. Tenhamos tudo. O mundo. Sejamos felizes. Aos modelos atribuo tudo. Ao medo da dor e da morte. E como nos tentam proteger da realidade com sorrisinhos de plástico, como tudo o que existe, atrás das câmaras. Sejamos lindos. A culpa é das preocupações fúteis em manter as unhas arranjadas, simétricas, com o verniz delineado. Dos cremes para a pele brilhante e hidratada, dos anúncios que o proclamam como essencial, como qualidade de vida.

Estou farta do receio da morte. Do prolongamento da vida, para podermos apodrecer, cada vez mais sozinhos, cada vez menos capazes, cada vez mais dependentes, ao apodrecer do mundo. De anúncios, até nos noticiários, em quanto vai o jackpot do Euromilhões? Farta do que nos ensinam na escola, com professores frustrados, para depois aprendermos a fazer uma porcaria qualquer na universidade, para nos atirarem à cara que não existiam tais comodidades nos anos que passaram, para arranjarmos um emprego, para chegarmos a casa, ao fim do dia, cansados e fartos. Para aprendermos a ser professores frustrados ou incompetentes de outra área qualquer. Para o ponto alto da nossa vida ser jantar à frente da televisão, cada dia. Para o ponto alto da nossa vida ser o fim de semana, quando não sabemos o que fazer com tanto tempo livre, acabando por não fazer nada e chegar ao fim, achando que passou tão depressa. Vamos criar filhos, como quem cria ilusões e desilusões. Estou farta de Natais sem significado, de Páscoas celebradas como dias importantes - ainda se fossem! - de vizinhos e falsas amizades, falsos sorrisos, peúgas compradas à pressa para aniversário, para demonstrar o quanto gostamos uns dos outros.

À minha mãe, por querer de mim a perfeição que eu não quero. Por querer o melhor para mim que não quero. Por esperar que viva para sempre. Por ver em mim quem não sou. Por me amar, incondicionalmente, quando preciso de ser amada pela pessoa que sou.

Não quero ser escrava de uma sociedade. Não quero ter medo. Não quero seguir modelos. Quero ser livre de um modo como nunca fui. Não ter nada, porque chegamos a este mundo sem nada. Só depois nos impõem uma família, um lar, uma vida. Quero cortar laços e não amar ninguém. Não quero ser especial. Não quero andar bem vestida, não quero ter cabelo bem cortado, não quero saber das feridas, dos hematomas, das cicatrizes. Não quero esconder.

Ao viver, sinto-me um bocado como a minha vizinha. Vou contar-vos da minha vizinha, para o caso de não saberem. Ela acorda, trata das tarefas domésticas. Depois, senta-se todo o santo dia no baloiço da varanda e fica a ver as pessoas que passam e a falar com elas. Trata das flores, por vezes vai dar umas voltas. Para passar nos mesmos sítios e ver as mesmas pessoas. Por vezes, vai até países estrangeiros. Para ver coisas diferentes, numa espécie de orgia mental.

Um dia, essa senhora vai morrer e vai para debaixo de terra. E rapidamente será esquecida. Basta a extinção desta geração. Esquecer pessoas mortas é muito fácil.

Ao viver, sinto-me num baloiço de varanda. É verdade que o mundo se vai modificando e transformando, mas vejo-o como o passar dos dias, no calendário. No final, é tudo tão insignificante.

Poderia partir em busca de mim mesma, mas não acredito que haja nada. Quanto mais nos procuramos, mais infelicidade encontramos. Quanto mais verdadeiros a nós mesmos, menos há que seguir.

Renunciar à vida é o meu último acto de fidelidade a mim mesma. Despedaçar o corpo que me foi dado. Roubar-lhe toda a beleza, abandoná-lo. Sem música, filmes, livros, sem mais nada mas eu, seguir na última aventura.

Bem hajam, odeio-vos.

Dizer-te (ficção)

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Tu devias ter morrido nos meus braços. E não longe, no voo de um sexto andar de uma cidade distante.
Lembras-te de quando ficámos sozinhas no museu e passámos lá a noite? Quantas pessoas passaram a noite fechadas num museu? E não estávamos sozinhas: eu tinha-te a ti e tu tinhas-me a mim.
Tu devias ter caído a meus braços e não no asfalto duro ou na calçada suja.
Como naquele dia na praia, de mãos dadas, o mar rugindo, de mãos dadas, tu querias as ondas, eu queria beijar-te, querias que o mar te engolisse, queria salvar-te.
Tu devias ter esperado por mim. Mas não esperaste.
E assim vejo, a amiga que fui. Deste-me tudo que numa amizade tão forte poderia querer. Deste-me mais do que imaginei ser possível no mundo. E eu, que te dei de volta.
Devias saber que eu te amava. Deves, tens de saber que te amo.
Eu fui miserável para ti, mas amei-te sempre.
Tu sabias, certamente sabias. Pelo modo como te abracei, no meio de toda a gente. Pelo modo como te dei o meu casaco para não teres frio.
Tu devias ter-me dito. Porque tu sabes que eu compreenderia. Sem sentir o que sentias, sem ter passado o que passaste. Sabes que compreenderia.
E então eu haveria de apanhar o último autocarro e de correr, de subir as escadas a correr, para um último abraço, para um último beijo, um último olhar, um último sorriso. Dizer-te, amo-te, serás sempre a minha melhor amiga.
Por fim, deixar-te-ia ir, sem me veres chorar. Haveria de correr escadas abaixo, haveria de me deitar a teu lado, no chão, no teu sangue e chorar o teu crânio quebrado. Haveria de te abraçar e não querer largar, quando as ambulâncias chegassem. Haveria de sentir o teu corpo, rígido, frio.
Tu devias ter morrido nos meus braços. Deveriam ter-me levado numa confusão, já quase nem pessoa, a casa, deveriam ter falado com os meus pais. Quando as pessoas me vissem, desconfiariam sempre de mim. Porque não fiz nada, perguntar-se-iam. E eu deveria ser levada a casa com o teu caderno no bolso. E andar sempre com ele, como um guia e uma mensagem: tu amas-me e eu sou a tua melhor amiga.
Seria tudo diferente. Mas agora seria mais forte. E não teria deixado nada por dizer.
Amo-te.
Serás sempre a minha melhor amiga.

