Gosto de mim

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Um certo mal que me faz
Perdendo este tempo que não sei de quem é
Sem sentido, sem rumo, sem orientações

Mas se à felicidade não sei se a quero
Ou talvez como a alcançar
Tudo me envia rumo ao desespero

E triste e desorientada
Arquitecto trampolins na estrada
Como quem gosta de voar

Um dado ópio que me atravessa as veias
As traqueias, um leve fumo
Penso e descanso
Pois o futuro há-de chegar




E um ridículo sempre ajuda
Um apetitoso rasgo de demência
Tiquetaqueando pela casa fora

Num hospício de insanidade mental
Prevejo que o meu ser deveria estar
Mas um ponto me impede

Nada me impede de ir pelo abismo
Excepto o quê? Eu ou os outros?
Morte certa de quem é louco
A loucura é um dom que tende a invejar

Marcho pelo fumo adentro
Já fiz quatro tercetos e três quadras
Sem rimas nem métrica, não-poesia
Sou eu, sou eu, viva! =D

Quem és tu?

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Vamos estar aqui com os pés bem assentes na Terra. Vamos estar aqui com cabeça, tronco e membros.

Está bem, então. O meu corpo vai ficar na cadeira até ao toque da campainha. Entretanto, porém, vou matá-lo por algum tempo.

Vou deixar o meu bem mais antigo nesta sala, oco, desprovido de vida, e vou-me iluminar bem longe, onde não há nuvens, nem cores, nem estrelas, nem pássaros, nem flores, nem glândulas endócrinas, nem Deus, nem louvados, nem abençoados, nem circo, nem vida, nem morte. Só eu.

Muito para além da filosofia, da psicologia, a verdade única. Cá, compreendo como funciona toda a matéria, cada mecanismo, cada lei, mas que me importa, agora, a matéria? Cá, desprovida de hormonas, estou desprovida de sentimentos. A matéria comporta-se de um modo tão simples d'entender. Mas, mas cá, sou só uma consciência. Não há corpo, pensamento, não há vapor, não há escuro. Não há, simplesmente.

E, uma vez cá, para quê voltar à aulinha? À vida?

Não vou revelar o único segredo que acho devido guardar. O motivo para que o meu corpo seja animado por uma espécie d'alma. Não o vou revelar.

Mas houve um motivo. E por esse mesmo motivo, tenho de voltar.

Através do conhecimento adquirido lá, que desde sempre conheci, reanimo o sistema nervoso. Foi como que um sonho que durou tempo nenhum. Para as outras pessoas, o meu corpo apenas piscou os olhos. Pessoas que não se apercebem do extraordinário milagre do corpo que, perante eles, ressuscitou.

Um único ser soube. Um de pensamentos e impulsos. O software que ajuda a animar o meu corpo. Ego. Ela tenta imaginar a minha viagem, imaginando um fantasma a sair do corpo que partilhamos, a voar, até às estrelas. Mas duas palavras bastam para descrever o lá: não há.´

E tu, Ego, imaginas luzes d'iluminação, campos verdejantes, um sorriso. Falta-te imaginação, Ego. A espécie humana tem lapsos d'imaginação.

Possui grande criatividade, sim, mas falta imaginação.

Eu sou o nada, Ego. Sou o vazio na tua vida que não compreendes. Sou nem um arroto d'ar da tua lata de refrigerante. Sou o nem. E, no entanto, sou tudo.

Por que não?

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Por um momento, gostava de saber, para além de quem sou, que tipo de inteligência criativa tem o ser humano. Olho à minha volta e não compreendo. Talvez seja da idade, à qual tantos se prendem, que ainda não me permitiu amadurecer o suficiente para que eu perceba, enfim, coisas de adultos. Coisas de adultos. Não compreendes porque és muito nova. Achas que era bonito as pessoas andarem por aí aos saltos cada vez que lhes apetecesse, Diana? Achas que era bonito fazermos todos figura de palhaços?
Acho.

