Eu quero
De uma avó para a outra
Também tu morreste
Avozinha
Diz-me, para onde foste?
Aquela debaixo da terra já não és tu
Avozinha
É só um corpo de ossos
Que eu ofereço flores
E eu quero saber
Onde estás a morrer
Avozinha
Que a viver não te vejo
Como podes ter desaparecido
Avozinha?
E as tuas histórias
E a tua mãe
E a tua irmã
E o teu filho
E só eu fiquei
E a minha mãe
E a mãe dela
Que tu
BisAvozinha
Desapareceste
Dos olhos daquela que recebe as minhas flores
E todas as noites me pergunto
Onde estás tu,
Avozinha?
Do mundo que me deixam
Que somos nós a geração futura. Que a nós nos cabe decidir. É o que vocês dizem de nós. E, consequentemente, vai ser em nós que vão depositar os vossos problemas, os vossos erros. Em mim, no meu irmão, nos nossos amigos e em toda a nossa geração. Para que os responsáveis sejamos nós e não o pobre e velho moribundo que hás-de ser. Cá estão as consequências das tuas acções. E "Já não vou estar vivo quando isso acontecer.", mas vou estar eu. Não quero saber se um dia vais morrer, porque é por tua culpa que eu vou ter de aguentar o que aí vem. Não sei nem faço ideia do que vou herdar, mas quando isso chegar... é algo que vai acontecer, sabes? Ou não sabes? Mas sou eu que vou ficar mal, sou eu que vou ficar num mundo sem solução. E que mais hei-de fazer? Porque és tu, que não te preocupas comigo nem com o meu irmão, só contigo, tu é que tens de mudar o mundo primeiro. Porque não vês o que fazes aos teus semelhantes, podias ser tu!
Agora eu, primogénita, estou sozinha. Não, estou contigo, meu irmão, vamos fazer o quê com o legado dos nossos pais? De braço dado, pelo único caminho que nos deixaram, vamos nós para o abismo, caminhando, um passo à frente. Olha para isto! Daqui do alto do abismo, olha para o mundo escuro que nos deixaram... Diz-me, agora, o que fazemos? De braço dado, para o fim do mundo, eu contigo, só nós dois... E a neve, lá em baixo, é a única visão bela do fundo do abismo. Senta-te aqui, ao meu lado, a contemplar o fim do mundo.
Chanson du Vent
Uma massa de ar sobe, desce, leva tudo à sua frente. Sobe, desce e sibila por entre o espanta-espíritos, como que a chamar alguém... V’là l’bon vent... O Vent du Nord, vento da coragem, traz os meses do Inverno, traz o frio, o gelo, traz o cheiro a florestas e sabor a hortelã. O Vent du Sud, vento d’amargura, traz os meses de Verão, traz o calor, as tempestades de areia, traz o cheiro a baunilha e sabor de chocolate-pimenta. V’là l’joli vent... tocam os timbales e as charamelas e as campainhas tilintam. É o vento a sonhar com quem ele quer... chama-o, chama-o, assobia nas casas, tilintam os espanta-espíritos. Arranha o cabelo e voam capuzes. V’là l’bon vent... As folhas batem-me e faço as malas para o mundo à minha frente. Ma mie m’appelle, mon vent m’appelle.
Amargura
Uma mancha que, por mais que a queiram ignorar, há-de destroçar-me, até desaparecer.