Conto a uma escritora

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Contar a história do que realmente aconteceu. Não houve escândalo, foi tudo o mais discreto possível, de qualquer modo, estava no início. Tu escreves bem, dissera-lhe a amiga. Os outros colegas leram e gostaram, alguns. Outros não, mas fizeram-se de fingidos, também passaram. Eventualmente, as páginas chegaram às mãos da professora de português. Tu escreves bem, e acrescentou-lhe agora a outra ladainha, porque não tentas publicar? Ela não ia dizer que não em frente a uma professora, baixou os olhos e corou, uma resposta tímida de agradecimento, mas sem sentido. Uma editora de segunda aceitou logo, claro, quem não aceita meia dúzia de trocos, seja pelo que for? Assim se viu saído o primeiro livro, também ele de olhos baixos, tímido, lá ao canto das prateleiras, sempre só. Sempre teve alguma saída, porque o que vai de boca em boca alguma coisa há-de levar, tantos aqueles que o compram e nem o chegam a ler, mas isso a ela nem lhe interessa, até fica feliz, continua a não dar pelo nome que se deu na capa, que raio disso é nome, claro que fica mais bonito ter um volume grosso nas mãos do que páginas perdidas rabiscadas a esferográfica ou tinta permanente, mas continua, lá dentro, uma pesada angústia a revolver-lhe as entranhas. No jantar, sagrado, dos domingos, reunia-se toda a família, eram os tios mais velhos, os primos quase licenciados, já formados na bebedeira, os tios mais novos e os primos de fraldas, que ainda não entendiam uma palavra que fosse dita, o avô na poltrona ao canto da cozinha, coisa mais estranha, uma poltrona em plena cozinha, enfim, os hábitos tomaram-se assim quando foi tempo de nos habituar, hoje se alguém tirasse a dita poltrona da cozinha, então sim, todos estranhariam, de não ver a poltrona, de não ver o avô, que é certo que o avô está onde estiver a poltrona, fumando cachimbo, que decerto estará onde o avô estiver, depois a avó que diz que o avô se casou com ela por gostar tanto da poltrona, mas depois também cora, porque recorda tudo o que já se passou naqueles almofadões e encosto acolchoado, numa cadeira tão grande dá para fazer muita coisa, que raio de pensamentos agora foi ter, anda de um lado para o outro, fingindo-se atarefada, é o modo, enfim, que tem de abafar os suspiros da nostalgia, tempos que foram há muito e não hão-de repetir-se nunca mais. Naquela cozinha, àquela mesa, onde cada vez mais são os pratos e os lugares e as pessoas, onde a cadeira de bebé nunca se chega a tirar, não porque o bebé não cresça, mas porque, dado o pulo, já lá vem outro, é o mal das famílias numerosas - mal ou bem, depende de cada um, para esta nossa tímida menina é mal, lá terá os seus motivos para não gostar da vida parida aos seus pés, naquela atmosfera sente-se a tensão, o orgulho, a senhora escritora, com dezassete anos apenas já tem um livro editado que está a ser um sucesso!, e já todos, bebés inclusive, têm um exemplar, mas, pois, os bebés não o lerão já, é para quando um dia compreenderem, aliás, ninguém admite, mas ninguém leu, ainda. Quando alguém tem um daqueles livros de capa laranja suave, letras castanhas e finas, nas mãos, dá-se-lhe um aperto, só de os ver, como se tivessem a alma dela nas mãos, não apenas um livro, se o abrem, então, em vez de se sentir liberta, incomoda-se, a alma é quase como o sexo, íntimo lugar onde mexer, não andamos por aí a apalpar o sexo uns aos outros, ainda temos respeito, mas que era feito dele quando lhe folheavam os livros e sorriam perante a mancha difusa de palavras, se nunca sequer lhe haviam sorrido antes, que era feito desse respeito, quando punham na boca as palavras, escritora, tão nova, onde estava tudo.
Mãe, não leias, mas não havia modo de a dissuadir, mãe dela tinha a obrigação primária de ler o que a filha escrevia, tanto mais editado!, e deu-lhe um beijo na fronte e afirmou que gostava muito dela, de tanto amor transbordante que o seu objecto se encolheu e resignou, de que valia tentar fazer a mãe perceber que não ia achar ali um conto de fadas, se ela até lhe emoldurara umas pinturas a marcadores, dos tempos do infantário, feias até à exaustão, e as pendurou na parede do corredor, ainda lá hoje devem estar. Mas logo nas primeiras páginas a mãe franziu o sobrolho e lembrou-se de que tinha trabalhos de casa para corrigir, desta feita ficou a filha aliviada, não era aquela a hora das suplicias - que seria do mundo se as mães conseguissem ver a alma aos filhos? Confiada a estes pensamentos, fugiu com o livro onde a mãe não o visse e não se lembrasse mais dele.
