Ilegal Anormalidade (NaNoWriMo)

1 críticas

Voltou tudo ao normal. Era estranho como tudo voltava ao que sempre fora de um modo tão natural, como se nada tivesse acontecido. No entanto, tal estranheza nada mudava. Se uma figura pública tivesse sido encontrada morta, todos rodeariam durante muitos dias a história, apesar de tal falta não mudar, realmente, a vida dos que o conheciam. Passado alguns dias, os meios haveriam de se render, pois o peixe já não venderia. Agora, ali, era simples. Era um imposto, imposto a todos. Na realidade, era uma multa com outro nome. A lei ressaltou de um dia para o outro. Houve queixas, houve conflitos nos arredores das grandes cidades. Houve tentativas de revolta. Mas, uma semana depois, tudo na mesma. Imposto sobre música não programada.

Havia uma pequena menina que adorava ouvir música, mas nunca a ia buscar à rádio, como todos os outros. Ela olhava em volta, há procura de árvores enormes, a que todos, de tanto habituados, já nem as viam. Ela, porém, não se limitava a olha-las, reparar nelas: agarrava-se docilmente e trepava
aos ramos mais altos. Por vezes, demorava um pouco mais até lá chegar, mas nunca desistia. Lá de cima, deixava-se embalar. E, quando voltava, trazia a cabeça muito mais cheia e poderia sempre voltar. Essa floresta é, está claro, a música, toda a música. Tudo isto não é mais que uma metáfora. Mas essa menina carregava o seu leitor com músicas e músicas, todas as que ela gostasse. Sabia que lhe davam alimento mais que tudo. Eram a alma dela em revista. O alimento, a respiração. Sem música, podia ser humana, mas não era pessoa, porque se tornava oca.

Imposto sobre música não programada.

No início não lhe fez diferença. Nem a ninguém. Com o tempo, todos se habituaram a não ouvir o tipo "errado" de música, aquele que se tinha de pagar. Música era bom. Mas não um luxo. Um imposto começa a ser um pouco demasiado para poderem ter o pequeno conforto. Dispensável, portanto. Não para ela. Continuou a dar as onças pelos segundos, longos minutos, ternas horas em que escutava quem quer que preferisse no momento. Ligava a caixinha de música e, algures na sede da polícia do governo, um cronometro acionaria a contagem. Ela ouvia sempre música fora do programa.

Conseguia ver o que estava mal, ou "errado". As letras, chocantes e incitantes, aliciantes ao lado perigoso da vida…Os sons, todo o espectro que conseguiam abarcar de sons, estranho, difícil de seguir. Ela compreendia - o governo tinha medo dos pensadores, das pessoas que fossem levadas pelas músicas a fazer o não esperado. E, assim, ninguém ouvia. Ela não o dispensava, porém. Era o ar que lhe compunha a alma. Continuou, submissa, a pagar todos os cêntimos que cada segundo valia, porque cada segundo valia a pena.
Com o tempo, deixou de ter comida em casa. Vendeu a roupa e ficou apenas com um farrapo. A música ia-lhe morrendo. Os segundos, cada vez menos. Era como uma droga, lhe diziam. Com o tempo, começou mesmo a ser vista como uma droga. A estranheza dos sons. Alienados deste mundo. Nada poderia existir realmente assim. Drogados dos músicos que só tocam e cantam o irreal, diziam. Ela via os que lhe falavam assim e notava-lhes a arrogância de se acharem maiores e que as palavras haveriam de fazê-la calar, fazê-la parar. Se antes, oh, ao menos antes, gritassem, a plenos pulmões, talvez ganhassem um pouco de razão e ela conseguisse perceber as tolas insignificantes palavras.

Com o tempo, teve de vender tudo. Deixou de ter dinheiro. Até que deixou de haver música.

No dia em que deixou de haver música, ela atirou-se ao chão sem conseguir respirar. Sofucava com as lágrimas, de olhos a jorrar de vermelho. Soluçava e tinha a garganta cheia de amargo. Todos abanaram as cabeças e ninguém a ajudou. Pobre drogada. As mães afastaram os filhos dela, repreendendo-os.

Uma semana depois, no meio da rua, começou a cantar, a mais cara das músicas que conhecia. Cantou-a bem alto, para que todos a ouvissem. Calou as lavadeiras dos prédios circundantes, cantou e calou a cantiga dos melros que debicavam as primeiras frutas, cantou e cantando mais alto calou as buzinas distantes e as sirenes de ambulâncias e cantou e calou o mundo só com uma, a mais cara das músicas, cantou até ser calada. Quando o bastão da polícia a atingiu com brusquidão, o mundo que ela calara ficou cego e negro. E sentiu a cara contra o chão. E não sentiu mais nada.

Do canto de uma estreita avenida que dá para esta cena, encontra-se uma outra menina, um pouco mais nova, tentando se esconder por detrás do vão da escada. Ela chora a morte da sua heroína e mentora e está aterrada de tão assustada. Essa menina vai crescer num outro mundo, onde já não é preciso pagar para ouvir. Ela há-de se agarrar à sua caixinha de música, com atenção e absorvendo tudo o que pode. Todos hão-de estranhar tais modos e de lhe perguntar por que está sempre de música nos ouvidos. Ela, simplesmente, irá encolher os ombros e agarrar-se com força ao que tem e aproveitar cada segundo em que pode ouvir música sem ter de pagar imposto nem multa. Ela, simplesmente, nunca vai mostrar a ninguém o que ouve, com medo do bastão da polícia. E essa será aquela que mais bem saberá ouvir música. E a que terá a alma mais cheia. E a que nunca deixará nada voltar ao normal quando o mundo mudar as regras da liberdade, mesmo à sua frente.

Mãe, tenho saudades minhas

0 críticas

Mãe, tenho saudades tuas.
Dos dias em que levavas a tua pequena princesa à cidade. E aqui foi onde tu nasceste, e aqui é onde a mãe compra as meias, não toques em nada. Lembro-me de ficar quieta, à tua espera. A minha mão cabia na tua e eu mal te chegava à barriga. Quando via um pedinte na rua, chamava-te e dizia:
- Não lhe devemos dar qualquer coisa?
As tuas respostas variavam.
- Não, que é para as drogas.
- Não, que já pouco temos para nós.
- Oh, Adriana, se fossemos dar a todos...
Mas, por vezes, cedias e eu corria a pôr uma moeda na mão estendida, no chapéu, no estojo de violino ou saxofone. Muito eu gostava de dar moedas.
Eu era pequena e tinha de estar contigo. Mãe, desculpa ter roubado a tua pequenina. Mas ela teve de crescer. Tu sabias. A infância nunca é eterna. Tentei prolongar a minha, mas não deixou de ser efémera.
Com saudade,
da tua
fifi