Num canto funesto dos meus sonhos, lá está ela. Oiço-a a soluçar, a suplicar, a pedir ajuda, e a sua dor torna-se na minha dor, os gritos não desaparecem e vêm comigo de casa para a escola para casa. Basta-me piscar os olhos, para ver a sua imagem, aquela menina, bem mais nova do que eu, atirada para o chão, como um trapo. Sei que foi vendida, pela família, por pouco mais de um euro, a um desses bordéis de onde ela nunca vai conseguir escapar. Sei, porque estes não são sonhos comuns, aparentam ser clarividências, visões, rasgos de revelação do que vai no mundo. A raiva, a dor, a angústia latejam, apertadas, no meu peito, e quem sou eu para sorrir perante a desgraça da pobre Radha? A crueldade de que alguém é capaz contra uma criança atormenta o meu coração. Subitamente, uma sombra abate-se, imensa e escura, naquele lugar de sofrimento, e a menina cala-se. Ela sabe e eu também sei quem é: a mulher gorda, dona do bordel. Traz mais um dos clientes, um porco javardo imundo asqueroso que não merece sequer tocar em Radha. Para a velha gorda, porém, as prioridades avaliam-se pelo dinheiro que lhe oferecem pela pequena. Com que dinheiro se compra a dignidade de uma menina? O homem usa e abusa dela, ela nada diz, mas pensa, com dor, pesar, angústia, tristeza, medo e raiva e as lágrimas, que não pode confessar, sou eu que as choro, como se uma força maior que eu me ajudasse a sobreviver a tanto mal... pois eu tenho de a chorar. É o único apoio que consigo transmitir. Se ela pudesse, ao menos, saber que, no mundo, alguém chora por ela...
A toda a hora, vejo aquela imagem, aquele vídeo. Nunca, nem por um segundo, me esqueço de Radha, da dor de Radha, comigo, aqui, tão confortável, e Radha, lá longe, na longínqua Índia. Vejo-a cada vez mais ao longe, mas, à volta dela, estão todas as meninas com menos de 18 anos, ilegais, daquele bordel, todas aquelas Radhas, presas, contra sua vontade, à volta da que eu conheço. E esta fica ainda mais longe e eu vejo, primeiro, todas as meninas de todos os bordéis da longínqua Índia, depois, todas as indianas menores que são forçadas a ser prostitutas, mesmo nos sítios mais horríveis. O grupo é inimaginável, a figura não desaparece dos meus olhos, mais abertos que nunca; já não tenho voz e não sei que força é essa que não me deixa morrer por toda a desgraça deste mundo. Mas o grupo cresce, ainda há mais, muito mais, para chocar o meu frágil coraçãozinho de lebre. Vejo todas as crianças que, na Índia, são exploradas, violadas, traficadas, vendidas, negociadas, escravizadas das mais brutais maneiras, e sofro violentamente. Claro que há mais, esta visão não pode ficar na Índia... Então, todos os meninos e todas as meninas de todo o mundo que de qualquer forma sofrem, que das mais variadas maneiras vêem os seus direitos violados emergem aos meus olhos. Vejo a guerra, a fome, a pobreza, a exploração, a destruição, a injustiça, mas vejo sem ver, porque, apesar de o ver, nada vejo, pois a verdade, o seu tormento, o seu medo, a sua fome, a sua angústia, só eles podem saber, não eu, um ser imbecil que nada sabe. Perante eles, só vejo que os meus caprichos são arrogantes e que a racionalidade do ser humano, de que tantos se orgulham, é a causa maior deste pesadelo.
Espaço em branco
O dia bom
Branco. Branco fresco, hortelã-pimenta. O chão, os pinheiros, o céu... Saio toda de branco, mas descalça, porque não há-de tardar até que os meus pés fiquem brancos. Só os meus lábios contrastam. O meu sorriso vermelho de tanto o morder por um vermelho mais vivo. Beijo a neve, vermelha do meu sangue. Rebolo encosta abaixo, deixando o meu sangue escorrer, num momento bom e limpo que parece ter durado o dia todo. Porque até já está a escurecer.
Depois do adeus
Maria espera, impaciente, o fim do discurso do padre, do barulho das pás na terra, do seu choro forçado. Agora que a avó morreu, ela é livre de ir ao velho sótão da casa que já é da sua mãe.
Sai da necrópole, desce a rua, até chegar aos portões enferrujados. Entra sem dar satisfações. Numa aldeia pequena como aquela, as pessoas não conhecem o significado de fechadura. Sobe as escadas e, pela segunda vez em toda a sua vida, respira o cheiro a velho do sótão. Sabe exactamente onde procurar. No mesmo sítio onde a encontrara à muitos anos atrás, está uma caixa de sapatos.
-Sabia que não me ias desiludir, avó!
Lá dentro estão recordações do passado: fotografias, cartas, documentos, bilhetes de comboio...
Maria pega no primeiro papel caído e começa a ler: