Paredes caladas

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Faz de conta que nos cruzámos no metro,
e que tu ias a ler aquele meu livro preferido e eu te quis falar,e não disse nada.

Faz de conta que nos cruzámos outra vez no metro,
e tu ias a ouvir qualquer coisa um pouco alto demais,e eu não conhecia, mas quis-te perguntar,e não disse nada.

Faz de conta que hoje não nos cruzámos no metro,
e eu amaldiçoei todos os dias em que não te disse nada.

E amanhã, se te vir,
terei coragem para te falar?

Nem sequer está bem escrito

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Nem tem a força das palavras desenhadas na parede.

Nem tem a simplicidade da poesia.

Nem faz muito sentido, se calhar.

E a mesma voz que me diz, "arrisca, atreve-te", é a que me manda sentar.

E é o mesmo amor que não faz sentido,
porque meia dúzia de palavras não são nada.
E a cegueira é a mesma cegueira que noutros dias faz sorrir,
que noutros dias faz sonhar,

E só porque ele gosta das mesmas tretas que tu,
não o faz teu amigo para uma vida.

E só porque alguém é simpático para ti,
não cria um elo especial de sorrisos entre ambos.

E só porque tu achas que sim,
não quer dizer que haja um dia mais que um sonho tolo, mais que este sonho tolo,

Mas neste momento, agora mesmo,
estou bem capaz de te dizer,
entre ter-te assim, e nunca mais te ver,
casavas-te comigo?


(enfim, para que te mostro isto, se nem sequer está bem escrito)

A cor das Joanninhas

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Quero falar-te dos dias de tempestade. Dos dias em que acordo de um sonho para um pesadelo. Quero falar-te das ondas do mar, e como num dia te elevas na crista, para no outro te afogares no peso da rebentação. Da espiral que começa lenta e calma, e que cada vez te leva mais depressa para o fundo do poço, e só te dás conta quando já não podes sair. Quero falar-te do quanto os olhos pesam o dobro, do quanto o céu pesa o triplo, do quanto sair da cama pode ser adiável, para daqui a uma hora, para daqui a duas, para amanhã. Quero falar-te de como a cara dói quando tentas sorrir, porque até sorrir magoa. 
Quero falar-te daquele teste, no primeiro ano, onde comecei a chorar, mas não por causa do teste. Quero falar-te daquela aula, no segundo ano, onde comecei a chorar e ninguém deu conta. Quero falar-te daquele laboratório, no terceiro ano, de onde saí para ir à casa de banho, para abrir os pulsos em sumo de morango.
Quero falar-te dos dias em que a dor física doía menos que a amargura no meu coração. Daqueles em que os meus braços, o meu corpo, eram campos de batalha, de um ódio enraizado e um desespero transbordante. Quero falar-te de todas as vezes em que achei divertido o efeito alucinante da bebida com a medicação. Quero falar-te daquele dia em que tomei um, e tomei dois, e tomei três para ser feliz, e tomei quatro, e tomei cinco, e tomei seis, e somei sete, e ao fim já eram oito os que contaste, quando foram nove, e talvez dez, e até onze, e só parei nos doze porque já não tinha mais comigo. Quero muito falar-te desse dia, porque me salvaste, quando eu não queria ser salva. Quero falar-te das misturas, das buscas em casa por todo o tipo de drogas, e da pequena lata-bomba, guardada para emergências. Quero contar-te das vezes em que lancei tesouradas no cabelo, para não ser na carne. Quero contar-te de todas as vezes em que levei os dedos à boca sem querer saber. Quero falar-te daqueloutra vez em que o álcool foi demasiado abaixo com os comprimidos, e quem sabe não foi a segunda vez que tentei. Quero dizer-te de todas as vezes que fui para a cama por um beijo, por um abraço, porque penso assim tão pouco mais de nada de mim.
Quero falar-te de cabelos louros e olhos azuis, há tantos anos, afundados numa tristeza demasiada, e não conseguir fazer nada para ajudar a pessoa que mais amei no mundo. Quero falar-te de cabelos morenos e olhos castanhos, que hoje vi, e que são iguais àqueles azuis, e que são iguais àqueles que vejo ao espelho, e saber que não posso fazer nada.
Quero falar-te das músicas, dos livros, dos filmes, das pessoas, dos momentos virtuais que me ajudaram a aguentar nos piores momentos, e a sair, degrau a degrau, a escada infinita do fundo do poço.
Do fundo do poço, quero contar-te como a vida não volta a ser a mesma, porque agora viste o fundo. Do fundo do poço, não te quero nem falar.
Do cimo do poço, quero dizer-te o que nunca me disseram, como é difícil o intermédio, com um buraco aos nossos pés, a ameaçar puxar a qualquer momento. Quero contar-te dos meus passos inseguros e vagarosos para me manter à tona da água. Quero falar-te das coisas pequenas, da respiração devagar, de tudo a que me agarro para ir em frente, como uma corda invisível, e tentando esperar que me leve ao sítio certo.
Quero explicar-te que as minhas lutas ainda não estão vencidas.
Mas quero dizer-te que, um dia, o escuro torna-se luz, e respirar é fácil outra vez.