Ilegal Anormalidade (NaNoWriMo)

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Voltou tudo ao normal. Era estranho como tudo voltava ao que sempre fora de um modo tão natural, como se nada tivesse acontecido. No entanto, tal estranheza nada mudava. Se uma figura pública tivesse sido encontrada morta, todos rodeariam durante muitos dias a história, apesar de tal falta não mudar, realmente, a vida dos que o conheciam. Passado alguns dias, os meios haveriam de se render, pois o peixe já não venderia. Agora, ali, era simples. Era um imposto, imposto a todos. Na realidade, era uma multa com outro nome. A lei ressaltou de um dia para o outro. Houve queixas, houve conflitos nos arredores das grandes cidades. Houve tentativas de revolta. Mas, uma semana depois, tudo na mesma. Imposto sobre música não programada.

Havia uma pequena menina que adorava ouvir música, mas nunca a ia buscar à rádio, como todos os outros. Ela olhava em volta, há procura de árvores enormes, a que todos, de tanto habituados, já nem as viam. Ela, porém, não se limitava a olha-las, reparar nelas: agarrava-se docilmente e trepava
aos ramos mais altos. Por vezes, demorava um pouco mais até lá chegar, mas nunca desistia. Lá de cima, deixava-se embalar. E, quando voltava, trazia a cabeça muito mais cheia e poderia sempre voltar. Essa floresta é, está claro, a música, toda a música. Tudo isto não é mais que uma metáfora. Mas essa menina carregava o seu leitor com músicas e músicas, todas as que ela gostasse. Sabia que lhe davam alimento mais que tudo. Eram a alma dela em revista. O alimento, a respiração. Sem música, podia ser humana, mas não era pessoa, porque se tornava oca.

Imposto sobre música não programada.

No início não lhe fez diferença. Nem a ninguém. Com o tempo, todos se habituaram a não ouvir o tipo "errado" de música, aquele que se tinha de pagar. Música era bom. Mas não um luxo. Um imposto começa a ser um pouco demasiado para poderem ter o pequeno conforto. Dispensável, portanto. Não para ela. Continuou a dar as onças pelos segundos, longos minutos, ternas horas em que escutava quem quer que preferisse no momento. Ligava a caixinha de música e, algures na sede da polícia do governo, um cronometro acionaria a contagem. Ela ouvia sempre música fora do programa.

Conseguia ver o que estava mal, ou "errado". As letras, chocantes e incitantes, aliciantes ao lado perigoso da vida…Os sons, todo o espectro que conseguiam abarcar de sons, estranho, difícil de seguir. Ela compreendia - o governo tinha medo dos pensadores, das pessoas que fossem levadas pelas músicas a fazer o não esperado. E, assim, ninguém ouvia. Ela não o dispensava, porém. Era o ar que lhe compunha a alma. Continuou, submissa, a pagar todos os cêntimos que cada segundo valia, porque cada segundo valia a pena.
Com o tempo, deixou de ter comida em casa. Vendeu a roupa e ficou apenas com um farrapo. A música ia-lhe morrendo. Os segundos, cada vez menos. Era como uma droga, lhe diziam. Com o tempo, começou mesmo a ser vista como uma droga. A estranheza dos sons. Alienados deste mundo. Nada poderia existir realmente assim. Drogados dos músicos que só tocam e cantam o irreal, diziam. Ela via os que lhe falavam assim e notava-lhes a arrogância de se acharem maiores e que as palavras haveriam de fazê-la calar, fazê-la parar. Se antes, oh, ao menos antes, gritassem, a plenos pulmões, talvez ganhassem um pouco de razão e ela conseguisse perceber as tolas insignificantes palavras.

Com o tempo, teve de vender tudo. Deixou de ter dinheiro. Até que deixou de haver música.

No dia em que deixou de haver música, ela atirou-se ao chão sem conseguir respirar. Sofucava com as lágrimas, de olhos a jorrar de vermelho. Soluçava e tinha a garganta cheia de amargo. Todos abanaram as cabeças e ninguém a ajudou. Pobre drogada. As mães afastaram os filhos dela, repreendendo-os.

Uma semana depois, no meio da rua, começou a cantar, a mais cara das músicas que conhecia. Cantou-a bem alto, para que todos a ouvissem. Calou as lavadeiras dos prédios circundantes, cantou e calou a cantiga dos melros que debicavam as primeiras frutas, cantou e cantando mais alto calou as buzinas distantes e as sirenes de ambulâncias e cantou e calou o mundo só com uma, a mais cara das músicas, cantou até ser calada. Quando o bastão da polícia a atingiu com brusquidão, o mundo que ela calara ficou cego e negro. E sentiu a cara contra o chão. E não sentiu mais nada.

Do canto de uma estreita avenida que dá para esta cena, encontra-se uma outra menina, um pouco mais nova, tentando se esconder por detrás do vão da escada. Ela chora a morte da sua heroína e mentora e está aterrada de tão assustada. Essa menina vai crescer num outro mundo, onde já não é preciso pagar para ouvir. Ela há-de se agarrar à sua caixinha de música, com atenção e absorvendo tudo o que pode. Todos hão-de estranhar tais modos e de lhe perguntar por que está sempre de música nos ouvidos. Ela, simplesmente, irá encolher os ombros e agarrar-se com força ao que tem e aproveitar cada segundo em que pode ouvir música sem ter de pagar imposto nem multa. Ela, simplesmente, nunca vai mostrar a ninguém o que ouve, com medo do bastão da polícia. E essa será aquela que mais bem saberá ouvir música. E a que terá a alma mais cheia. E a que nunca deixará nada voltar ao normal quando o mundo mudar as regras da liberdade, mesmo à sua frente.

Mãe, tenho saudades minhas

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Mãe, tenho saudades tuas.
Dos dias em que levavas a tua pequena princesa à cidade. E aqui foi onde tu nasceste, e aqui é onde a mãe compra as meias, não toques em nada. Lembro-me de ficar quieta, à tua espera. A minha mão cabia na tua e eu mal te chegava à barriga. Quando via um pedinte na rua, chamava-te e dizia:
- Não lhe devemos dar qualquer coisa?
As tuas respostas variavam.
- Não, que é para as drogas.
- Não, que já pouco temos para nós.
- Oh, Adriana, se fossemos dar a todos...
Mas, por vezes, cedias e eu corria a pôr uma moeda na mão estendida, no chapéu, no estojo de violino ou saxofone. Muito eu gostava de dar moedas.
Eu era pequena e tinha de estar contigo. Mãe, desculpa ter roubado a tua pequenina. Mas ela teve de crescer. Tu sabias. A infância nunca é eterna. Tentei prolongar a minha, mas não deixou de ser efémera.
Com saudade,
da tua
fifi

O chapéu e o pássaro (conto)

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Uso chapéu porque estou careca. Podia ter sido pior, mas não foi e estou grata. Tenho de usar chapéu, mas até me fica bem. Se o tirar e virem a minha cabeça rapada, decerto que farão troça de mim. Não, estou segura. Protegida por um chapéu. Amanhã, posso trazer um boné, e no dia seguinte uma boina. Posso fazer uma colecção de chapéus de todo o mundo. Posso ser quantas personagens em cada dia. Estou careca. Privada dos meus doces caracóis e do seu peso gentil quando pousavam nos meus ombros com a força da rebentação das marés nas costas da areia. Os meus cabelos eram ondas suaves e deles conseguíamos ouvir o som do mar. E agora estou careca. Não levo a cabeça despida, tenho um chapéu e amanhã outro. Estou careca mas poderia ser pior. Estou careca, mas tenho saúde e tenho peito. Se bem que ainda não tenho peito realmente, um dia terei. Obrigo-me a sorrir, porque está tudo bem. Estou bem, estou segura. A mulher chorosa a meu lado na sala de espera não. Não me disse nada, mas li nos olhos dela. Está-lhe escrito em toda a cara, nas mãos que tremem, que a morte já a acolhe em seus braços gelados. Vai morrer, talvez já esteja morta. Já está pálida. Já está fria e arrefecida. Já está rija, como pedra. Esperamos sempre que continuem suaves, para alimentar a ilusão de que estão a dormir. Mas não estão. Estão mortos. Estão rígidos. E já não são vivos.
Eu estou viva.
Eu tenho chapéu e saúde e peito e estou grata.
Que mais posso que sorrir?
Tira o chapéu, diz a professora, e todos olham para mim. Já todos olhavam, eu fingia que não. Agora, é impossível de ignorar. Tira o chapéu, diz a professora. Tira o chapéu, Tira o chapéu, Tira o chapéu, repete, insiste e debita a professora. Já só é automática, agora. Tem peito e tem cabelo e não imagina a importância do que me pede. Tira o chapéu, Ana Marta, imita alguém no fundo da sala. Todos me olham e o meu sorriso desfaz-se porque o mundo parou para me ver tirar o chapéu. De súbito, deixou de importar ter peito, ter saúde ou estar viva. Não tenho cabelo. Não tenho cabelo. Palavras que murmuram ao meu ouvido, palavras que ecoam por dentro e me fazem estremecer. Deixei de ser a menina corajosa e o encanto das enfermeiras. Agora, sou a rebelde que não quer tirar o chapéu. E depois serei a que não tem cabelo. Assim posta e exposta. Não quero, por favor, não me obrigue a tirar o chapéu, por favor. Sei que o digo em voz, mas na minha voz, tímida e baixa. Tenho medo de a gritar. Mas ela ouve-me. Tem a prática de apanhar mexericos. De dois passos e um gesto, arranca-me o chapéu. O silêncio. Ninguém se atreve. Todos eles compreendem, agora. A cara dela, choque. Vai devolver-me o chapéu sem uma palavra e o mundo vai prosseguir, arrependido. Vão perguntar-me, mais tarde, se tive de tirar alguma coisa e vão contar como a antiga porteira teve de tirar o peito. Eventualmente, vão compreender o quão perto estive da morte e vão ficar assombradas.
Se ao menos a realidade fosse como a esperamos.
Se ao menos a humanidade fosse prática, lógica.
Agora, surpresa. Choque estampado nos rostos. A professora é a primeira a avançar. O choque tornou-se fogo. Então, grita-me uma voz carregada em fúria, então é por isto, menina mal encarada, que te escondes atrás de chapéus? Virou-se para a turma toda. Ninguém, numa aula minha, há-de esconder os seus actos arrependidos atrás de um ridículo chapéu! Vejam, vejam bem este vosso exemplo! Vejam, e isto disse-o como que para o abjecto mais nojento que ela alguma vez vira, a beleza de uma menina careca!
Todos me olham e não consigo dizer nada, porque o meu sorriso se desfez em lágrimas, porque o mundo parou para se rir da menina sem cabelo. Ninguém percebe. Ninguém vê que podia não ter peito. Ninguém vê que podia ainda estar doente. Ninguém vê a mulher pálida, fria, rígida e morta comigo na sala de espera. Ninguém vê o abraço gelado da morte que nesse dia a escolheu a ela mas que do mesmo modo me poderia ter escolhido a mim. E hoje podia ser o meu enterro e a escola fechava em luto e ninguém me obrigaria a tirar o chapéu e ninguém se riria de mim e não seria eu a chorar, todos me olhariam e o meu sorriso haveria de estar desfeito em morte e o mundo pararia para me chorar. Ninguém vê nada disto. Arrumo-me no canto da sala, em choro apertado, sem chapéu e sem vida. Ou assim a desejaria.
Estou outra vez na cama da enfermaria e não sei se compreendo. O doutor disse-me que estava tudo bem. Então por que estou outra vez aqui?
Não me iludo, bem o sei. Queria estar bem e enganaram-me para viver a minha última semana feliz. Já não me enganam mais. Desta vez, sinto as penas da morte a roçarem-me e acariciarem-me e beijarem-me nas faces. Descobri que a morte é um pássaro gentil e um pássaro que sabe beijar. A morte não se ri de mim. Acompanha-me nas noites de insónias, cantando ao meu ouvido tristes melodias.
Queria ter amigas que me confortassem. Queria que elas se lembrassem, lá na escola, mas já não tenho ilusões. Em duas noites deixei de ser criança. Sou quase capaz de as ouvir, ao pé de mim. A Ana Marta está no hospital? Sim, com uma daquelas doenças em que nos tiram o peito. Tiraram-lhe o peito? Não. Então porquê tanta choradeira?
Queria que o meu pai estivesse aqui, mas ele trocou-me por outro país, do outro lado do mar. Queria que a minha mãe estivesse aqui, mas ela deixou de me olhar nos olhos. Queria que a minha irmã estivesse aqui, mas ela culpa-me pelas amantes do meu pai e pelas bebedeiras da minha mãe. Queria alguém mais para além do pássaro morte e da enfermeira que me alimenta.
Pergunto-me sobre quem irá ao meu funeral. Mas isso não interessa, porque já estarei morta. Aqui, estou viva, estou a morrer, estou sozinha.
Aqui, respirando dolorosamente, a única desta cela, não julguem que vos guardo ressentimento. Consigo ver-te. Sei que estás enternecido comigo. E amo-vos, todos, intensamente, como às vidas que não pude trazer à vida e amar.
Cai um pássaro morto no peitoril da janela.
É o meu sinal: está na hora.

