Perguntas do Depois

@@"Onde estou?"
Acho que era a pergunta mais acertada a ser feita.
A pergunta certa.
A pergunta do momento.

"Onde estou?"

Por toda a eternidade, tem sido essa a pergunta feita por tantos milhares de almas.

Eu, porém, não fiz essa pergunta.
Havia algo naquilo tudo que me queria fazer disparar centenas de frases de tudo aquilo que me atravessava a cabeça. Não tinha problemas em agarrar tais pensamentos. Muito pelo contrário, fascinante e surpreendemente, pareço conseguir vê-los todos, todos em simultâneo, perfeitamente organizados, correndo e desfilando, num círculo que deixa de o ser para se transformar num cone imenso, erguido como que desde os céus, um tornado, um furacão de pensamentos.
O meu problema não era agarrar, era libertá-los, porque como que se prendiam a mim de cada vez que os tentava soltar. E, mais importante que tudo, porque, pura e simplesmente não parecia fazer sentido dizer o que quer que fosse. Era inútil, de que servia falar?

A maioria deles fala, sinto-o. E perguntam "Onde estou", mais outro aspecto estranho acerca deles. Se eu tivesse falado, teria, certamente, perguntado, "Quem sou eu?"
Quem sou eu, certamente, mas o que sou eu seria igualmente uma opção.

A maioria deles, chega nas formas com que partiu. Os homens são homens, os cães são cães, as árvores são árvores. Espantoso, observar que o conformismo e o egoísmo são característicos de todas as coisas.
Chega com a forma e assim vê respondida a pergunta o que sou eu. E, para além do mais, passam a existência convencidos que sabem quem são.


Passei o equivalente à formação da Terra desde o Big Bang para conseguir achar-me. Não me pareceu uma eternidade porque aqui não há tempo, apenas constância. O tempo é algo que vem emprestado do lugar de onde viemos. Tal como o espaço e tal como todo o resto. Aqui, tudo obedece às nossas regras.


Há quem chegue e veja anjos, há quem veja demónios, há quem veja escuridão, há quem veja luz. Mas, na verdade, tudo isso são visões emprestadas do que esperariam encontrar. Há, até, quem julgue que continuou vivo.

Eu sempre neguei o mundo a certo ponto e, depois da passagem, não fiz mais que apagá-lo. Livrei-me de todas as coisas e significados, mas também esvaziei demais e perdi-me.
E, depois de algum tempo ilusório que pode ter sido 15 mil milhões de anos ou dois segundos, reencontrei-me.


Foi por minha preferência que regressei a pequenas coisas do que fora.
Tinha à minha frente um leque infinito de possibilidades, portanto, por que não começar pelo início?

Há regras, claro.
Há uma regra.

É que tudo o que ainda não tiver passado e guardar a sua alma na vida aí está confinado.
Podemos ter tudo, excepto almas.

Podemos construir a cidade de onde voltámos, as pessoas e os animais e as plantas e todo o mais, mas, sejam eles ainda vivos e não mortos como nós, as nossas cópias construídas não terão alma, serão ocas.

E, mesmo que uma alma haja morta, não a podemos forçar a participar no nosso pequeno cenário.
Assim, recomendo não fingir figuras. Apenas a nossa que já tem a nossa alma.
A nossa que será como nós quisermos.

Porém, é com agrado que vejo que, quando se passa a este nível de percepção, todas as pessoas acolhem com um certo conforto o aspecto que tinham. Por mais defeitos que em vida se colocassem, é agora que fazem cópias exactas, sem alterarem um único detalhe.


Depois de me haver encontrado ou reencontrado, deixei-me levar para esse mundo que é o mundo que deixara. Começar pelo mais simples e fútil. Por que não?



Iniciei pela altura que me fora mais cara. Neste espaço de imagens, tornei-me a adorável Adriana de cinco anos, correndo num vestido branco e lilás em direcção a um baloiço. Fingi o vento, fingi o assento, fingi o ar, só não fingi paisagem. Porque eu adoro balançar-me com os olhos fechados, sentir apenas a altura e o perigo. Só que, desta vez, não havia perigo.

Formaram-se os dinossauros e pereceram nesse intervalo de tempo fingido em que andei de baloiço. Imaginem-se milhares de anos apenas baloiçando, baloiçando, baloiçando.