Acho muito bonito. Saltar à chuva, enquanto caminho na rua. Saltar de uma casa para a outra mal pondo os pés no chão. Achas que isso são comportamentos de uma pessoa séria, Diana? Pois isso não acho. Mas acho extremamente bonito. Mamã, por que não há trampolins nas ruas para saltarmos de vez em quando? Por amor de Deus, Diana, isso não são conversas de uma menina crescidinha!
Eu só queria um pouco de liberdade. Mas quando falo dela, enchem-me os ouvidos com "no meu tempo é que não havia liberdade" ou "se tivesses vivido antes do 25 de Abril, não dizias esses disparates" e tantas histórias do 25 de Abril...
Foi bonito, o 25 de Abril. Foi um pouco mais de liberdade. Mas o mundo evolui. Por que despreza o ser humano a sua criatividade?Por que não aproveitamos a liberdade que nos foi dada para a usufruirmos totalmente?
Acabou a conversa, Diana. Os trampolins nas ruas não são bonitos e ponto final.
Mas eu vejo-te, mamã, a chegares a casa, todos os dias, tão cansada...
tão triste...
Não será pela falta de coisas bonitas?

Os grandes e superiores

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O senso comum... grande diferença entre o povo e os filósofos. Oh, sim, a Filosofia questiona, a Filosofia reflecte, a Filosofia é grande!Que profunda é a Filosofia! Que iluminados são os Filósofos!Que acéfalos!"Temos cabeça é para pensar" - e lá vão eles, balançando o seu cu de escola em escola, sempre tão inteligentes, tão superiores!Mas eu vejo-os... será que só eu os vejo?... vejo-os a viverem a mesma vida que o senso comum. A adaptarem-se à vida que lhes mandam viver ou, então, abominam a mudança e tornam-se "conservadores". Tal como o povo. Só eu imagino e crio trampolins nas ruas e vou de sala em sala por trapézios e deixo que chova num quarto e tenho aulas ao ar livre... e caminho à perfeição... à reversibilidade... à verdade instintiva, sem problemas. A maior beleza de uma teoria não é, com certeza, ser refutável."Nós pensamos mais. Nós pensamos melhor." Eu crio. Eu invento mundos. Eu descubro verdades.

Só hoje, um mimo de nervos em franja

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Pressão, hoje depois de sair. Com problrmas a pesar mais que a gravidade, como poderia sentir-me leve como ontem? A gravidade é relativa e eu estou nervosa, pregada ao chão. Não vos consigo ver nem ouvir, porque hoje fiquei nervosa e caio e choro, triste Diana. Não há chave que não a mimnha e agora, outra vez, fiquei nervosa e o que faço agora para aliviar? Inspiro e expiro e o meu corpo fecha-me cá dentro e eu não posso sair e ele só pode escrever, mas não o que eu quero, não obras-primas, só lixo, lixo, lixo. Lixo e nervos.

Eu quero

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Eu quero
Escrever
Escrever
Sempre que me apetecer
Escrever
Escrever
Até não mais poder
Escrever
Escrever
Fazer uma pausa para ler
Escrever
Escrever
Mesmo sem nada acontecer
Escrevinhar
Rabiscar
Errar
Riscar
Até a aula acabar
Escrever
Escrever
Rebentar co'a escala
Escrever
Escrever
Com HERROS
Sem eles
Sem 20 a Português
Escrever
Escrever
Q'é o que me faz viver
Assim
Feliz
Escrever
Eu quero

De uma avó para a outra

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Também tu morreste
Avozinha
Diz-me, para onde foste?
Aquela debaixo da terra já não és tu
Avozinha
É só um corpo de ossos
Que eu ofereço flores
E eu quero saber
Onde estás a morrer
Avozinha
Que a viver não te vejo
Como podes ter desaparecido
Avozinha?
E as tuas histórias
E a tua mãe
E a tua irmã
E o teu filho
E só eu fiquei
E a minha mãe
E a mãe dela
Que tu
BisAvozinha
Desapareceste
Dos olhos daquela que recebe as minhas flores
E todas as noites me pergunto
Onde estás tu,
Avozinha?