Escapadela II

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(21.07.2010)

O que todos esperam de ti. Que tu, invariavelmente, não fazes. Esta é a tua segunda escapadela. Já sabes que tudo vai correr bem. Tinhas saudades de comboios. Vais de costas e deixas-te embalar pelo solavanco constante das carruagens. Respiras este som, com saudades de quando era o de todos os dias. Deixas o nevoeiro matinal na cidade onde nasceste. Aqui há Sol! Sol! As nuvens flutuam como pequenos milagres. Vês os campos infinitos, vês as linhas, sujas em óleo, gastas pelas centenas de aniversários. Sabes este mundo de cor, o cenário dos viajantes não muda.
Aqui, não há ultrapassagens perigosas, nem curvas apertadas, nem trânsito. O que poderia correr mal, com o teu companheiro de viagens eternas?
Desculpa, mãe. Perdoa-me por te mentir, mas não havia outro modo. Deixavas-me vir, se soubesses? Perguntar-te-ias pela razão. Eu amo-te, mãe, mas tu não compreendes. Desculpa. Preciso disto, porque é isto que sou: uma viajante.
As nuvens, altas, regressam. São grandes e imensas. Correm com o vento ou talvez sejamos nós que fugimos. Vejo os pinheiros, cismo onde estou. As pessoas dão demasiada importância a tudo, como se uma viagem fosse algo descomunal. Calma! Interessa-me que vocês compreendam? Só fazia bem. És louca. É só uma viagem. Viagem comigo.

Vamos às compras, querido.

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Vamos comprar um ferro de passar, querido.
Vamos comprar uma máquina de café, um microondas, um secador.
Vamos comprar, querido.
Vamos submergir na corrente da expectativa de adquirirmos ditos confortos do mundo moderno, ditas facilidades dos novos dias.
Assim julgamos.
Vamos submetermo-nos à escravidão real de fazermos nossos os hábitos de todos.
Vamos vestir, querido, o conforto dos nossos lares de igual, com os outros.
Quem nos vai julgar? Quem nos vai estranhar? Quem nos vai dizer que não podemos?
Vamos comprar uma carpete para a entrada, querido.
Vamos vender a nossa alma a esta causa.
Vamos vender a nossa honra, querido, a nossa dignidade, a nossa individualidade, para comprar as nossas grilhetas.
Vamos trocar o sangue por óleo.
Vamos vender os livros de nossos avós para comprar uma torradeira.
Vamos vender as nossas memórias para comprar copos em cristal. E vamos gritar e bater quando algum se partir, porque o cristal é insubstituível.
Vamos desmembrar o nosso cão ou gato e vendê-lo órgão a órgão a quem nos der melhor preço.
Vamos vender a nossa sombra pelo melhor preço. Para que nos serve uma sombra?
Vamos vender a nossa integridade ao melhor preço. Para que nos serve a integridade?

Diário

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Eu não costumo fazer isto. Isto, isto, isto. Esta espécie de tom de diário, não nos meus textos. Mas preciso, estou a morrer. Sinto-me a morrer. Não conseguia aguentar muito mais naquela casa. Sinto-a lá, como um esqueleto pendurado que me segue para cada canto - e me chama: Adriana, Adriana, Adriana. A suavidade das coisas que fazíamos, das coisas que poderíamos fazer. Se hoje o mar estava lindo, lembrava-me da tarde em que passeámos de mãos dadas, os meus pulsos ainda intactos, os dela dolorosos da dor que a corroía por dentro: e eu sem saber que dizer, só estando com ela e salvando-a do mar, quando eu sabia: eu sabia sempre: que ela não queria ser salva, que ela queria que o mar a afogasse ali mesmo, porque o mar é calmo e bruto ao mesmo tempo e está cheio de carinho. Porque o mar a podia matar, mas não a magoaria tanto. Nós a brincarmos com as ondas, a brincarmos com pedras, como duas miúdas, a brincar com gaivotas, os pulsos dela, eu podia ter dito, enquanto brincávamos, eu amo-te, seria verdade, eu amo-te, mas não o disse, nem sequer a consolei, os pulsos dela, eu fiz de criança quando ela tinha perdido a inocência toda, eu fiz-me de inocente, quando ela não podia, eu amo-te, eu amo-te, por vezes grito-o na rua, para o vento, para a chuva, para o mar, mas é sempre para ela, eu amo-te, no cemitério, à beira do esqueleto, eu amo-te e é verdade, ainda hoje, eternamente, ternamente to repito, mas as lágrimas doem, o peso no peito dói, os soluços, eu não quero chorar, mas até quando não choro tu estás lá, estás na praia, a fingir que brincas. No meu quarto, eu tento adormecer, mas sei que lá estás, eu sinto-te, mas sei que estás morta e estás lá, arrepio-me, não de medo, mas de remorsos, nessas alturas não digo que te amo, porque nessas alturas odeio-me por tudo o que não disse e tudo o que não fui, e por tudo o que disse e tudo o que fui, odeio-me e peço-te para me deixares embora, porque tu foste minha amiga e eu não te mereço, porque eu quero dormir e tu não me deixas, és essa grave memória.
Adormeço.
Primeiro sono.
És sempre tu e eu. Eu contigo. Tu às vezes estás morta, outras estás viva. Todas são odiosas, porque depois acordo, lavada em suor. E ainda com o sabor amargo da tua lembrança. Tento não chorar. Viro-me para um lado e para o outro, com medo de adormecer.
Segundo sono.
Não interessa em quantos sonos vou, tu estás sempre no sonho, naquela casa. E eu acordo sempre a chorar.
Último sono.
Hei-de acordar sem que os meus pais o saibam. Ouço-os a baterem as portas dos armários, a abrirem com cuidado os estores, ouço passos no corredor, vozes, ouço uma porta que se fecha, póc-póc dos chinelos a baterem contra os degraus, na luta contra as escadas, a porta a abrir, a porta a fechar. Sei que foram comprar pão e que não tenho muito tempo. Deixo o choro romper, mas tomo cuidado de o interromper. Levanto-me, lavo a cara, lavo os olhos. Estão pesados e cansados. Eu estou cheia de sono. As olheiras fazem covas, assustam. Lavo os olhos, vermelhos. Deixo-me assoar, passo a escova pelo cabelo. Não estou melhor, mas disfarça. Volto para a cama e olho o dia que amanhece, pela janela. Esse momento é de paz, é o único de paz num dia inteiro. É sempre interrompido, bruscamente. Passos a subir as escadas. Conto-os, apesar de os saber de cor. A porta abre-se e eu fecho os olhos. Controlo a respiração. Dali a pouco, há-de aparecer alguém que me vai acordar. Eu quero chorar. Ainda não deitei tudo. Mas não posso, faço por fingir que sorrio.
Doloroso. Porque, a cada momento, tenho esperanças estúpidas. Porque, a cada momento, foi tudo um sonho ou uma partida de mau gosto.
Se me chamam, se me dizem,
Adriana, desce, vamos embora!
Eu ouço,
Adriana, está aqui a Joanna!
Eu quero chorar quando me fixo no espelho, porque não me consigo olhar.
Com outros, finjo que está tudo bem. Finjo que já passou. Mas como pode passar?
Como pode passar, se ela está presente nos lugares mais imagináveis?
Amo-te. Perdoa-me, por favor.
Amo-te e não consigo evitar.
Perdoa-me, minha querida,
quem me dera poder merecer uma fracção da amizade que me deste.
Obrigada por tudo, e perdoa-me.

Novo Dia (macabro e parvo)

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Um dia novo amanhecia no largo, o mar ouvia-se ao longe e as gaivotas pousavam no topo dos edifícios, calmas, como a brisa. Esse dia que começava alinhava-se com os outros dias, no correr do tempo e assemelhava-se a tantos outros. Se o pudéssemos saber de antemão, não nos preocuparíamos tanto quando atravessamos a estrada ou quando nadamos no mar, sob o olhar perturbador da bandeira vermelha. E, por outro lado, se não tivéssemos esse cuidado, tudo seria alterado e o dia poderia ser diferente.
O Sol, as nuvens desaparecidas, a brisa calma eram todos prenúncios de bom dia. Podemos imaginar mil e uma maneiras de não ser, mas, por agora, vamos ser optimistas. Porque esta manhã começa bela.
Um gato passeia agilmente por entre os escombros. Pois, sim, esta cidade está despedaçada e não se vêem sobreviventes. Excepto aquele gato. E o mar. O gato percorre o que já foram avenidas com passo rápido, para não se deixar apanhar pelo que tenha ficado para trás. Este gato não tem destino, porque acompanha a vida pelo que ela é presentemente. Para este gato, não há passado nem futuro. A cidade está assim porque sempre foi assim, porque sempre será assim. Não é que ele não se lembre - simplesmente, não quer lembrar.
O gato avança por entre estilhaços de parede escura, caída, desfeita, desmoronada. Algo emerge daquele pedaço de terra. Uma mão, um braço, um ombro. O gato segue viagem e deixamo-lo entregue a si próprio, pois decerto que quem só olha o presente não tem grandes histórias a contar senão as que podemos ver.
O Sol ergue-se do mar, tal como a mão se ergue dos blocos de madeira e pedra degradados pelo tempo e pelas bombas. A luz esmorece, até o Sol se envergonha perante tal visão: há uma extensão de um ser que luta pela vida. O Sol esconde-se atrás da primeira nuvem que encontra. A mão procura, apalpa o ar, apalpa o chão, retorce-se e está retorcida, já não é mão, já não é braço. Está sangrada, está ferida. Será que vive?
Cai para o lado.
Está morta.

O Sol nasce, então, descansado. A brisa treme e faz tremer a areia. O Verão morre no céu e o frio inunda a terra. O Sol não diz nada, só ilumina, não aquece. A cidade apagada, despedaçada, torna-se inferno gelado.
A cidade cai para o lado.
Está morta.
O Sol está morto, já nem ilumina, está escondido, envergonhado, está morto.
E a brisa, só penteia remoinhos na areia.
Até que já nem isso, a brisa esmorece.
Está morta.
Está tudo morto.

Possivelmente natural

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Este dia é fabuloso. Podemos fazer tudo. Podemos ser tudo. Podemos comprar tudo. Este dia é o mais fantástico das nossas vidas. Comparamo-nos e vemos que somos iguais porque tudo podemos ter. Somos fabulosos porque é hoje o dia de tudo o que nos passe pela cabeça.


Neste momento em que todas as realidades me são permitidas, magico uma paisagem. Estamos no norte, no meio de montanhas alpinas, triangulares, cobertas de neve. As coníferas rodeiam-nos no seu abraço irregular. Algures, ouço o gotejar de água, o desbravar de caminhos por uma ou outra fonte algures. Algures. Acrescento-lhe, agora, flores, rasteirinhas, de todos os tipos, das que se dão bem nestes climas. Flores pequeninas, miúdas. E a água vai desaguar a um regato e o regato finda num formoso lago, num imenso espelho de pequena ondulação que se estende até ao nosso horizonte. Sentes o fresco da paisagem e sorris. Quase que és feliz.
Neste momento em que posso tomar a realidade pela mão, construo uma pequena cabana, minúscula, para ser sincera. Dentro dela - tudo o que me é essencial. Um colchão no chão, mesmo à beira da lareira. Uma porta que esconde apenas vestidos simples, que caem como folhas, como pétalas de rosa, que caem no outono. Desbravo esta pequena casa, a sua secretária onde repousa a minha máquina de escrever e as minhas penas. E os tinteiros para as penas. É com alma que escrevo nesta casa, acerca da beleza e simplicidade da natureza.
Neste triangular momento, vejo os meus filhos brincarem com objectos simples, deles tirando todo o proveito. São criativos e amam a natureza. O meu amor chega a casa - não tardou. Traz fruta para os pequenos e para nós ambos.
É fresca, esta realidade. Sorrio para o simples que se me revela.

A história daquele dia

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Fugi.
Faltei a laboratórios e teóricas obrigatórias.
Apanhei o primeiro comboio. O primeiro comboio que me havia de levar a Lisboa.
Fugi
Fugi porque é isso que quero para a minha vida. Ser clandestina da sociedade. Sou uma viajante. E uma romântica. Fui a Lisboa ter com ele. Que bem me faz? Para o curso, para os meus pais, para a minha vida, para tudo? Que mal me faz? Que consequências terá tudo isto? Em menos de nada, estarei a magoar alguém, os meus pais vão ficar desiludidos, vou-me magoar, não vou ter amigos, não vou ter família, vou cair no desemprego, a sociedade não me aceitará. Enfim. Que loucura. Não tenho o direito de tentar ir atrás dos meus sonhos? Uma vida estável não me seduz. Sou dos viajantes, dos clandestinos nos supermercados, no povo das estações de comboio. Eu sou nómada. "Conheces o nome que te deram. Não conheces o nome que tens."

Amor Suburbano

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Grandiosas forças movem o mundo, fazem dias, fazem noites, fazem Sol da meia-noite.
Grandiosas forças dão vida à vida e somos todos essas forças. Somos tão complexos que não colapsamos. Oh!, Quão belo é o mundo, afinal.
Gloriosos somos, somos todos, mesmo os doentes, mesmo os vegetais, mesmo os que morrem.
Somos gloriosos só por chegarmos aqui, só por fazermos.
Somos tremendamente horríveis e obscenos.
[...] Confrontemos o mundo perante nós. Esta excelente colecção de horrores e ódios.
Como te amo e gostaria de estar outra vez contigo! Ah, mas não to digo, pois, não to digo, poderia estragar tudo.
[...]Amo-te, amo-te e estou farta de me abster de amar. Que propósito tem esta vida?
[...]Amo-te de modos tão bizarros e intensos! Vê o fogo que me incendeia.
Amo-te de todos os modos bizarros, como roubar flores da bicicleta que passa.
[...]

És lindo. Adoro-te. És um pensador. Amo-te. És o todo. O meu todo. O meu tudo. Mais que o meu tudo.
És o meu mais que tudo.

Carta de um novo dia.

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Isto não é uma brincadeira. É uma luta que tenta chegar aos confins do mundo - aos confins da mente.
Não sei quem és. Não sei o teu nome, a tua cara, não sei o que fazes nem como és.
Não sei sequer se alguém lerá isto.
Mas arrisco. Pouco tenho a perder.
Espero que tenhas um pouco de loucura.
É sempre bom, sempre essencial.
E particularmente essencial.
Escrevo esta carta porque estou a morrer.
Não quero que tenhas pena de mim.
Vivi pouco, mas raros foram os arrependimentos. Vivi pouco, mas vivi uma vida cheia.
E a morte, que agora me leva, é calma, plácida, pacífica. Não me traz dores - muito pelo contrário, sinto cada vez menos.
Pouco tenho a perder - nada que não perca totalmente dentro de alguns dias.
Se há algo que me enche de melancolia é olhar à minha volta e ver milhões de infelizes que não conseguem pensar. Será que vim a este mundo viver como vivi, sem deixar alguma marca para o futuro? Serei o objectivo do Universo?
Decidi não levar estes pensamentos para o fundo da terra, comigo para o túmulo.
Decidi-me a escrever-te, para quem quer que sejas. Quero contar-te tudo! E esperar conseguir abarcá-lo nesta carta.
Esta é a carta de um novo dia: um dia que provavelmente será teu, mas que de certeza não será meu.
Nota importante: as gravatas não servem para nada!

Devaneios pelo meu mar doce de palavras.

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«Se eu fizesse colectânea de palavras lindas!
Casaria comigo mesma e o discurso seria de morte:
"Nos estilhaços que deslizam sob suave ternura do embalar de páginas descritas em cadernos de contos de fadas, esmorece uma névoa que afaga quem estremece. Nas melodias harmoniosas, despedaçam-se tufos de musgo, cristalino do orvalho. As infâncias vêm em bibes descolorados, ao som de discos entorpecidos numa grafonola antiquada. No meio de bugigangas viajadas com bufarinheiros, cintila uma caixinha de âmbar pitoresca. Os meus olhos deleitam-se com tais arabescos, deliciosos, preciosidades, irresistíveis.
Quanto a névoa me afoga em claridade amargurada e reluzente!
O brilho dos teus olhos são vitrais."»

Noite e Alvorada

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A noite esmorece num qualquer bar. É tarde. Já não há gargalhadas nem exaltos, apenas restos em cacos partidos, espalhados no chão. Esta é a hora em que os resistentes moem as dores de cabeça. Esta é a hora em que os poetas se afogam no desespero da existência e da vida.

Reencontro sombras nas esquinas, lamuriando-se, lembrando-me de quem sou. Estão aos cantos e espalhadas, perseguindo-me neste amanhecer. O céu é tremeluzente cor néon, como quem vai avariar a qualquer momento. Há um chio a dobradiças velhas e os gatos resmugam e rugem por um pedaço de sardinha. Tenho uma caneta e um papel na mão, mas o café ainda não abriu. É cedo, minha rica mãe!, é cedo e as silhuetas ainda são difusas e estas sombras confusas de becos escuros. É tudo oco, porque faz tudo eco, porque a noite vibra, agora não, agora não há ninguém. Nem mesmo o vagabundo sem abrigo e mal cheiroso. Nem os trabalhadores que se levantam com a alvorada. A esta hora, só há gatos nas tampas do lixo e milhentos ecos desinibidos vindos de lado nenhum. Neste silêncio, raia a manhã, agridoce, de brisa gelada, harmonia. Nem pássaros, nem cigarras, nada no meio das sombras. Anseio silenciosamente a manhã e as suas gentes. Quero, quero ver dia e mundo e não este medonho cenário. As nuvens passam a galope e o céu é branco. A cidade é negro contraste. Quero fugir daqui, mas não me atrevo, quero desaparecer, mas não posso, quero fechar os olhos a isto, mas não ver é saber ainda menos, é só escutar. Tenho medo.
16.o5.2o10

Repetindo o repetido

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A chuva cai, calma,
As gotas despedaçam-se no chão,
desfiguradas...
O alegre conforto relaxante da chuva entra janela adentro e inunda-me em cheiros e sensações.

Quero voltar às origens.
Quero chorar infinitamente com a chuva.