Cessou esse balançar com um latido. Adriana de cinco anos saltou no ponto mais alto e voou um pouco, planando para aterrar.

Disse a minha primeira palavra na voz alta fingida disto que é isto:

-Snoopy!

Tínhamos o infinito para brincarmos e a eternidade para o fazer.
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Um corredor. O chão em madeira, as paredes brancas. Um corredor estreito e eu. Eu, num corredor estreito, perante uma porta. Aventurei-me.

Estava tudo igual, a janela, a cama impecavelmente feita, a poltrona ao canto.

E, mais importante que tudo isto, o avô.
O avô enorme, a maior pessoa que eu jamais conhecera naqueles cinco anos.

O avô, o risco de cabelo que caía, os óculos enormes que enchiam toda a cara.
O avô com o seu grande redondo nariz.

As mãos, pousando o cachimbo, os olhos, intensos, como se me pudessem atravessar.


Aquela estranha figura no seu estranho lugar, tal como sempre me recordava dele.

Achei-me a seu colo em menos de nada, agarrada às roupas grossas com cheiro a naftalina.
Eu fui a neta mais velha. Uma das poucas que ele conheceu. Poderia dizer-lhe que agora havia uma Francisca, um Rui e uma Inês, mas, com os meus cinco anos, esses nomes eram-me desconhecidos.

Para completar o magnífico cenário, juntei-lhe um último pormenor.

Fingi uma tossidela.

O avô cedeu, como sempre fazia. Levou a mão ao bolso e entregou-me uma pedra preciosa, embrulhada em papel branco. Desembrulhei o rebuçado e senti o sabor à infância. Parecia mel sólido com baunilha, mas era só rebuçado da tosse. Mas isso são detalhes, aquele é o verdadeiro sabor da minha infância na casa do avô.


Um dia, mais tarde, poderei contar-lhe que a avó mudou de casa, que mais netos nasceram, que tive boas notas e nunca deixei um ano para trás e que consegui entrar na faculdade.
Um dia, poderei dizer-lhe que nunca ninguém me disse que tu morreste e que eu continuei por anos convencida de que continuavas numa operação muito difícil que demorava muito tempo, no meio das paredes de tijolo do hospital.


Quando, por fim, estiver satisfeita e completa, pode ser agora mesmo, vou continuar por outros caminhos.

Vou até ao fundo do corredor, espreitar para aquele quarto ao canto, quarto escuro. Na cama vejo uma sombra e um feitio de mulher, mais que mulher, de velha. Até aqui está louca, permanece louca. Não me aproximo, limito-me a ver. Quase que tenho medo da minha bisavó.

Virando costas, dou meia volta e chego à entrada.
Um espelho, uma mesa, um tapete e um telefone.

Pego no braço do instrumento mágico e marco um número.
Ao ouvir uma voz desconhecida, desligo de imediato e quase choro.


Abro a porta e subo a escadaria até à minha divisão preferida.

O sótão está cheio de luz e pó, como um nevoeiro de âmbar.
No chão estão os legos do meu tio.

Está tudo uma confusão, uma agradável e confortável confusão.

Subo à cadeira de baloiço, demasiado alta e larga para mim, e dou impulso para a frente e para trás. Só que, de cada vez que a sinto voltar atrás, ganho medo que caia. Fecho os olhos e finjo que comando um barco de piratas.



Sou eu, em casa dos avós, baloiçando-me na cadeira, num barco de piratas.
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Gostaria de ir à escola. Mas a professora ainda é viva e os meus amigos também. Seria um lugar vazio, corredores abandonados, escorregas inutilizados, salas desertas, casinhas de brincar ocas.

Vejo a grande cabana de madeira e prometo um dia, quando todos reunidos na morte, regressar por uma eternidade para brincar.


Assim, segui para uma terra distante, onde quase não há casas.
Normalmente, seguiria para casa da minha prima inglesa, mas ela não estava. Quando ambas existíamos no mundo, isso acontecia, por vezes, estaria lá na Inglaterra. Ali, porém, a verdade era, com lógica, outra.

Também os meus tios eram vivos, tal como os meus avós, tal como outros primos, aliás, tal como todos aqueles que conhecera.

Todos?

Se o tivessem sido, não estaria ali.

Subi as escadas da casinha vermelha e puxei o cordão que fazia de maçaneta.
Espreitei para a cozinha e deixei-me inundar por aquele tão característico cheiro de velho, de muito, muito antigo.

Sentadas à mesa, estavam duas figuras, vestidas em tons de preto e cinza.
Ao verem-me, com um sorriso, disseram a minha expressão preferida, naquele tom de vós ideal adequado ao que me lembrava:

- Olhai!

Não sabia ao certo o que aquela pequena palavra significava, mas, para mim, era o olá dos tempos dos pais da minha avó.
Ri-me e corri a abraçá-los.

Contei-lhes que era boa aluna, que adorava ler e que tocava violino. A bisavó deixou-se deliciar pelas minhas palavras e contou-me as histórias que lhe pedi nos últimos dias de vida. O bisavô sorriu e pediu-me para pôr as tranças que levei ao funeral dele.


Quando fiquei só na cozinha, levantei a toalha da mesa, na certeza de que quem esperava encontrar já se encontrava connosco.
O gato amarelo repetiu os gestos da sua vida, levantou a pata e tentou arranhar-me. Passou a menos de um dedo do meu olho.

Eu estremeci.


Saí.
Um dia, teria a oportunidade de conhecer o irmão da minha avó que tão cedo partira, tal como todos os antepassados meus, tal como toda a humanidade, tal como todas as almas. Havia tempo para tudo, naquele nível de percepção.
Mas esse dia não era aquele.

Era tempo de visitar a casa em frente.

A mamã do meu avô.
O sorriso magnífico sem dentes.

E uns óculos maiores que o que pudesse imaginar.

Mais outra eternidade a ser saboreada.

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Cresci um pouco mais.

Apesar de saber que ainda não havia vizinha do lado com quem brincar, fui até à minha rua.

Era Outono.
Talvez fosse o meu aniversário, mas isso não se lê nas folhas das árvores.

Como sempre, entreguei-me à minha brincadeira preferida da rua.

Juntei as folhas secas do chão, aquele remoinho colorido, num monte apenas. Quando atingiu uma altura considerável, dei uma corrida e atirei-me contra elas.

Continuei o festim, atirando-as ao ar, atirando-as ao meu cabelo, sem nunca parar de rir.
Tão agradável que é ser criança no Outono.

Poderia passar o resto da minha vida saboreando aqueles momentos. Se tivesse vida.


O vestido dos cinco anos mudara.
Agora, era aquele amarelo cor dos girassóis com flores azuis salpicadas.



Chegado, enfim, o momento.

Podia ter dez anos, mas esse não era mais que o meu aspecto.
Era uma ilusão, uma criação, uma imagem da minha imaginação, que aqui a imaginação vale tudo.

Escolhi um jardim.
Um jardim com um parque infantil.
Sentei-me ao baloiço, à espera. Ela não se demorou e vinha com um vestido, também.

Um vestido cor do céu salpicado com girassóis.

Sorrimos. Nunca antes fôramos tão iguais.


Tínhamos muito a dizer, muito a contar. Tínhamos tudo, mas, ao olhar uma para a outra, julgo que nos compreendemos instantaneamente.
Começou ela.

- Olá, Adriana.

A voz dela, por fim, não por um gravador nem por um vídeo.
Ela, ali, ela. Apenas, ela. A minha amiga, a minha melhor amiga.

- Olá, Joanna. - disse. - Olá, Joanna Sophia.

Dito isto corremos a abraçarmo-nos.


Estávamos no mundo dos mortos, éramos as melhores amigas, abraçadas.

Estávamos diferentes, porque a minha alma não estava a sofrer e porque a dela estava inteira.

Ela estava inteira. Haviam-se passado mais que ano e meio desde o dia em que a alma se despedaçara e parte morrera ao dia da morte da réstia da alma e do corpo.

- Foi a primeira coisa que fiz, quando cheguei. Procurar o pedaço de alma que me abandonara.

Está forte. Está mais forte que nunca. E é a minha melhor amiga, tal como a conheci.

1 críticas: (+add yours?)

lerrnst disse...

obrigado pela partilha e hoje... feliz natal