Do mundo que me deixam

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Que somos nós a geração futura. Que a nós nos cabe decidir. É o que vocês dizem de nós. E, consequentemente, vai ser em nós que vão depositar os vossos problemas, os vossos erros. Em mim, no meu irmão, nos nossos amigos e em toda a nossa geração. Para que os responsáveis sejamos nós e não o pobre e velho moribundo que hás-de ser. Cá estão as consequências das tuas acções. E "Já não vou estar vivo quando isso acontecer.", mas vou estar eu. Não quero saber se um dia vais morrer, porque é por tua culpa que eu vou ter de aguentar o que aí vem. Não sei nem faço ideia do que vou herdar, mas quando isso chegar... é algo que vai acontecer, sabes? Ou não sabes? Mas sou eu que vou ficar mal, sou eu que vou ficar num mundo sem solução. E que mais hei-de fazer? Porque és tu, que não te preocupas comigo nem com o meu irmão, só contigo, tu é que tens de mudar o mundo primeiro. Porque não vês o que fazes aos teus semelhantes, podias ser tu!

Agora eu, primogénita, estou sozinha. Não, estou contigo, meu irmão, vamos fazer o quê com o legado dos nossos pais? De braço dado, pelo único caminho que nos deixaram, vamos nós para o abismo, caminhando, um passo à frente. Olha para isto! Daqui do alto do abismo, olha para o mundo escuro que nos deixaram... Diz-me, agora, o que fazemos? De braço dado, para o fim do mundo, eu contigo, só nós dois... E a neve, lá em baixo, é a única visão bela do fundo do abismo. Senta-te aqui, ao meu lado, a contemplar o fim do mundo.

Chanson du Vent

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Uma massa de ar sobe, desce, leva tudo à sua frente. Sobe, desce e sibila por entre o espanta-espíritos, como que a chamar alguém... V’là l’bon vent... O Vent du Nord, vento da coragem, traz os meses do Inverno, traz o frio, o gelo, traz o cheiro a florestas e sabor a hortelã. O Vent du Sud, vento d’amargura, traz os meses de Verão, traz o calor, as tempestades de areia, traz o cheiro a baunilha e sabor de chocolate-pimenta. V’là l’joli vent... tocam os timbales e as charamelas e as campainhas tilintam. É o vento a sonhar com quem ele quer... chama-o, chama-o, assobia nas casas, tilintam os espanta-espíritos. Arranha o cabelo e voam capuzes. V’là l’bon vent... As folhas batem-me e faço as malas para o mundo à minha frente. Ma mie m’appelle, mon vent m’appelle.

Amargura

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Uma mancha que, por mais que a queiram ignorar, há-de destroçar-me, até desaparecer.