Pedaços de nuvens agarram-se às coisas normais do mundo. Mundânices urbanas, quaisquer coisas banais. Encharcam-se as árvores e os panos e o chão, as poças formam-se em formas disformes de salpicos. Os putos chapinham em gargalhadas de puro deleite, os mais crescidos repreendem-nos. Entro em crise de choro de depressão. Afinal, é à minha volta que tudo se desmorona, que tudo se desfaz. Agarro esses pedaços de réstias do que sobra, mas não é nada, mas que não é nada, entro em desespero e choro porque não tenho onde me agarrar! Não tenho a quem me agarrar... ela escapou-se-me em estilhaços por entre os dedos, caio de joelhos e não tenho vontade de fazer nada, não tenho vontade de continuar.
Dão-me empurrões e abanões para acordar.
Não me alegram, porém.
Eu não posso ser alegrada.

Pelas Ruas

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Passo na rua pelas pessoas incógnitas.
Está a arrefecer, as almas vagueantes são cada vez menos, a claridade esmorece. Eu escuto música de me levar ao outro lado do mundo e olho o horizonte. O Sol está a pôr-se e as nuvens são lindas, fofas, grandiosas, coloridas em todos os tons, graciosas, acarinhando o astro solar nesta última despedida. Onde estou há um banco de jardim, virado de frente para a paisagem e a música sugere-me a sentar-me nele, mas no encosto, de onde vejo mais pedaço de horizonte, mais pedaço de céu. Eu hesito, porque não quero parecer louca, mas ponho os pés no banco e subo ao encosto. Vejo o pôr-do-sol e ouço a música de me levar ao outro lado do mundo. Este é o mais belo momento do meu dia. Mas não o deve ser, não pode ser, porque não está ninguém comigo, eu sou a única a aperciar a forma disforme das nuvens, a brisa calma e fresca acaricia-me apenas a mim, ninguém mais e eu saio dali, quem sou eu para aperciar só tão grande obra? É-me demais. E onde estão as pessoas a ver aquele pedaço de beleza? Estão em casa, no trabalho, nos seus afazeres, fazer a sopa, compôr a roupa, servir os clientes, fechar a loja. Para quê? Para continuarmos a viver, dia após dia, para podermos ver outro pôr do sol e outro mais ainda? Mas de que serve viver assim, se se privam de encadear pelo pôr do sol?
A luz de frente cega-me os olhos, ou talvez sejam as lágrimas, e eu saio dali, daquele banco, daquela rua, eu vou-me embora porque nada faz sentido, porque eu estou sozinha a ver o sol na despedida. Oh, quão triste é essa despedida, porque é única e não voltará, ninguém mais vai rever os recortes das nuvens ou o modo como os montes se preparavam para embalar o astro celeste em mais uma noite, só eu o vi e quem sou eu? Sou ninguém, um rodopio no meio de nada.
Saio dali em choro e revejo esta terra visitada. As calçadas que piso já não são as mesmas, apesar de estar no mesmo lugar. A minha infância está morta, tão morta como as minhas ideias, como o meu pensamento, como o cheiro a café e torradas barradas de manteiga, como o sabor a pão com chocolate de avelã, como a voz dos velhos, como o embalar de estar ao colo, como a minha amiga, como o pôr do sol, está tudo morto, e eu não quero morrer, mas mais urgente, não quero viver.
Porque me fizeram existir?

Sophia

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Como contar-te tudo o que me foste?
Não me recordo do dia em que nos conhecemos ou sequer da primeira palavra que dissemos.
Nem da última.
Já foi há muito tempo. Porém, lembro-me daquelas horas mortas e aborrecidas para os outros, ocupadas com jogos à bola e macacas e cordas. E que a nós, as caladas e distantes, bastava olhar o céu, sentir o tempo passar. Lembro-te comigo, inventando um jogo sem precisarmos de trocar uma palavra, nenhuma de nós seguia a outra, íamos lado a lado, a não ser quando nos empoleirávamos na beira do passeio...
Já foi há tanto tempo...
A escola e as pessoas sempre foram injustas para nós. Chamavam-nos tímidas, aproveitavam-se para nos empurrarem ao canto. Mas, dessa vez, eu tinha-te a ti, tu tinhas-me a mim. Criámos mil códigos e linguagens, tu tinhas tanto jeito para criar e eu para decifrar, de certo modo completávamo-nos.
Sempre foi assim.
Sophia, estrangeira, vinda lá das Américas...
Lourinha, tão ao contrário de mim.
E, porém, foi em ti e não nos meus compatriotas que achei uma alma gémea.
Como contar-te tudo o que senti, desde sempre senti?
Os anos passaram e ficámos eternidades sem nos vermos, sem trocarmos palavra. Mas esse tempo passou e quando voltei a estar contigo foi como se nada tivesse mudado.
Oh, mas tu estavas diferente, é certo, e também eu. Mais crescidas, mais maduras. Contudo, a distância não havia conseguido fazer-nos mudar uma da outra.
Todos os dias nos descobríamos, descobríamos que éramos mais parecidas do que alguma vez antes.
Sophia... o teu nome é uma melodia cantada pelo vento... Sophiiiaa....

Mas uma vez, roubaram-te, despedaçaram-te e desfiguraram a tua alma.
Pudesse eu torturar o cabrão que te fez isso!
Tu tentaste escondê-lo de mim, ocultaste as lágrimas com o cabelo, viravas as costas e só te voltavas quando conseguisses exibir um sorriso.
Mas eu sabia, Joanna...
Sabia mas fingia que não sabia, dizia-te disparates e tu rias às gargalhadas, éramos amigas como sempre e à noite, cada uma em sua casa, sufocávamos em choro.
Um dia, o fado voltou a atirar os nossos destinos para longe. Deixaste a o lugar a meu lado na carteira, abandonámos a escola que havíamos partilhado.
Estás tão longe, agora...
A saudade agride-me violentamente.
Quero-te aqui, outra vez. Quero-te a meu lado...
Enquanto há vida, há esperança

Era de noite e chovia em torrentes.
Ia no comboio de regresso a casa.
O menino dos olhos verdes saiu de ao pé dos colegas e cumprimentou-me.
Olhou-me e disse com cuidado que a minha melhor amiga se havia suicidado.
E, se o meu mundo não acabou aí, não sei onde então. Já me não sinto viva, já não sinto nada, que esta pesada solidão.
É tudo feio e melancólico, quero chorar e desistir.
Fazer como tu, mas não posso. Tenho uma família, tenho de existir.
Pergunto-me onde estás, mas sei que repousas em nenhum lado.
No cemitério, ainda te falo, e às vezes esqueço que morreste.
Quero voar contigo, borboleta, Joanninha
Quero-te amiga, que tanto amei
Sinto agora que estarei eternamente sozinha
E não há comprimidos que apaguem o que passei

Tenho tantas saudades!

Noites de Verão

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O Sol pousa no poente, a luz estremece, o negro inunda-nos. A Lua nasce.
Saio à rua, em manga curta e calções. Está quente mas não está calor. O ar envolve-me num abraço morno e a brisa esfria todas as possibilidades de isto tudo ser demasiado insuportável.
Saio à rua, em manga curta e calções. Está escuro, só se vêem estrelas, a Lua, raras nuvens. E casas pitorescas lá ao longe. Caminho com calma sobre a terra batida. Trago sandálias simples, quase como se fosse descalça.
Ando um pouco, à luz da Lua. Cheira a pinheiros, mimosas e eucaliptos. Cheira a arvoredo e a serra. Cheira a terra quente. Quente como um abraço maternal.
Ando um pouco, à luz da Lua. Os grilos cantam, suaves, compassados. As folhas do bosque estremecem com a brisa que as afaga, ouve-se o bater de galhos contra galhos, ouve-se o vento. Ouve-se, ao longe, a ribeira que cai em pequena queda de água.
Ando um pouco, à luz da Lua. E depois corro. Deixo que o vente me penteie o cabelo, deixo que a morna brisa seja braços de um abraço, deixo que esta doce terra me seja a minha casa.
Sinto-me em casa.
Estou na terra de meus pais, em terra onde outrora se conheceram. Este chão murmura e grita as histórias de séculos passados e promete-me que estou em casa.
Sigo carroças e imagino-os na sua mocidade. Nesta pequena aldeia que deveria ter sido a minha.

Este ritmo que nos percorre, na praia

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Quero o prazer astuto de beijar o mar.
Quero a liquidez de tais lábios, magoosos de tão salgados. Quero esbracejar, entrar na areia e encher-me nela, rebolar-mo-nos, movimentos bruscos e convergentes, eu contra ela, ela contra mim, rebolamo-nos, movimentos doces de esgares de prazer. Este ritmo não pára, são os tambores do pulsar da vida, os tambores do pulsar do coração, este ritmo não pára, eu nela, ela à minha volta, abraçando-me, e esquecemos quem somos, esquecemos o que somos, somos tudo o que sentimos e sentimos este ritmo cada vez mais forte, cada vez mais rápido, cada vez mais intenso. O mar, o mar enche-se de ciúme, inunda-nos no nosso abraço, agarra-nos, está no meio de nós, percorre-nos a espinha, cavalga-nos o corpo e, naquele exacto momento, estremecemos, estremecemos em frio, em fome, em prazer do que somos, em prazer de quem somos e neste momento somos o que sentimos.

Quero afligir-me nas tuas águas
Quero afogar-te em minhas mágoas
Quero afogar-te em mim
e roubar-te a respiração.
Quero cravar-te nos meus braços.

Nos verdes campos

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Era um dia nos verdes campos. Estávamos sós, estávamos calmos. Éramos, seriamos só nós. Enfim sós.E sós que fazíamos? Conjugávamos todos os presentes do indicativo de olhar. Olhávamo-nos profundamente e explorávamos todas as variações, cada degrau da graduação, um arco-íris de modos de ver.
O campo é simples. É um céu, algumas nuvens, é uma clareira verdejante, algumas árvores. Sós estamos. No campo. Tu comigo, eu contigo - e sem querer estar mais além deste momento e deste lugar.
Tu moves-te com agilidade, uma certa destreza adquirida com o passar dos tempos corridos a pontapé. Eu vejo-te tão eficaz e por fim compreendo que tu és imaginário, és uma sombra de vapor que parte da minha própria cabeça e que se desfaz num gesto mais ousado.
Estás comprometido. E eu amo-te.
Fecho os olhos e deixo as lágrimas correr.
Antes amar e não ser correspondido
Antes chorar por não amar
Que perder de um modo tão dramático o nosso amor, a nossa alma gémea.
Adormeço na clareira, agora à beira rio. Quis contar-te algo, descrever-te a luz do sol que se espelha na água e brilha como se amanhã não houvesse, mas depois lembro que és imaginário. Amo-te e por isso te choro.Levanto-me e parto para casa.
Para a nossa cabana, para a minha cabana. O meu abrigo provisório, sempre provisórias são as minhas casas. Nela olho para as paredes ocas, para as prateleiras vazias, para o espaço que sobra em excesso da tua ausência. Recordo uma vez mais que não existes. E que nunca te hei-de ver.
A um canto, um colchão e um saco-cama. Uma almofada, uma boneca de pano. Uma lanterna, uma vela. Uma mochila meia aberta.
Ainda só pernoitei uma vez nesta casa, neste outro lar construído do nada. Quanto tempo serei capaz de ficar? Não me interessa - as minhas necessidades logo o hão-de ditar. Estou à mercê do momento, de cada momento.
E a cada momento sei que te amo e que ainda não te encontrei e que não posso estar contigo. Talvez nunca.
Comigo trago meia dúzia de livros. Os meus queridos companheiros de viagem. Três cadernos, duas canetas de tinta permanente, recargas. A história de uma amante da vida que sofreu toda a infância perdas tão duras quanto pôde aguentar. A história de duas viajantes solitárias que correm o mundo procurando melhorar as vidas às suas voltas com chocolate e toda a sua magia. A história destas duas viajantes que se tornaram quatro. A história dos adolescentes musicais. Ah, histórias! Depois, as minhas. Um diário, um de notas e um de histórias. Hoje e amanhã, tal como ontem, continuo a ser o que escrevo e é na escrita que continuo a revelar-me verdadeira.
Afinados seguem comigo vozes de cantares. "Perde a estrela d'alva o seu fulgor", canta Zeca Afonso, em doces acordes, embalando algum menino, ou menina como eu. Pequena, adormeço, após fechar os olhos. A Lua entra pelas frestas do telhado. Quis amar-te tanto e quis tanto estar sozinha que agora essa é a dor que mais me angustia.
Já nem o ter de andar nómada me causa transtorno - não, é mesmo para isto que nasci - é a tua ausência eterna, o vazio da tua não presença que nunca existiu. Quero-te algures comigo, para provares o café matinal que exala da cafeteira improvisada, para saboreares o chá da noite, o calor que conforta por dentro e prepara já o corpo para repousar.
Querido, querido.
Sinto-te tanto a tua falta, nesta casa, cada canto tem menos vivacidade por tu não estares comigo.
Liberta-te das tuas inexistências e impossibilidades e vem sentar-te comigo, vamos os dois ver cometas à nova Lua.

Natural

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Vejo pequenas estátuas douradas feitas de trigo. O pão é o nosso ouro. O nosso dinheiro, a nossa vida.
É tudo o que temos.

Vejo um imenso azulejo de lápis-lazuli. O céu é o nosso azul.

O fogo os nossos ruis, a verdura as nossas esmeraldas.

A água cristalina são os nossos diamantes.

A névoa é um véu de prata.

Para quê procurar pelos recantos e profundezas do mundo se a riqueza abunda à superfície?
O pequeno lince fita-me com cautela. Estendo-lhe a mão e imobilizo-me. Espero. Ele avança com pequenos passos e atreve-se a aproximar o focinho. Fecho os olhos e reabro um pouco apenas. Mal respiro.
Atrás de mim, um ramo é partido por um coelhinho e esse som basta para o felino virar-se e fugir de mim.

O meu verdadeiro tesouro era ser capaz de acariciá-lo.

Expectativas

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Ninguém te pede para seres escritora.
Pedem-te estudo das matemáticas, das físicas, dos circuitos.
Pedem que te apliques no teu ofício de estudante da Engenharia Biomédica.
Pedem-te para fazeres relatórios, ninguém te pede para escrever.
Pedem-te que fales com os colegas, pedem que tenhas atenção, pedem que poupes dinheiro, mas ninguém te pede a dedicação que ofereces à escrita.
Ninguém te pede para seres escritora.
Mas é escritora o que tu queres ser.

Pequeno excerto dos Renegados

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Parou dois segundos.
Ela era a má da fita, a que todos odiavam, a que só fazia mal.

E ela gostava tanto de magoar os outros.
Sentou-se ao pé do sem-abrigo, ao lado de quem ninguém se sentava. Ele estava sujo e era louco.
"Ora, estou farta disto" pensou. E, pensado isto, beijou-o.

O sem-abrigo-louco tornou-se invisível,

mas ela não o largou, "não te atrevas a fugir-me"
porque tu és a única pessoa, percebes? és o único, nós os dois somos rejeitados por todos, não fujas agora, não me escapes
E continuaram num beijo profundo

E ele deixou-se rolar pelo telhado e caiu e morreu.

Agora era ela e o rapaz morto.

Rapaz morto, rapaz morto, estás aí?
Queres falar comigo?
Quero sim, rapaz morto. Eu não compreendo.
É porque nada há para compreender.
Também o suspeitava. Então, então, que faço?
Nada. Tudo. Alguma coisa. Vai dar ao mesmo.

Rapaz morto. Diz-me, por que não sinto felicidade?
Porque não existe.
Eu beijei-te e só senti vazio, porquê?
Porque não há nada para sentir.
Mas eu queria sentir algo!
Só há desespero e vazio e sonhos inalcançáveis.

Porque, quando se tornarem atingíveis, rapaz morto...?
Sim, deixam de ser sonho e tornam-se vazio.
E o vazio desespero.
Já sabes tudo.
Sei tudo o que há para saber.
Sabes que estou morto.
Sei que estás morto.
Sabes que gostarias de me amar.
Desde que tu me amasses também.
E se isso acontecesse
Seriamos infelizes.
Nada mais.
Estás morto, rapaz-morto.
Mais morto não poderia estar.
Odeio-te.
Estás apaixonada por mim.
Claro que estou. Não percebes que te odeio?
Compreendo-te. Amo-te.
Isso é mentira.
Pois é.

Outra vez para ti

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Eu sei que prometi não postar mais acerca dela, mas é o que me ocupa eternamente os pensamentos. Desculpem esta pobre alma.

Ela morreu-se-me e eu fiquei sozinha.
Ela morreu-se-me e eu desamparada.
E se tenho família e amigos e alegria,
Sem ela só me sinto mais sozinha.

Nos meus sonhos regressas,
Caminhamos noutra praia, de mão dada,
Sorrindo, as duas, sem pressas,
Como se a caminhada não fosse acabar

Mas a caminhada acaba sempre, Joanna
Acordo do sonho e tu não estás, Sophia
Assim deixaste-me esta nova Adriana,
Sozinha, oca, distante, fria...

E não consigo parar de pensar em ti
E não consigo para de te escrever
Naquele dia acho que também morri
Joanninha, sem ti, o que me vai acontecer?

O que é que me vou fazer?
Como vou sobreviver?
Por que hei-de viver?

Nem sei qual deveria ser o título

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Era uma vez um mundo onde as pessoas
Esta que até poderia ser uma boa ideia e que me poderia levar a algum lado interessante, mais para um que para outros, mas agora não estou com disposição para falar sobre isso. Porque, afinal, eu não sei nada da vida, ou tão pouco que pode encaixar numa qualquer metáfora ou hipérbole, comparativas e diminutivas, ou seja, sei coisa nenhuma da vida.
Bom, porque, afinal, a vida é feita também de sacrifícios e somos todos mártires e eu não quero perceber isso porque tenho preguiça e não gosto de. E porque os tenho de fazer, porque todos temos.
O que eu gostava de ter era alguma vontade de viver, era algum objectivo neste mundo
Era dançar à chuva sem ser olhada de lado
Era dançar à chuva e parecer linda, artística e alegre, como parecem nos filmes
Era dançar e parecer louca, mas a loucura ser algo bom, porque, afinal,
Era acabar o que começo
E era não dançar sozinha, não quero invejas, só quero dançar à chuva e à Lua, à luz da Lua e à sombra da Lua, sem que ninguém me aborreça com olhares ou risadas
O que eu adorava era não estar tudo categorizado e mandado
Gostava que não fossemos autómatos a responder às normas sociais,
Gostava que fossemos todos loucos
LOUCOS
LOUCOS!
Mas tristes são estes dias, tenho de ver tudo com a minha calma, perfeitamente serena, estranhamente compreensiva. Tenho de estar no meu lugar e fazer como me mandam.
Então vamos todos acorrer ao masoquismo que, no fundo, esses sacrifícios que nos clamam são puramente egoístas.
Faria um sacrifício por alguém que precisasse de um?

Faria?

Eu sou tão egoísta e mimada, tal como esperam de uma filha única como eu.
Eu sou tão obediente e bem comportada e nunca passo os limites e nunca falo demasiado, aliás, nunca falo,
eu nunca
eu nunca
Eu nunca tenho os pensamentos que era suposto ter.
Podem fazer de mim a vossa marioneta, mas nunca deixarei de ser a minha alma e a minha consciência e isso nunca saberão domar.
A menos que consigam.
Nesse caso, pobre, triste de mim.
Estarei vazia da personalidade que foi e tudo o que fizer vai ser falso, não fingido, falso.
Pobre eu que perdi uma amiga.
Precisava tanto de ti, agora.

Poço dos desejos

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As histórias que vamos ouvindo que já há muito se passaram
São histórias não nossas que contaram aos avós dos nossos avós
Que nunca souberam quem somos nós

Porque longínquos que tão longínquos que nós estávamos...

A nós nos perguntam, porém, as nossas histórias
Ser velho mal ajuda a conhecer,
Porque descobridores são as gerações que vêm

Que amam aqueles que andam
Que nadam pelo gelo e nada e puro e céu triste

E oh, que triste,
Que tristeza deslumbrante a do fogo do nada,

Do fogo gelado e cristalino,
Das pétalas que caem constantemente
No fundo do poço
Espreito

Espreito
Empoleirada,
Como se tivesse cinco anos
E grito para o fundo
Do fundo da minha alma

-JÁ VOU TER CONTIGO!

Do fundo da minha alma,
Grito para o fundo do poço,

-ESPERA POR MIM!

E do fundo da alma,
Deixo-me atrair para o fundo
Estou a cair,
Estou caindo,
Estou no fundo do poço.

Trecho do Suicídio

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Escrever e escrever sobre a escrita e sobre o escrito, quão redundante é, mas é o que sobra. Assim passo dias e dias, assim o meu tempo se passa, porque nada nele faz sentido. Vivo a vida apenas para morrer, pouco importa o que faça ou diga ou sequer escreva, pouco importa tudo, porque no fim irei morrer e no fim nada há-de importar. Viver a vida até ao fim, esperar pela morte, é penoso, como atravessar uma febre ou um deserto ao sol. O pior, é que me impõem este sofrimento, não me deixam morrer já. Pouco me importa o que dizem, porém, não poderia ignorar o sofrimento da minha família. É a consequência desta idade e destes tempos modernos, em que as pessoas demoram ainda mais a morrer, curam-lhes tudo. Em suma, tenho uma família viva que desesperava se eu morresse. Ignorá-los é uma opção, mas como posso tapar os ouvidos aos soluços da meia-noite, como encolher os ombros às lágrimas incessantes de pais sem filhos? Não consigo e com eles vivendo lá me vou conformando com a minha triste sorte, esperando a vez deles para depois provocar a minha.
Há quem diga que é preciso estar muito à beira do desespero ou não ter amor à vida. Posso desmenti-lo já: amo a vida e não desespero assim tanto, simplesmente vejo que não há nada que se possa somar a tudo, o fim será sempre o mesmo, as alegrias passam rapidamente, a dor mantém-se constante ao longo do tempo, a alegria é cada vez menos, a dor cada vez maior.
Se eu for o sentido da vida dos meus pais, que eles mal conseguissem continuar sem mim, só significava que até a vida deles já não tinha o sentido deles. Continuar a viver a partir da existência de alguém que deixamos só revela o quão pouco estamos preparados. A morte está sempre à espreita e é real e é quando menos se espera que atinge. Por isso a espero de braços abertos, sabendo que poderia continuar a viver mesmo depois de todos terem morrido, se quisesse viver. Assim, como não quero, é a morte dos outros que espero. Se ela me apanhar primeiro, será por acidente e a única coisa que posso esperar é ter a noção de que a minha hora está a chegar, para poder saborear a doce certeza de que a minha existência há-de cessar por completo.
Também se diz que é estupidez. O que eu acho é que é a decisão consciente mais importante da vida de alguém, achar se viver vale ou não a pena, para que se possa construir tudo a partir disso. O que eu acho é que a nossa vida deveria ser só nossa e que ninguém deveria interferir na decisão de decidir continuar ou não vivo. Tanto pior, os preconceitos não deveriam ser transmitidos com tanta facilidade por gerações. E nunca, nunca, o suicídio de uma rapariga de quase 18 anos deveria suscitar mais choque e falatório que a violação de uma rapariga de 16.
Só mostra o quanto as mentes das pessoas são fechadas e tamanha que é a preguiça de pensar por si mesmo. Demonstra a decadência deste povo. Pobres de nós se alguma vez se pudesse proibir o suicídio.

Delovina

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Eu sei que vocês ainda não sabem quem é a Delovina, mas se tudo correr bem, não vai faltar muito para que a conheçam.

Esta é a música que lhe dediquei ;)

Tocada e composta por mim, ao piano, ainda não é a versão definitiva.
(O desenho também é meu :p)

Boas Mortes

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Boas notícias, óptimas notícias, excelentes, fenomenais, indescritivelmente agradáveis.
Parece que o mundo vai acabar dentro de uma semana. Semana que vem, não serei mais pessoa e, então, serei a pessoa mais feliz que alguma vez em tempo algum existiu.
-Tem a certeza, senhor doutor?
-Eu lamento imenso, é irremediável e irreversível.

Magico em tudo o que posso fazer. Matar-me já é uma tentação bastante grande, avizinha-se como um sonho antigo espreitando e fazendo-me as delícias. Mas não devo morrer já. Esta morte não é minha, ainda. A data do nosso casamento já está marcada, o dia em que te vou aprisionar-te em meus braços e beijar-te docemente, triste, amiga morte.
Poderia matar-me já, sim, podia, abreviar o tempo de espera, mas este tortuoso mundo também reserva estranhas condições. Com uma semana apenas, parece que a criatividade excede os limites do possível, do que antes era possível.
Saio do meu triste apartamento com um sorriso na face, com o sorriso de quem sabe que vai morrer em breve.
O Sol refugiado atrás das nuvens brilha com muito mais intensidade e hoje é apenas meu. Comigo levo pouca coisa. A carteira, a caneta e o bloco de notas. Corro para o autocarro que me há-de levar à estação. Caminho sobre os carris do caminho de ferro com o equilíbrio de outros dias. À minha volta, as pessoas preocupam-se e deixam a urgência tomar conta dos seus rostos, as caras ficam deformadas e eu rio.
A triste sorte seria somente o não poder fazer nada, estar impedida pelo meu corpo de ir a lado algum e ainda assim se poderia fazer algo, escrever e viajar na mente.
Mas, felizmente, tenho esta porção de tempo e vou fugir com ela.

Aqui, além, mais além, que importa, esta semana é minha.

Saio no comboio rumo a uma cidade por conhecer. Telefonei-lhe de casa, ele deve estar à minha espera. À minha espera. Vejo a paisagem e absorvo-lhe cada traço, apesar de ir tão depressa. Já vi tudo isto noutros lugares, quase com a mesma forma, mas nunca perde o brilho, o esplendor e a essência de ser. Adoro ver a paisagem, nesta viagem particularmente, nesta viagem sabe bem, porque eu vou para parte incerta, vou para o desconhecido fazer tudo.
Tenho uma semana, tenho tudo. Tenho corpo ainda com forças, tenho tudo. Tenho companhia, tenho tudo. Tenho dinheiro como mo exigem estes tempos modernos, tenho tudo.
Se desço do comboio ou voo ainda pela janela, não sei. Acho que voo. Ele está à minha espera, corremos num abraço apertado.
Tenho uma semana, tenho companhia, tenho o mundo, tenho tudo.
Apanhamos um táxi porque estou farta de autocarros e de esperar e de parar em todo o lado. O meu tempo é todo mas todo não é assim tanto para quem tem uma semana. Vamos para o aeroporto, o grande centro dos aviões, não há tempo a perder.
A planar, sobre as nuvens, nós seguimos.
-WEEEEEEEE, fazem os meus braços, imitando o movimento de um avião exagerado, sou criança de novo, criança que vai atrás de paisagens.
Aquela terra nova, estrangeira, está coberta de frio e de gelo.

Palavrão Negro da Loucura

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Apetece-me dizer um palavrão, daqueles altos que se diz chocar muita gente, daqueles bem cá do fundo porque estou farta de existir calada. Apetece-me gritar a podridão e decadência, a dor de cabeça e as larvas entranhadas, e as feridas não saradas e as merdas que as lágrimas não lavam. Por isto tudo quero dizer que nada que coise, fogo, estou farta, bem farta, vou dizê-lo, vou gritá-lo, bem alto para que todos me ouçam,
BIZARRO!
Vou repeti-lo para o caso de não me terem ouvido,
BIZARRO!!!!

Que treta de vida e de emoções e de instintos, perfeitamente parvos e caquécticos, decadentes, cadavéricos. Que inconstistência do ser que me obrigam a ser, odeio-vos profunda e eternamente e convosco podem bem levar as vossas regras, normas, leis e morais, eu quero que vós todos se

BIZARREM!

Porque estou farta, fartíssima do comum, desnaturado comum, não mais vos posso suportar, dor de cabeça tremenda, odeio-vos genuinamente,

BIZARREM-SE!

Eu sou BIZARRA e com tanto orgulho de não vos parecer bem, eu sou um ser tentando erguer-se dos escombros a que nos conduziram, tento fugir da prisão onde nos aprisionaram, tento metaformear-me das literais mentiras que constroem e nos fazem engolir e assim

BIZARRA

Assim BIZARRA não há ninguém que possa fazer frente nem regras nem lavagens cerebrais, porque nada faz sentido, porque tudo é

BIZARRO

Por isso façam-me um favor e

BIZARREM-SE!!!

Oh, poor girl

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(Sorry about the bad english)


Stupid, silly girl
Why do you keep doing this to you?
You know that it will be worse anyway
Why do you insist playing this game?
Stupid, silly girl
Stupid, in love girl

You love nobody, I can tell you
That is true
But you don't hear a word
You just want to love
You just, you just.

You think you need it, maybe,
Yes, maybe you need it.

But who would ever love you?

You are a good girl, good friend, good sister.
But love you? I'm sorry, it can't happen.

You're just not that one.
You were made to live alone
And now your learning
What happens
When we do things
We were not
Supposed to.

Girl, your like dead inside
You play dead
While you play some music

Your soul is dead, isn't
Like you feel?

À procura de concentração

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estou à procura de concentracção
e de um tema
basta uma frase
basta a primeira
para aparecer tudo
como uma torneira mal fechada
que não quer parar
e por vezes
por coisas simples
um mero pensamento
um erro, riscar, voltar atrás
e essa torneira já fechou sem vermos
e queremos voltar mas já não dá
forçamos, mas está enferrujada
e a isso ainda não se chama bloqueio
deve ser perder o fio à meada
bloqueio é mil vezes pior
é sentires-te numa bola enorme e oca e tudo está longe
és só tu e o vazio
e a folha branca, em vez de promessas
das promessas que normalmente te traz
a folha branca é uma sentença de morte
morte do escritor
folha branca, condenada a ser branca para a eternidade
e tu chegas com a caneta e a caneta foge-te, tu dás voltas à cabeça, mas os pensamentos páram
tu fazes um movimento automático de levar a caneta à folha
e a folha parece troçar de ti...

To you, my love

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Espero estar viva quando chegares. Estou à tua espera à tanto tempo... Eu jurei que ia esperar por ti. Talvez por te ter abandonado sem dizer nada, uma palavra que fosse. Eu tinha medo porque não sabia nada. Nada sabia e agora sei muito. Sei o bastante. O bastante para não ter medo de dizer, amo-te. Espero estar viva quando chegares. Porque viver entristece-me e julgo que não vou continuar assim muito mais. Acho que não vou aguentar muito mais. E seria tão triste se chegasses à minha beira demasiado tarde. Tão enternecedoramente triste, porque nunca vi um rapaz a chorar. Seria tão triste não te poder ouvir a pedires desculpa por teres chegado tarde de mais. Não, tu nunca saberás quem eu sou. Isto sou eu que me iludo na ilusão de que um dia tu e eu pudessemos partilhar alguma coisa. Mas quem eu sou mal eu sei e tu também não queres saber, apenas finges que sim, enquanto viras a cara para o lado para ver que mais linda menina e muito mais interessante aí vem, uma menina que sabe como se vestir e como se comportar, tão ao contrário de mim. E assim fui embora porque não nos suporto mais. Amo-te mais que devia. Amo-te, por que hei-de amar-te? Adeus. Vou só espreitar pela janela para ver se lá vens. Não, a janela só está cheia da minha respiração, naquele embaciado escrevo uma última palavra que ninguém compreenderá, uma palavra que não faz sentido, estranha e bizarra, essa palavra está lá e é só uma e diz quem eu sou, quem eu sou numa palavra. Tu não vens, não estarei viva quando chegares porque me resta pouco tempo, porque eu já só sou uma sombra. Mas amo-te. Até que a morte, bendita amiga, me separe de este corpo, trapo, tão cheio de emoções e de sensações. Até lá, amo-te, mesmo que não chegues. E a palavra ficou gravada na janela, está lá se a quiseres ver, se me quiseres ver. Até sempre, que esse nunca chegará.

Pseudo-livro

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Por mim. Aqui: http://aleatorionaoexiste.blogs.sapo.pt/1449.html

Não quero Falecer.

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Façamos falecer as cores pálidas e bizarras deste mundo. E todas as mentes que não nós, que nos aprisionam. Falecer é a palavra mais feia que já ouvi dizer, é seca e áspera, parece dita pelo próprio falecido que pelos vivos. É daquelas palavras que deveriam ser abolidas do nosso vocabulário por se demonstrarem tão abomináveis.
Que divagações são estas?
São as de quem nada espera a não ser a morte.
Não a morte, a desexistência, existir farta. É um fardo. Odeio.

como me apetece acabar com tudo isto e escrever do modo que prefira, para não ter mais de olhar para nada, disto estou farta.



AAAAAARGH!!!!!!!!!!

pouico falta pois a isto para ser uma especie de piano, mas eu tenho dcada vex menos parciencia para corricir o que estcrevo ou dfe ohlar para o telclado, volas, venoho maisl que vvafazerm,


fim da narrATGICVA

Teoria das Caixas

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Depois do choro,
Depois da tristeza,
Depois do desespero,
Depois da angústia,
Depois da raiva,

Há o tudo, há nada,
A vontade não existe,
Apenas este peso de existir.

Encolho os ombros,
Encolho-me.

Abraço-me num canto.

Se um dia o universo
Fora uma caixa negra
Encaixotada numa branca,
Encaixotada noutra negra,
Encaixotada noutra branca
E assim pela eternidade,
Em caixas cada vez maiores,

Hoje sou eu que me escondo
Dentro de caixas cada vez mais pequenas.
Dentro da caixa do mundo,
Dentro da caixa do país,
Dentro da caixa da minha terra,
Dentro da caixa dos amigos,
Dentro da caixa da casa,
Dentro da caixa da família,
Dentro da caixa do meu quarto,
Até, por fim, na caixa só minha,

Fechada a fita-cola,
De onde não saia,
Ninguém me aborreça,
Não veja o que está lá fora,
Não tenha de sentir nem de pensar.

Aguentando o fardo da existência
Tão mal-vinda, tão maldita.

Sempre é melhor viver numa caixa,
Apenas comigo e com o pouco ar que respiro.


Não há pais, opiniões,
Falsas pessoas, preocupações,
Não há medicamentos,
Psicólogos ou psiquiatras.

E, na verdade,
Que diferença faz
Viver numa caixa
Ou a vida que nos atiram,
Não será também ela
Uma espécie de caixa?

Desespero para toda a vida, malditas decisões definitivas...

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Um assunto urgente que me deixou paralisada. A suspirar... Ora bolas! Quem me mandou atrever-me a desejar o impossível? Eu própria, e agrada-me a minha mente aberta, mas deixo-me entristecer e volto para casa, tocar piano.
E penso naquilo que terei de escolher, a decisão já tão próxima, sabendo que vou errar, quer dizer, nem sei se vou saber conseguir. Para onde quero ir? Agora? Arquitectura. Ontem? Antropologia. Amanhã? Quem saberá?
Por isso toco acordes mais alto, porque só gosto do que não tem saída.
Já é muito tarde para ginástica, não sou suficientemente boa para música, a ciência está descuidada, a escrita caminha ao esquecimento, a psicologia está longe.
O futuro que desapareça com o futuro! Quero é ir para Paris, trabalhar num café em Montmartre, como soube desde que li The Lollipop Shoes, como confirmei quando lá estive e como assegurei quando vi Amélie.
Não quero mais que isso, por que não percebem? Nem que tenha de pedir esmola a tocar violino.
21.04.2009

Afinal não sou - Bernardo Soares

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De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de
quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-Ihes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.

in Livro do Desassossego, Bernardo Soares

Conto do Pequeno Pianista

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Era uma vez um menino de 11 anos que passava o tempo livre a tocar piano. Já o fazia desde muito pequeno e aprendera quase tudo por ouvido. Todas as pessoas que o ouviam elogiavam-no profundamente, todas excepto o pai, que voltava costas a resmungar:
-Em primeiro os estudos, primeiro, os estudos.
Era daquele tipo de pessoas que se aborrece facilmente em museus e que na rádio só ouve notícias. Para ele, o filho podia ser mesmo o mais conceituado músico a nível mundial, nunca aceitaria tal como profissão respeitável. Contudo, o pequeno amante da música era o melhor aluno da classe, pelo que o pai nada mais podia fazer que não consentir que ele passasse horas a fio brincando com as teclas.
A mãe, por outro lado, vivia deliciada pelo dom do filho. O seu próprio tio fora pianista e, não tendo mais família, deixara o grande instrumento de meia cauda à única sobrinha. Ela lamentava nunca ter aprendido, mas, felizmente, o gene musical parecia ter sido transmitido ao seu pequeno. Gabava muito as suas capacidades, de cada vez que ia ao mercado, e quem já o ouvira podia confirmar que ela não exagerava nos elogios.
O pequeno pianista nutria um carinho especial pela grande colecção de discos do tio-avô que a mãe guardara no sótão. Quando não estava a tocar, ouvia uma daquelas preciosidades musicais, deitado, saboreando as melodias.
Adorava Vivaldi e as suas Quatro Estações, venerava Mozart e a Flauta Mágica, arrepiava-se com Beethoven e a Quinta Sinfonia, descontraía com Bolero de Ravel e acelerava com o Voo do Mosquito de Rimsky-Korsakov ou Gayane de Kachaturiam. Porém, de longe, o seu preferido era Tchaikovsky. Adaptar músicas do bailado Quebra-Nozes para piano apenas fora um desafio e uma aventura. Terminar havia sido uma conquista. E um marco.
A primeira vez que apresentara aquele conjunto de seis músicas que, no total, duravam quinze minutos, fora num restaurante de uma cidade das redondezas. Encantara todos os que estavam presentes e o conservador do teatro municipal convidou-o a tocar aquela peça, na semana seguinte, no próprio teatro. A mãe não queria acreditar e perguntou se haveria pessoas a assistir. Com a resposta afirmativa, o pai, por sua vez, perguntou se iriam receber algum tipo de remuneração. Ambos satisfeitos, aprovaram a proposta e levaram o filho a casa, para ensaiar sempre que tivesse algum momento disponível.
No primeiro espectáculo, a peça apareceu enquadrada dentro de um programa de recitais dos melhores músicos das redondezas, mas foi decididamente ele quem recebeu mais aplausos. As pessoas queriam ver outra vez aquele prodígio. "E sem nunca ter aulas!" admiravam-se.

Foi assim que as sextas-feiras à noite se tornaram uma rotina. Durante a semana, escolhia as músicas que adaptava a piano com cada vez maior facilidade. De manhã, a mãe ia buscar o fato à lavandaria, de tarde fazia-se o ensaio geral, com a supervisão de um músico qualificado, que o corrigia em um ou dois pontos. O pai conduzia.
-Vamos chegar atrasados! - era o discurso da mãe, todas as noites. Chegavam sempre com meia hora de antecedência.
Um pequeno toque de maquilhagem nos bastidores. E ali estava.

Aquela sala era um abismo. No palco, o som dos seus passos ecoaria não fosse abafado pelo enorme aplauso da multidão. Plateia, balcão. E aquelas varandinhas adoráveis.
O piano, pronto para o receber. O banco já ajustado.
Fazia uma pequena vénia e sentava-se. Respirava fundo, como lhe dizia a mãe.
Qual quê. Aquilo era a sua brincadeira preferida, era o que mais gostava de fazer. E havia pessoas que o adoravam. Era fantástico, ele não conseguia estar nervoso, apenas sentia um formigueiro antes de cada espectáculo, nunca mais começa, nunca mais começa.

Havia um pequeno jogo que gostava de fazer de cada vez que entrava em palco. Percorria a multidão com os olhos até encontrar uma menina da sua idade, talvez acompanhada pelos pais, talvez pelos tios, pela irmã mais velha, pela avó, e fixava-a, distinguia-la de todos os outros. Era para ela que sorria, para ela que orientava todas as vénias, todos os olhares. Por cada concerto, havia uma menina incógnita que, sem o saber, seria sua namorada nos minutos em que ele era uma estrela aos olhos de todos.
Dentro de si, havia uma pequena esperança de que, algures no mundo, uma rapariga se enamorasse secretamente pelo pianista enquanto duravam os concertos que via. Dentro de si, havia a esperança de, um dia, os seus olhares se cruzarem e aí seriam verdadeiramente namorados por uma noite.
Eram sempre diferentes, não queria perder a oportunidade de a escolher só por se ter decidido pelo tipo de rapariga que mais gostava. Havia a menina triste do nariz pequenino, a lourinha dos olhos verdes, a do cabelo cor de cenoura, a da pele cor de chocolate, a que não parava de sorrir, a do vestido com flores, a da borboleta a atar o cabelo, a das tranças. Só não a escolhia entre as que estivessem aborrecidas, as que parecessem obrigadas a estar ali, as que odiassem aquele tipo de música. A pequena que o procurava por todas as salas de espectáculo do mundo certamente que gostava de ouvir boa música.
Daquela vez, nada de mais. Olhos castanhos-escuros, cabelo preto que se confundia com o casaco e vestido da mesma cor. Já estava sentada e ele nada mais conseguia ver. Pena. Tinha a certeza que a sua pequena trazia sapatos de fada. Não havia nada de particularmente diferente no físico dela. Era tão normal, podia ter aparecido como figurante num filme, uma personagem daquelas que passamos por ela e nem a vemos. Não teria sequer reparado nela não fosse o ar desafiador e triste. Como se toda a sua aldeia tivesse sido posta em chamas e ela fosse a única sobrevivente, desesperando por vingança.
Viu-a enquanto caminhava até ao piano. Hoje, é só a ti que vejo, é só a ti que amo. Esta noite, tudo o que eu tocar vai ser para ti, profundamente dedicado à tua pessoa. Ela não aplaudiu com a multidão quando ele chegou. Claro que não. Ele ainda não a merecera. Virou os passos na direcção dela e inclinou-se numa vénia. Olhava para ele. Muitas os faziam, na realidade, quase todo o auditório.
Começou. Eram aquelas seis músicas adaptadas do Quebra-Nozes de Tchaikovsky. A primeira. Sabia as teclas de cor, apesar da complexidade, raras eram as vezes em que consultava o lugar das mãos. Na maioria do tempo, fechava os olhos, abrindo-os para encarar a multidão. Corrigindo, para olhar para a sua pequena por uma noite namorada.
Segunda música, a ela dedicada, a dança da fada do açúcar. Se lhe pudesse ver os sapatos, tinha a certeza seriam azuis, brilhantes, pareceriam feitos em porcelana, ou talvez fossem apenas como o piano. Sim, aquela música era perfeita para ela, porque parecia descrever o modo como daria um passo após o outro, cauteloso e sorrateiro, deslumbrante. A escolha daquela peça era perfeita.
Olhou para ela, na pequena pausa entre a música seguinte. Os olhos tinham amansado e ele pôs-se a viver o ritmo frenético que o esperava. O piano era dele, mas isso não importava, era aquilo que lhe oferecia, tecla após tecla, grandes acordes, os dedos leves e pesados ao mesmo tempo, sempre fiel ao original, sem um único erro. De olhos fechados, sorria. De olhos fechados, conseguiu imaginá-la a sorrir sem mostrar os dentes.
Esta nova era uma pequena música de amor. Imitar uma harpa no piano era uma tarefa fastiosa, tinha de ser tão delicado e tocar tantas notas de seguida, mas os olhos de ambos cruzaram-se e a música era para ela e para ela nada menos que perfeito, nada menos que o que ela merecia. Saberia que era uma canção de amor? Claro que sabia, aquele olhar dizia tudo, dizia que se derretia e desfazia e que cada fechar de olhos não era mais que puro deleite. Esta música é só para nós, saltou para a parte mais difícil, acompanhando a música com a cabeça e o corpo, de olhos fechados, saboreando e aperfeiçoando cada tom. Os dedos fluíam tão naturalmente pelo teclado que a única coisa em que pensava realmente era nela.

Agora a dança chinesa, algo de tão mais divertido que certamente a animaria um pouco. Fez os possíveis para conseguir gestos abertos e esforçou-se nas caras engraçadas, tal como vira fazer tantos pianistas famosos. Era uma música muito pequenina, mas todos se riram. Havia algo de cómico. Com um sorriso nos lábios, passou à última. Mais uma de amor, mais uma com harpa de fundo, que espelhava delicadeza e que variava por toda ela. Quis tanto saboreá-la que acabou antes que desse conta.
Já aplausos? De pé, da sua namorada daquela noite que o ia deixar para sempre em breves momentos. Como passara tão depressa aquela última se era a maior de todas? Prendera-se no pensamento e agora tinha de se levantar, porque estava tudo acabado. Ele era o menino do piano que acabara de tocar Tchaikovsky e tinha lágrimas nos olhos, mas ninguém estava suficientemente próximo que as pudesse ver. Ela já ia de costas, uma vez mais, no fim todas iam, no fim, os sapatos de fada não eram mais que vulgares sandálias.
Voltou-se para os bastidores, para os braços da mãe.
-Vá, não correu assim tão mal, só tropeçaste numa nota, ninguém reparou.
-Tu dás-lhe demasiados mimos. - resmungava o pai - Se é para continuar a sério todas as semanas, não podem haver erros.
Virou-se para a sala vazia, sem luzes, sem barulhos. Largou o aconchego da mãe.
-O papá tem razão, tenho de treinar, este piano é um pouco maior e eu não estou habituado, mas tem de sair perfeito na semana que vem.

Perfeito. Para ser perfeito, aquela música não podia acabar nunca. Era a sua parte preferida porque parecia conter uma história dentro dela. Era a que o fazia viver mais, a mais poética, a mais expressiva. Precisava de a tocar as vezes que fossem precisas até ficar completa, até ficar perfeita.
Sentou-se e voltou àquela escada feita pela harpa. Começou a misturar mais instrumentos, tornando-a cada vez mais difícil. Viveu cada sensação deles, como se cada um contasse uma história. Deixou-os lutar um pouco uns contra os outros, até os juntar na construção do mesmo, tentou escalar as emoções até ao cimo. Lembrou-se da menina de verdadeiros sapatos de fada que um dia o estaria a ver, sentiu aquilo de que a música falava e sentido conseguiu tocar ainda melhor, sem nunca desistir. Depois, lembrou-se do fim de cada noite, em que todas elas se iam embora e tocou aquele trecho destroçado. Enfim, voltou a esperança de um dia a encontrar, era só esperar, e para ela tocou até não mais poder, chamando-a. Abrandou o ritmo, preparando-se para o final, suave, como os passos de uma fada. Aquela tinha sido perfeita e tinha a certeza que, quando abrisse os olhos e espreitasse para trás do piano, ela estaria ali.
Abriu os olhos e, espreitando, a menina dos olhos em desafio triste estava a olhar para ele. Não disse nada nem aplaudiu. Os sapatos eram azuis, eram tal como os havia imaginado, eram brilhantes e pareciam porcelana.
Levantou-se. Ganhou coragem. O coração batia a cem à hora, mas podia ser a única oportunidade.
-O concerto de hoje foi dedicado a ti, tens de saber, deves saber disso.
-Eu sei. Tu construías a música conforme a expressão dos meus olhos que deviam espelhar o que sentia. Mas a última música passou demasiado depressa, eu fiquei distraída com um pormenor, uma lembrança antiga. E tinha esperança de a ouvir outra vez.
-Tinha esperança de que viesses. Esta noite, foste minha namorada.
-Fomos namorados enquanto tocavas.
-E agora, continuamos a ser?
Ela hesitou e desviou o olhar.
-Não pode ser. Não posso.
-Porquê?
-Porque eu gosto de raparigas.
Calaram-se os dois. Foi ele que recomeçou.
-Mas, enquanto tocar, nenhum de nós vai ser pessoa, nem homem nem mulher, vamos ser música, vamos ser só o ser que toca e o ser que ouve, ambos os seres que sentem. Aí, poderemos ser namorados?
-Enquanto tocares, sim. - concordou.
-E durante o resto do tempo?
-Eu serei eu, tu serás tu, se quiseres podes ser meu amigo e podemos ter longas conversas à beira do lago, podemos ouvir música, podemos ler e fazer histórias. Mas namorada tua não poderei ser.

O pequeno pianista voltou ao teclado e tocou o trecho melancólico da última música, aquele em que se parecia desfazer em tristeza.

Conto da noite (ou a morte da borboleta que caiu enquanto ascendia aos céus)

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por Adriana Gaspar de Matos, composto após a meia-noite do recém-chegado dia 10 de Janeiro de 2010, à memória de Joanna Sophia de Carvalho Matias, querida amiga, (e)ternamente nos nossos corações.

1h00 "Olha," aponta um dos irmãos para a janela em frente, "que é aquilo no parapeito? Será uma estrela?", "Não, é uma borboleta." Debruça-se a borboleta para o voo. "Oh, mas mano, a borboleta caiu.", "Pois foi, vê, tinha as asas partidas.", "Mas quem teria tamanha crueldade que despedaçasse as asas de uma linda borboleta? E que fez a inocente de mal para o merecer?", "Nada, mano, a justiça é uma ilusão, nem todo o dinheiro do mundo lhe poderia devolver as asas e o imbecil até já anda em casa."
1h23 "Há luzes lá fora.", "São as ambulâncias?" O irmão hesita e responde "Não. São fadas que a levam a voar de volta ao céu."

Lindo dia de chuva

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Estava um lindo dia de chuva, um cinza pastel choroso.
-Maldita chuva!- comentou a mãe.
A pé seguiam, mas ela não se queixava porque ela efectivamente adorava sentir aquelas lágrimas a escorrerem, geladas de nos gelar por dentro.
A chuva é que a ajudara naquele mau momento quando quisera deitar tudo cá para fora, gritar o mundo com a força que trouxera apertada na viagem de comboio, a chuva que com ela chorara a sua perda, que com ela gritara contra quem lhe roubara a melhor amiga. A chuva que com ela cantava, a chuva que com ela desenhava movimentos, gestos que as outras pessoas não apreciavam ver na rua, abria os braços e cumprimentava as pessoas com uma larga vénia, e a chuva parecia imitá-la, a chuva sempre tivera um tanto de loucura, pois os loucos é que adoram passear à chuva.

Os carros seguiam e atiravam a água aprisionada no alcatrão contra elas, uma onda no meio do nada, no meio de lado nenhum, uma onda citadina, de poesia nenhuma gerada, apenas do horror da cidade, porém uma onda poética.
As calças salpicadas em lama, encharcadas em chuva.Está um bom dia para não lavar a roupa, pensou, ao mesmo tempo que a mãe dizia
-Quando chegarmos a casa, tiras imediatamente essas calças e pões a lavar.
A mãe não-louca, a normal mãe. Dava-se feliz por ter uma mãe assim: se fosse louca, talvez tivesse a tendência a ser o contrário dela, ou seja, monotonamente normal. Ou talvez não.
O céu eram nesgas pintadas e eu gosto mesmo, mesmo muito, mas agora não é a minha história, é a dela, bolas, e ela gosta mesmo mesmo muito. São tão doces tão frios dias de chuva.
As cores de tudo mais definidas: as folhas amarelas mais amarelas, o castanho mais castanho, o verde musgo ou verde pinheiro mais vivo, o cinza das pedras um pouco mais escuro, um contraste acrescido comparado com o daqueles terríveis dias de calor.
O que ela gostava mesmo era de, no fim do dia, quando tudo parecia acabado, digitar tudo o que se lembrava por meio de palavras, gravar tudo na folha, atirar os dedos ao teclado e traduzir os pensamentos em algo legível, tal como faz agora, e, de tão habituada que está, não erra uma única letra, não falha e mesmo de olhos fechados sabe que não falha, pois é como que uma melodia tocada ao piano. Em dias de chuva.
Melodia tocada ao piano em dias de chuva, daqueles em que a luz vai abaixo e não sobra mais nada senão o piano e o violino e a máquina de escrever.
Pequenas coisas estas que me ajudam a não dizer não à vida nem aos meus pais, que me ajudam a não ficar para trás, não quero viver, mas, muito mais que isso, não quero magoar quem tanto gosta de mim.
Piano à chuva, piano ao luar.