O chapéu e o pássaro (conto)

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Uso chapéu porque estou careca. Podia ter sido pior, mas não foi e estou grata. Tenho de usar chapéu, mas até me fica bem. Se o tirar e virem a minha cabeça rapada, decerto que farão troça de mim. Não, estou segura. Protegida por um chapéu. Amanhã, posso trazer um boné, e no dia seguinte uma boina. Posso fazer uma colecção de chapéus de todo o mundo. Posso ser quantas personagens em cada dia. Estou careca. Privada dos meus doces caracóis e do seu peso gentil quando pousavam nos meus ombros com a força da rebentação das marés nas costas da areia. Os meus cabelos eram ondas suaves e deles conseguíamos ouvir o som do mar. E agora estou careca. Não levo a cabeça despida, tenho um chapéu e amanhã outro. Estou careca mas poderia ser pior. Estou careca, mas tenho saúde e tenho peito. Se bem que ainda não tenho peito realmente, um dia terei. Obrigo-me a sorrir, porque está tudo bem. Estou bem, estou segura. A mulher chorosa a meu lado na sala de espera não. Não me disse nada, mas li nos olhos dela. Está-lhe escrito em toda a cara, nas mãos que tremem, que a morte já a acolhe em seus braços gelados. Vai morrer, talvez já esteja morta. Já está pálida. Já está fria e arrefecida. Já está rija, como pedra. Esperamos sempre que continuem suaves, para alimentar a ilusão de que estão a dormir. Mas não estão. Estão mortos. Estão rígidos. E já não são vivos.
Eu estou viva.
Eu tenho chapéu e saúde e peito e estou grata.
Que mais posso que sorrir?
Tira o chapéu, diz a professora, e todos olham para mim. Já todos olhavam, eu fingia que não. Agora, é impossível de ignorar. Tira o chapéu, diz a professora. Tira o chapéu, Tira o chapéu, Tira o chapéu, repete, insiste e debita a professora. Já só é automática, agora. Tem peito e tem cabelo e não imagina a importância do que me pede. Tira o chapéu, Ana Marta, imita alguém no fundo da sala. Todos me olham e o meu sorriso desfaz-se porque o mundo parou para me ver tirar o chapéu. De súbito, deixou de importar ter peito, ter saúde ou estar viva. Não tenho cabelo. Não tenho cabelo. Palavras que murmuram ao meu ouvido, palavras que ecoam por dentro e me fazem estremecer. Deixei de ser a menina corajosa e o encanto das enfermeiras. Agora, sou a rebelde que não quer tirar o chapéu. E depois serei a que não tem cabelo. Assim posta e exposta. Não quero, por favor, não me obrigue a tirar o chapéu, por favor. Sei que o digo em voz, mas na minha voz, tímida e baixa. Tenho medo de a gritar. Mas ela ouve-me. Tem a prática de apanhar mexericos. De dois passos e um gesto, arranca-me o chapéu. O silêncio. Ninguém se atreve. Todos eles compreendem, agora. A cara dela, choque. Vai devolver-me o chapéu sem uma palavra e o mundo vai prosseguir, arrependido. Vão perguntar-me, mais tarde, se tive de tirar alguma coisa e vão contar como a antiga porteira teve de tirar o peito. Eventualmente, vão compreender o quão perto estive da morte e vão ficar assombradas.
Se ao menos a realidade fosse como a esperamos.
Se ao menos a humanidade fosse prática, lógica.
Agora, surpresa. Choque estampado nos rostos. A professora é a primeira a avançar. O choque tornou-se fogo. Então, grita-me uma voz carregada em fúria, então é por isto, menina mal encarada, que te escondes atrás de chapéus? Virou-se para a turma toda. Ninguém, numa aula minha, há-de esconder os seus actos arrependidos atrás de um ridículo chapéu! Vejam, vejam bem este vosso exemplo! Vejam, e isto disse-o como que para o abjecto mais nojento que ela alguma vez vira, a beleza de uma menina careca!
Todos me olham e não consigo dizer nada, porque o meu sorriso se desfez em lágrimas, porque o mundo parou para se rir da menina sem cabelo. Ninguém percebe. Ninguém vê que podia não ter peito. Ninguém vê que podia ainda estar doente. Ninguém vê a mulher pálida, fria, rígida e morta comigo na sala de espera. Ninguém vê o abraço gelado da morte que nesse dia a escolheu a ela mas que do mesmo modo me poderia ter escolhido a mim. E hoje podia ser o meu enterro e a escola fechava em luto e ninguém me obrigaria a tirar o chapéu e ninguém se riria de mim e não seria eu a chorar, todos me olhariam e o meu sorriso haveria de estar desfeito em morte e o mundo pararia para me chorar. Ninguém vê nada disto. Arrumo-me no canto da sala, em choro apertado, sem chapéu e sem vida. Ou assim a desejaria.
Estou outra vez na cama da enfermaria e não sei se compreendo. O doutor disse-me que estava tudo bem. Então por que estou outra vez aqui?
Não me iludo, bem o sei. Queria estar bem e enganaram-me para viver a minha última semana feliz. Já não me enganam mais. Desta vez, sinto as penas da morte a roçarem-me e acariciarem-me e beijarem-me nas faces. Descobri que a morte é um pássaro gentil e um pássaro que sabe beijar. A morte não se ri de mim. Acompanha-me nas noites de insónias, cantando ao meu ouvido tristes melodias.
Queria ter amigas que me confortassem. Queria que elas se lembrassem, lá na escola, mas já não tenho ilusões. Em duas noites deixei de ser criança. Sou quase capaz de as ouvir, ao pé de mim. A Ana Marta está no hospital? Sim, com uma daquelas doenças em que nos tiram o peito. Tiraram-lhe o peito? Não. Então porquê tanta choradeira?
Queria que o meu pai estivesse aqui, mas ele trocou-me por outro país, do outro lado do mar. Queria que a minha mãe estivesse aqui, mas ela deixou de me olhar nos olhos. Queria que a minha irmã estivesse aqui, mas ela culpa-me pelas amantes do meu pai e pelas bebedeiras da minha mãe. Queria alguém mais para além do pássaro morte e da enfermeira que me alimenta.
Pergunto-me sobre quem irá ao meu funeral. Mas isso não interessa, porque já estarei morta. Aqui, estou viva, estou a morrer, estou sozinha.
Aqui, respirando dolorosamente, a única desta cela, não julguem que vos guardo ressentimento. Consigo ver-te. Sei que estás enternecido comigo. E amo-vos, todos, intensamente, como às vidas que não pude trazer à vida e amar.
Cai um pássaro morto no peitoril da janela.
É o meu sinal: está na hora.

Escapadela II

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(21.07.2010)

O que todos esperam de ti. Que tu, invariavelmente, não fazes. Esta é a tua segunda escapadela. Já sabes que tudo vai correr bem. Tinhas saudades de comboios. Vais de costas e deixas-te embalar pelo solavanco constante das carruagens. Respiras este som, com saudades de quando era o de todos os dias. Deixas o nevoeiro matinal na cidade onde nasceste. Aqui há Sol! Sol! As nuvens flutuam como pequenos milagres. Vês os campos infinitos, vês as linhas, sujas em óleo, gastas pelas centenas de aniversários. Sabes este mundo de cor, o cenário dos viajantes não muda.
Aqui, não há ultrapassagens perigosas, nem curvas apertadas, nem trânsito. O que poderia correr mal, com o teu companheiro de viagens eternas?
Desculpa, mãe. Perdoa-me por te mentir, mas não havia outro modo. Deixavas-me vir, se soubesses? Perguntar-te-ias pela razão. Eu amo-te, mãe, mas tu não compreendes. Desculpa. Preciso disto, porque é isto que sou: uma viajante.
As nuvens, altas, regressam. São grandes e imensas. Correm com o vento ou talvez sejamos nós que fugimos. Vejo os pinheiros, cismo onde estou. As pessoas dão demasiada importância a tudo, como se uma viagem fosse algo descomunal. Calma! Interessa-me que vocês compreendam? Só fazia bem. És louca. É só uma viagem. Viagem comigo.

Vamos às compras, querido.

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Vamos comprar um ferro de passar, querido.
Vamos comprar uma máquina de café, um microondas, um secador.
Vamos comprar, querido.
Vamos submergir na corrente da expectativa de adquirirmos ditos confortos do mundo moderno, ditas facilidades dos novos dias.
Assim julgamos.
Vamos submetermo-nos à escravidão real de fazermos nossos os hábitos de todos.
Vamos vestir, querido, o conforto dos nossos lares de igual, com os outros.
Quem nos vai julgar? Quem nos vai estranhar? Quem nos vai dizer que não podemos?
Vamos comprar uma carpete para a entrada, querido.
Vamos vender a nossa alma a esta causa.
Vamos vender a nossa honra, querido, a nossa dignidade, a nossa individualidade, para comprar as nossas grilhetas.
Vamos trocar o sangue por óleo.
Vamos vender os livros de nossos avós para comprar uma torradeira.
Vamos vender as nossas memórias para comprar copos em cristal. E vamos gritar e bater quando algum se partir, porque o cristal é insubstituível.
Vamos desmembrar o nosso cão ou gato e vendê-lo órgão a órgão a quem nos der melhor preço.
Vamos vender a nossa sombra pelo melhor preço. Para que nos serve uma sombra?
Vamos vender a nossa integridade ao melhor preço. Para que nos serve a integridade?