Num canto funesto dos meus sonhos, lá está ela. Oiço-a a soluçar, a suplicar, a pedir ajuda, e a sua dor torna-se na minha dor, os gritos não desaparecem e vêm comigo de casa para a escola para casa. Basta-me piscar os olhos, para ver a sua imagem, aquela menina, bem mais nova do que eu, atirada para o chão, como um trapo. Sei que foi vendida, pela família, por pouco mais de um euro, a um desses bordéis de onde ela nunca vai conseguir escapar. Sei, porque estes não são sonhos comuns, aparentam ser clarividências, visões, rasgos de revelação do que vai no mundo. A raiva, a dor, a angústia latejam, apertadas, no meu peito, e quem sou eu para sorrir perante a desgraça da pobre Radha? A crueldade de que alguém é capaz contra uma criança atormenta o meu coração. Subitamente, uma sombra abate-se, imensa e escura, naquele lugar de sofrimento, e a menina cala-se. Ela sabe e eu também sei quem é: a mulher gorda, dona do bordel. Traz mais um dos clientes, um porco javardo imundo asqueroso que não merece sequer tocar em Radha. Para a velha gorda, porém, as prioridades avaliam-se pelo dinheiro que lhe oferecem pela pequena. Com que dinheiro se compra a dignidade de uma menina? O homem usa e abusa dela, ela nada diz, mas pensa, com dor, pesar, angústia, tristeza, medo e raiva e as lágrimas, que não pode confessar, sou eu que as choro, como se uma força maior que eu me ajudasse a sobreviver a tanto mal... pois eu tenho de a chorar. É o único apoio que consigo transmitir. Se ela pudesse, ao menos, saber que, no mundo, alguém chora por ela...
A toda a hora, vejo aquela imagem, aquele vídeo. Nunca, nem por um segundo, me esqueço de Radha, da dor de Radha, comigo, aqui, tão confortável, e Radha, lá longe, na longínqua Índia. Vejo-a cada vez mais ao longe, mas, à volta dela, estão todas as meninas com menos de 18 anos, ilegais, daquele bordel, todas aquelas Radhas, presas, contra sua vontade, à volta da que eu conheço. E esta fica ainda mais longe e eu vejo, primeiro, todas as meninas de todos os bordéis da longínqua Índia, depois, todas as indianas menores que são forçadas a ser prostitutas, mesmo nos sítios mais horríveis. O grupo é inimaginável, a figura não desaparece dos meus olhos, mais abertos que nunca; já não tenho voz e não sei que força é essa que não me deixa morrer por toda a desgraça deste mundo. Mas o grupo cresce, ainda há mais, muito mais, para chocar o meu frágil coraçãozinho de lebre. Vejo todas as crianças que, na Índia, são exploradas, violadas, traficadas, vendidas, negociadas, escravizadas das mais brutais maneiras, e sofro violentamente. Claro que há mais, esta visão não pode ficar na Índia... Então, todos os meninos e todas as meninas de todo o mundo que de qualquer forma sofrem, que das mais variadas maneiras vêem os seus direitos violados emergem aos meus olhos. Vejo a guerra, a fome, a pobreza, a exploração, a destruição, a injustiça, mas vejo sem ver, porque, apesar de o ver, nada vejo, pois a verdade, o seu tormento, o seu medo, a sua fome, a sua angústia, só eles podem saber, não eu, um ser imbecil que nada sabe. Perante eles, só vejo que os meus caprichos são arrogantes e que a racionalidade do ser humano, de que tantos se orgulham, é a causa maior deste pesadelo.

Espaço em branco

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Folhas e folhas
Inúmeras páginas
Que nunca hão-de ser escritas
Folhas quase intactas
Saltam do caderno para o lixo
Sem a ponta do meu lápis
Sem criatividade
Sem significado
Sem poesia
Folhas que, com certeza, não são minhas
Q' eu não sei brincar co'as rimas
Mas escrevo o que me apetecer
Folhas brancas, em branco, vazias
Tão brancas
Tanto espaço para eu escrever!
E, assim, peço às minhas colegas:
-Dás-me as tuas folhas?

O dia bom

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Branco. Branco fresco, hortelã-pimenta. O chão, os pinheiros, o céu... Saio toda de branco, mas descalça, porque não há-de tardar até que os meus pés fiquem brancos. Só os meus lábios contrastam. O meu sorriso vermelho de tanto o morder por um vermelho mais vivo. Beijo a neve, vermelha do meu sangue. Rebolo encosta abaixo, deixando o meu sangue escorrer, num momento bom e limpo que parece ter durado o dia todo. Porque até já está a escurecer.

Depois do adeus

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Maria espera, impaciente, o fim do discurso do padre, do barulho das pás na terra, do seu choro forçado. Agora que a avó morreu, ela é livre de ir ao velho sótão da casa que já é da sua mãe.
Sai da necrópole, desce a rua, até chegar aos portões enferrujados. Entra sem dar satisfações. Numa aldeia pequena como aquela, as pessoas não conhecem o significado de fechadura. Sobe as escadas e, pela segunda vez em toda a sua vida, respira o cheiro a velho do sótão. Sabe exactamente onde procurar. No mesmo sítio onde a encontrara à muitos anos atrás, está uma caixa de sapatos.
-Sabia que não me ias desiludir, avó!
Lá dentro estão recordações do passado: fotografias, cartas, documentos, bilhetes de comboio...
Maria pega no primeiro papel caído e começa a ler: