Conto dos Livros Desconhecidos

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Ela ia às livrarias e escolhia livros desconhecidos de autores de que nunca tinha ouvido falar, porque achava que as grandes histórias eram aquelas que estavam escondidas, aquelas de que não eram faladas. O maço era cada vez maior, os livros empilhavam-se, cada vez mais. Um dia, dizia ela, hás-de ler todas estas histórias. Um dia, respondia ele, hás-de escrever todas essas histórias.
Os livros desconhecidos eram livros esquecidos, era como intrometer-se numa história de amor já passada, por intremédio de cartas esquecidas numa caixa de latão, embrulhadas por um típico laço cor de rosa ou dourado, ou histórias que contam um trocar de olhares e ficamos a imaginar. Aquelas eram todas as hipóteses possíveis. Ali, estava todo o espectro, toda a magia. A verdadeira literatura residia no armario do mistério.
"Encontrei um livro fabuloso", e ele sabia que ela o tinha arranjado talvez numa venda de garagem, em segunda mão, por uma bagatela. E ela sabia que não teria ninguém a quem falar dele, que não encontraria discussões acerca dele online, aquela cópia era única e exclusiva, como se feita para ela só, como se escrita mesmo por ela. A magia estava ali.
Não eram livros que se pudessem encontrar sequer nas grandes livrarias, em grandes Bertrands ou famosas Fnacs ou populosas Almedinas. Quantos daqueles seriam roubados do sótão dos avós? Quantos daqueles teriam vindo de Angola, Moçambique, Brasil?
Todos reunidos, ali. Há quem coleccione selos, ela colecciona livros.

Mãe Mãe

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Nós divergimos porque eu posso ficar longos momentos a contemplar a lua, enquanto ela lhe deita um vislumbre e desvia o olhar. Nós divergimos porque eu tapo os ouvidos, cada vez que ela discorre sobre roupas e roupas e mais roupas, como se a conversa não me fastiasse, como se o interesse fosse mútuo. Nós divergimos porque não conseguimos ver os mesmos filmes. Ela vê os meus e diz que são muito tristes, eu vejo os dela e não consigo decifrar um pouco de originalidade ou um pensamento um pouco mais profundo. Claro que conseguimos ser parecidas e gosto que ela tenha alguma profundidade de pensamento, mas, por tantas vezes, as vontades dela vêm contra o suposto "amor incondicional" que tem por mim. E eu quero dizer-lhe, gosta de mim como sou, não como queres que seja!, mas sou a boneca dela e nada posso fazer.
Olho para a lua e sinto-me cósmica, sinto-me a orbitar, naquele espaço enorme, "pendurado" do outro lado da atmosfera, tão perto no universo, tão longe e tão visível, tão belo. A suspensão das nuvens, o espectro das cores do céu, não consigo evitar sentir-me aérea, as estrelas, o sol, não consigo evitar sentir-me cósmica.
Quando tu me falas em roupas, quando tu me mostras roupas, eu não sinto nada a não ser um vazio. Ok, sim, eu visto, estou quente, sobrevivo ao inverno. Não, mais não. Deixa o meu cabelo. Deixa-me roer as unhas. Deixa-me ter as sobrancelhas por arranjar. Não quero saber se fico bem de vestido ou não, não sou uma boneca, não sou uma peça de exposição, mãe, sou uma pessoa, mãe, não quero que as pessoas vejam, quero que as pessoas ouçam, apesar de não falar. Quero sentir-me infinita com elas, estelar como as constelações, natural como o vento. Não quero saber quem fez quando nem o quê, não quero saber do carro novo nem do carro velho, se me vens falar, fala-me de viagens de comboios, de passeios a pé, de grandes peregrinações a Santiago, de grandes viagens na estrada, sim, de carro, mas não do carro, a menos que o carro seja a tua casa.
Mãe, deixa-me fazer figuras infantis, hoje, na baixa, deixa-me pisar a pedra branca mas não a azul, deixa-me gritar de alegria ao ver uma das setas amarelas que segue para Norte, deixa-me andar pela beira dos passeios. Não sou uma boneca. Não sou uma obra de arte.
Eu não te conheço, tu não me conheces, vivemos longe, na mesma casa. Às vezes, estamos tão ligadas, até tu desconverares com essas tretas.
Já pensaste por que raio tenho de ir ao psiquiatra todos os meses? Já pensaste por que raio estou a tomar anti-porcarias e anti-doenças-mentais? Já pensaste por que raio às vezes grito, do nada, de medo, de fúria, de alegria, de tristeza?
Não sou a tua boneca, mãe. Vivemos em mundos diferentes.
With love,
me

Utopia

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[Sonhos de Utopia, num jardim de infância]
Uma casa, afastada de tudo, num campo meio ao descampado, meio à orla da floresta. O meu sonho, é uma casa, uma casinha, sem vizinhos, sem excessos. Um jardim de ideias, jamais limpo dos musgos e das poeiras do inverno. Uma gota que passa, sem se lavar. Uma casinha, com o mais simples, esta casa adorável, onde as divisões se fundem e que uma vasta biblioteca preenche. Estamos no inverno, estamos no verão. Uma casa sem microondas, sem tostadeira, sem triturador, só uma casa, com meia dúzia de festas e afectos, carinhos a quem por lá passe, para ir ler um livro, ou para me ir ver a mim. O branco, no meio das madeiras, no meio das tílias. Os livros, o cheiro a livros. O meu sonho é uma cama no chão, rodeada de livros. Música.
Uma casa onde as coisas pequenas são aquelas que a tornam casa. Como caixas em lata e os segredos que nelas se escondem, como bilhetes de comboios que já nem existem, ou cartas, quando já não se escrevem cartas. Como malas de papelão, com cadeado, a fustigar a imaginação. Como estojos de canetas de aparo, de tinteiros, de lápis de desenho, a carvão, a grafite, a pastel, como tintas de aguarelas. Onde os cadernos se amontoam, com vergonha do que trazem escrito, eu com vergonha do que neles escrevo.
Uma casa onde o chá sabe a chá, onde a televisão não é mais que um mito longínquo, onde, de vez em quando, se ouve o bater do teclado de uma máquina de escrever, antes de se dar o sonoro fim de parágrafo:
PIM!
Uma casa, com, queiram ou não, um livro de visitas, como se fosse um albergue do caminho, onde se sabe que a concha é o símbolo do viajante. Sem urgências, só meditações contemplativas, enquanto o sol se põe, o lusco-fusco adorna, ou quando a noite batalha com a manhã, em preto e branco, ou quando fechamos os olhos e somos só nós.
Com flores a brotar de lâmpadas, porque a imaginação cresce em lugares criativos.

Que te deu hoje, Adriana, nunca te vi tão optimista! (parece que o frasco das alegrias resulta mesmo), e ouvir boa música também *