Diário

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Eu não costumo fazer isto. Isto, isto, isto. Esta espécie de tom de diário, não nos meus textos. Mas preciso, estou a morrer. Sinto-me a morrer. Não conseguia aguentar muito mais naquela casa. Sinto-a lá, como um esqueleto pendurado que me segue para cada canto - e me chama: Adriana, Adriana, Adriana. A suavidade das coisas que fazíamos, das coisas que poderíamos fazer. Se hoje o mar estava lindo, lembrava-me da tarde em que passeámos de mãos dadas, os meus pulsos ainda intactos, os dela dolorosos da dor que a corroía por dentro: e eu sem saber que dizer, só estando com ela e salvando-a do mar, quando eu sabia: eu sabia sempre: que ela não queria ser salva, que ela queria que o mar a afogasse ali mesmo, porque o mar é calmo e bruto ao mesmo tempo e está cheio de carinho. Porque o mar a podia matar, mas não a magoaria tanto. Nós a brincarmos com as ondas, a brincarmos com pedras, como duas miúdas, a brincar com gaivotas, os pulsos dela, eu podia ter dito, enquanto brincávamos, eu amo-te, seria verdade, eu amo-te, mas não o disse, nem sequer a consolei, os pulsos dela, eu fiz de criança quando ela tinha perdido a inocência toda, eu fiz-me de inocente, quando ela não podia, eu amo-te, eu amo-te, por vezes grito-o na rua, para o vento, para a chuva, para o mar, mas é sempre para ela, eu amo-te, no cemitério, à beira do esqueleto, eu amo-te e é verdade, ainda hoje, eternamente, ternamente to repito, mas as lágrimas doem, o peso no peito dói, os soluços, eu não quero chorar, mas até quando não choro tu estás lá, estás na praia, a fingir que brincas. No meu quarto, eu tento adormecer, mas sei que lá estás, eu sinto-te, mas sei que estás morta e estás lá, arrepio-me, não de medo, mas de remorsos, nessas alturas não digo que te amo, porque nessas alturas odeio-me por tudo o que não disse e tudo o que não fui, e por tudo o que disse e tudo o que fui, odeio-me e peço-te para me deixares embora, porque tu foste minha amiga e eu não te mereço, porque eu quero dormir e tu não me deixas, és essa grave memória.
Adormeço.
Primeiro sono.
És sempre tu e eu. Eu contigo. Tu às vezes estás morta, outras estás viva. Todas são odiosas, porque depois acordo, lavada em suor. E ainda com o sabor amargo da tua lembrança. Tento não chorar. Viro-me para um lado e para o outro, com medo de adormecer.
Segundo sono.
Não interessa em quantos sonos vou, tu estás sempre no sonho, naquela casa. E eu acordo sempre a chorar.
Último sono.
Hei-de acordar sem que os meus pais o saibam. Ouço-os a baterem as portas dos armários, a abrirem com cuidado os estores, ouço passos no corredor, vozes, ouço uma porta que se fecha, póc-póc dos chinelos a baterem contra os degraus, na luta contra as escadas, a porta a abrir, a porta a fechar. Sei que foram comprar pão e que não tenho muito tempo. Deixo o choro romper, mas tomo cuidado de o interromper. Levanto-me, lavo a cara, lavo os olhos. Estão pesados e cansados. Eu estou cheia de sono. As olheiras fazem covas, assustam. Lavo os olhos, vermelhos. Deixo-me assoar, passo a escova pelo cabelo. Não estou melhor, mas disfarça. Volto para a cama e olho o dia que amanhece, pela janela. Esse momento é de paz, é o único de paz num dia inteiro. É sempre interrompido, bruscamente. Passos a subir as escadas. Conto-os, apesar de os saber de cor. A porta abre-se e eu fecho os olhos. Controlo a respiração. Dali a pouco, há-de aparecer alguém que me vai acordar. Eu quero chorar. Ainda não deitei tudo. Mas não posso, faço por fingir que sorrio.
Doloroso. Porque, a cada momento, tenho esperanças estúpidas. Porque, a cada momento, foi tudo um sonho ou uma partida de mau gosto.
Se me chamam, se me dizem,
Adriana, desce, vamos embora!
Eu ouço,
Adriana, está aqui a Joanna!
Eu quero chorar quando me fixo no espelho, porque não me consigo olhar.
Com outros, finjo que está tudo bem. Finjo que já passou. Mas como pode passar?
Como pode passar, se ela está presente nos lugares mais imagináveis?
Amo-te. Perdoa-me, por favor.
Amo-te e não consigo evitar.
Perdoa-me, minha querida,
quem me dera poder merecer uma fracção da amizade que me deste.
Obrigada por tudo, e perdoa-me.

Novo Dia (macabro e parvo)

2 críticas

Um dia novo amanhecia no largo, o mar ouvia-se ao longe e as gaivotas pousavam no topo dos edifícios, calmas, como a brisa. Esse dia que começava alinhava-se com os outros dias, no correr do tempo e assemelhava-se a tantos outros. Se o pudéssemos saber de antemão, não nos preocuparíamos tanto quando atravessamos a estrada ou quando nadamos no mar, sob o olhar perturbador da bandeira vermelha. E, por outro lado, se não tivéssemos esse cuidado, tudo seria alterado e o dia poderia ser diferente.
O Sol, as nuvens desaparecidas, a brisa calma eram todos prenúncios de bom dia. Podemos imaginar mil e uma maneiras de não ser, mas, por agora, vamos ser optimistas. Porque esta manhã começa bela.
Um gato passeia agilmente por entre os escombros. Pois, sim, esta cidade está despedaçada e não se vêem sobreviventes. Excepto aquele gato. E o mar. O gato percorre o que já foram avenidas com passo rápido, para não se deixar apanhar pelo que tenha ficado para trás. Este gato não tem destino, porque acompanha a vida pelo que ela é presentemente. Para este gato, não há passado nem futuro. A cidade está assim porque sempre foi assim, porque sempre será assim. Não é que ele não se lembre - simplesmente, não quer lembrar.
O gato avança por entre estilhaços de parede escura, caída, desfeita, desmoronada. Algo emerge daquele pedaço de terra. Uma mão, um braço, um ombro. O gato segue viagem e deixamo-lo entregue a si próprio, pois decerto que quem só olha o presente não tem grandes histórias a contar senão as que podemos ver.
O Sol ergue-se do mar, tal como a mão se ergue dos blocos de madeira e pedra degradados pelo tempo e pelas bombas. A luz esmorece, até o Sol se envergonha perante tal visão: há uma extensão de um ser que luta pela vida. O Sol esconde-se atrás da primeira nuvem que encontra. A mão procura, apalpa o ar, apalpa o chão, retorce-se e está retorcida, já não é mão, já não é braço. Está sangrada, está ferida. Será que vive?
Cai para o lado.
Está morta.

O Sol nasce, então, descansado. A brisa treme e faz tremer a areia. O Verão morre no céu e o frio inunda a terra. O Sol não diz nada, só ilumina, não aquece. A cidade apagada, despedaçada, torna-se inferno gelado.
A cidade cai para o lado.
Está morta.
O Sol está morto, já nem ilumina, está escondido, envergonhado, está morto.
E a brisa, só penteia remoinhos na areia.
Até que já nem isso, a brisa esmorece.
Está morta.
Está tudo morto.