Esperando que a chuva passe (que tudo passe)

Ela chegava às quintas a Guimarães, às vezes de expresso, outras de comboio. Vinha de Coimbra, de mala, mochila e portátil e quem lhe acompanhasse o percurso teceria a história habitual: jovem estudante em Coimbra, regressando de fim-de-semana, esperando no shopping que alguém a venha buscar. A verdade, porém, ironiza esta ideia. A jovem vive, afinal, numa vila, para os lados de Coimbra, e está a tirar mestrado, na Universidade do Minho, em Guimarães, com aulas às sextas e sábados, apenas. Está ali, sozinha, mas ninguém a virá buscar. O que ela espera não é mais que a chuva passe, para iniciar a escalada até ao castelo - e até ao quarto alugado.
Quando começou, com o desespero, a perspectiva de vir a ter de ficar em casa um ano, ainda a pesar e sussurrar, não cabia em si de contente. Nervosa, conheceu os colegas de casa e os colegas de turma. Ambientou-se, pôs-se nos eixos: seguiu em frente. Então, de súbito, tudo começou a descarrilar.
A princípio, culpou a depressão, para a qual estava a ser tratada. Lidava com a frustração que o mestrado lhe trazia, dizendo, para si mesma, "também isto há-de passar". Afinal, também na licenciatura sentira aquele desalento, aquela vontade de fugir.
Porém, quando, meses depois, já se sentia livre das garras da nuvem escura no seu interior, o desalento continuava e algo bastante novo - coisa que não lhe passara pela cabeça durante a licenciatura - dava ares de emergir, aos poucos: uma vontade irreprimível de desistir do mestrado, precisamente quando já era demasiado tarde.
As cadeiras do 2º semestre estavam a ser, uma por uma, deixadas para trás. Nos trabalhos de grupo, metia os pés pelas mãos e deixava a timidez tomar conta. Estudar para os testes era tempo perdido, passados cinco minutos, não se lembrava de nada do que tinha lido. Nada dava ares de passar. A matrícula não podia ser congelada.
Sentia-se presa. Começava a afastar-se daqueles que conhecera. Em casa, preferia resguardar-se no quarto e não dar sinais, sequer, de estar em casa, para não falar com os simpáticos rapazes, com quem já partilhara histórias, jantares, noitadas, limpezas, gargalhadas e tudo o mais que se consegue numa casa de estudantes. No seio da turma, era fácil não dar nas vistas, nunca dera. Porém, o seu coração sempre estivera com aquelas 13 personalidades, tão únicas à sua maneira, tão especiais e tão marcantes. Agora, começava a pôr-se de lado, a ouvir menos para não ter de ouvir, a enterrar-se na cadeira, a desaparecer como uma vela no fim da noite.
Em casa, com os pais, a pressão não se tornava mais fácil. "Queres ou não queres?, Fazes ou não fazes?" eram perguntas impostas cada vez que o assunto vinha à baila. No entanto, ela sabia que a forma de todo aquele assunto não era assim tão linear. Eu não gosto daquilo. Talvez consiga fazer tudo, tenho capacidades para fazer tudo, mas estou a desgastar-me por cada coisa. Desgasto-me de cada vez que não consigo fazer um integral de cabeça, de cada vez que a lei de Ohm não é óbvia à primeira. As pequenas coisas que me são importantes e que vou esquecendo dão cabo de mim. Mas já gastámos todo o dinheiro no quarto e nas propinas e independentemente do que vocês digam eu não consigo tirar esse peso de cima. E o problema é se depois não acabo tudo e tenho de ficar mais um ano, longe, a tentar acabar esta merda - mais um ano de quarto e de propinas e de frustração. Eu sei que sempre fui uma boa aluna, mas nunca não ser boa aluna teve tais implicações. Não sei onde estou. Estou perdida. Não podia responder. Não sabia responder. E o assunto esgotava-lhe as energias.
Era nisto que matutava naquela tarde, enquanto mastigava a fatia de pizza e bebericava a 7up. O que pensariam aqueles que com ela constantemente se cruzavam e a viam rabiscar um pedaço de guardanapo?
Foi então que Adriana formulou e pôs por escrito o que nunca imaginara proferir:

"As coisas eram mais fáceis com a depressão."

~ Esperando que a chuva passe
(que tudo passe)
16.o5.2o13

Adriana Gaspar

Guimarães