Chega em fim o fim dos exames, altura de baixar os óculos de sol da cabeleira para os olhos, calçar sandálias e um vestido mais leve, sair assim à rua festejar o verão que se avizinha. Já se passou muito tempo desde o primeiro livro, o próximo tem direito a apresentação ao público, dia vinte e cinco do mês que vem, com cinco ou seis pessoas da rádio e dos jornais, mais para a família e amigos - ora, ela não compreende porque há-de apresentar o livro novo à família e amigos, se é certo que são os primeiros a correr para ele e os últimos a perceber o que ele diz. E a mãe pergunta, o que vais levar, e a filha responde, oh, mãe, sei lá, falta mais de um mês, e achas muito?, quem o pergunta é a mãe, conhecendo-te como conheço, menina, precisas de bem mais tempo para te arranjares com duas peças decentes, sem pareceres um manhuço, é um dia como os outros, mãe, um dia como os outros!, exclama a mãe com surpresa, sim, não é nada, também não estou a pensar no que hei-de levar no dia vinte e três, nem mesmo no dia seis, que é muito mais perto, como podes dizer isso?, pergunta a mãe, de mãos na cara, trémulas, vai lá estar a imprensa!, e tu só te preocupas com o que os outros dizem, e tu nem te preocupas com nada!, não é bem assim, mãe, simplesmente não olho para as roupas como tu, pois não, e sabes porquê? porque estás gorda e nada te fica bem, se fosses elegante ias ver como gostavas de combinar as coisas como deve ser, mas fica palhaço à vontade, se gostas assim!
A isto a filha não responde nem ressente, já está habituada, conversas que começam da mesma maneira, acabam da mesma maneira, ao papel dela já o tem decorado, o guião diz que, com esta deixa, a mãe deve sair do cenário e a mãe sai, realmente, evidente que segue o mesmo guião, não se enganou nem trocou, como por vezes acontece, e andam as duas desentendidas por julgarem diferente a mesma coisa ou a mesma coisa por coisas diferentes.
Houve uma noite, um jantar de domingo, em roda da mesa, sem esquecer a poltrona nem o cachimbo, em que as emoções trouxeram até lágrimas de comoção, estando o televisor ligado, como era habitual, mas todos sabiam o que ia ser diferente, os bebés tiveram de ser forçados a silenciar o choro, pois todos ouviam atentamente o que o Professor Marcelo tinha a dizer, muitos ouvindo sem ouvir, porque só queriam ver, ver, então ali estava, um outro livro tímido, espreitando, o nome da família precedido por um feminino, o primeiro livro levado assim à televisão, a primeira vez que o Professor Marcelo se lhe referia, e lá estava ela, recebendo aplausos e abraços e lágrimas, enterrando-se no assento, como que o dia do aniversário tivesse chegado mais cedo, ali estavam todos a olhá-la e bater palmas, ela sem saber que fazer da cara, que fazer das mãos, ao menos antes podia fixar os olhos no bolo, nas velas, na chama, ali nem isso, tinha de se contentar com o lombo devorado. Apeteceu-lhe, também, chorar, mas afogada de tristeza.
Jovem escritora. Como tudo põe a cru, apesar de tão nova, tão pouco experiente, parece prever os males onde os há e não finge que não os vê. E as obras publicadas com que conta. Uma encruzilhada de histórias, para o público mais novato, chama-se Nahaia, nome mais estranho, depois uma colectânea de contos, desde meia página a meio livro, mas sempre chamados contos, o dos Pulsos está lá, qualquer outro também, se procurarmos. Um policial, estranho quebrar da corrente, mas também bizarro a seu modo, chama-se Culpa dos Inocentes, saiba-se porquê, talvez tenha sido outrora outra ideia de que depois se fez título, ainda um misto de comédia com outro mundo bizarro, As Ocorrências mais Estranhas e Extraordinárias da Vida de Edgar Perry, fiquemos com Edgar Perry, para abreviar, depois há aquele tenebroso Crónicas do Lodaçal, o das viagens de carro ao país, Desejo de Estrada, ou como se chama, e há ainda o que começa nos Portões do Inferno e não se sabe bem onde termina.
Agora a mãe quer ler. Tem de ler, é inevitável. Bate à porta do quarto da filha, diz, isto é acerca de mim?, a filha diz-lhe que não. Mãe só tens uma, por isso tem de ser acerca de mim. Essa não sou eu, responde-lhe a filha, fui eu que inventei uma e que inventei a outra. Inventaste de onde?, da minha cabeça. E sabes lá tu como são as outras mães?, por isso inventei. A mãe ajoelhou-se à beira da cama. Os olhos morriam em lágrimas, tu achas que sou assim?, perguntou entre soluços.
Tudo isto está a matar-me.
Voltei ao psiquiatra. Que vai ser hoje? Já nem me recordo da primeira razão, a minha mãe leva-me ao psiquiatra desde muito cedo, porque ele é uma espécie de amigo de infância. Que vai ser hoje? Já fui diagnosticada com depressões, fobias sociais, esquizofrenias, apetite compulsivo, já usaram todos os termos que conseguiram, dissecaram todos os meus sonhos e todos os meus textos. Os livros só fizeram pior. Agora, há material. Ele pega ao acaso numa frase de um livro e molda-a até chegar onde quer.
É verdade que fui encontrada dentro de um armário, a cheirar mal do egoísmo de me ter matado. São coisas que se fazem. Tinha a alma tão suja que já nem sabia como a haveria de limpar.