O Livro do Inferno - O Pobre Diabo

As escarpas abriam numa clareira circular. O céu sangrava todo o vermelho. Do outro lado, uma caverna negra, com o fim a cair de vista, como uma grande boca de um peixe emergente, colossal.
Sentado, resguardando a entrada, uma aterradora figura, de olhos atentos, postos nela. Sentiu-se a paralisar. Talvez devesse voltar atrás, mas nem ao menos era capaz de pensar. Nenhum músculo respondia. O ar tinha fugido. O coração não parava, magoava como facas cravadas no peito.
Quis acordar. Aquele pesadelo macabro tinha de terminar. Oh, mas, para seu terror, sabia-se bem consciente. Nada podia ser mais real. Tomou coragem. A jornada fora imensa, não podia deixar-se naquele impasse, pois a besta não parecia fazer nada, limitando-se a observar. Engoliu em seco.
Um primeiro passo em frente.
Diabo seja! - berrou a criatura, fazendo-a saltar em sobressalto. Que raio és tu?
Permaneceu sem articular palavra.
Não esperava que um som minimamente humano saísse das entranhas de tão inconcebível ser. Os olhos que a fitavam, agora, carregados de inquisições.
A medo, começou.
Eu vim até aqui. Para vir morrer, pensou. Para vir morrer, disse em murmúrio.
O quê? replicou a criatura. Tens de dizer isso mais alto, porra!
Ela fez-se repetir, um pouco mais audível. Ele respondeu com cara de troça.
Anda até aqui, chamou-a com o braço. Que não entendo um corno do que dizes!
A medo, cautelosamente, avançou. Avançou até olhar, nos olhos, a besta. Foi então que reparou que este era mais baixo que ela.
Desembucha de lá.
Vim para morrer.
O medonhinho franziu o olhar.
Argh! Bah.
Lançou-lhe um esgar de nojo.
Mas será que ninguém me deixa em paz? Primeiro lá de dentro, agora do raio daqui de fora!
Ela estranhou-lhe a linguagem. Sim, era grosseiro.
De onde já se viu um ser divino tão grosseiro. Apontou-lhe a boca de baleia encovada.
Sabes que é aquilo?
O inferno?, perguntou-se, em voz alta.
A besta deu pequenos passos, de um lado para o outro.
Inferno, purgatório, submundo, o que lhe quiseres chamar. É terra de ninguém, to garanto. Quem morre, é para ali que vai. Naturalmente, põe alguém de guarda, porque aqueles danados querem voltar à vida. Onde já se viu isto? É o Diabo, o Bicho, o bobo da corte, a troça de todos que se escolhe. Estou cá, desde sempre, impedindo os tolos de voltar. Vivos e mortos no mesmo mundo! Separo-os aqui. E agora chegas-me tu, a quereres entrar. Saem uns, entram outros. Lotação esgotada, aguarde, por favor! Bah. Ao menos aqui nem há música. Aqui estou eu, para todos rirem. Do cornudo, sem maneiras.
Dizem as lendas que o Diabo é maldoso. Que causa o mal no mundo.
O mal? Já não basta ser porteiro, agora sou o mal? Achas que sou segurança de lá de baixo? Achas que não te vou deixar entrar? Qual quê! Todos os vivos seguros, comigo aqui. Protejo este mundo, assim é que é! Sem mim, eram almas penadas a vingar por todo o lado. E só espaço para essa gente toda? Ali em baixo há todo o espaço que possas imaginar! Aqui não, já mal podemos connosco, olha o que iria ser do mundo sem mim!
Dizem os mitos que o Diabo é o imperador dos Infernos, o supremo soberano.
O quê?
E isto di-lo com voz de grande espanto. Depois, contorce-se para trás numa gargalhada, meia risada, meia grunhida.
Tanta fama! Proveito, qu'é dele? Mas digo-te uma coisa. Poucas vezes estive ali abaixo e não guardo saudades. Ser rei naquilo não era reinar, era ser escravo! Lá em baixo estão todos mortos. Ah ah, eu rei! Bem bom, talvez pudesse ter descanso. Em vez de porteiro do casebre fúnebre.
Faz uma pausa para a olhar, de cima a baixo. Franze as sobrancelhas.
Com que então queres morrer, hum?
Assente. Sim, senhor.
E como descobriste o caminho para aqui?
Um mapa, responde ela. Um mapa, num anúncio de jornal. Folheio o jornal e ali está. Como morrer em cinco passos, Guia para a travessia do Vale dos Infernos.
Os tempos, Diabo!, os tempos! Já não me bastam os que passam a morte a querer viver, agora terei filinha a compasso de espera, todos para falar com o Diabo!, entrevistas com o Diabo!, 24 horas na vida do Diabo!, fora os parvalhões que não querem viver. Não o sabias ter feito com um veneno ou uma corda, como antigamente?
Ela desvia o olhar. Não quero deixar vestígios de mim. Não quero que nada fique para trás, nenhuma prova, nenhum corpo. Quero ser uma vaga memória na mente daqueles com que me cruzei. Parou para respirar. Quero que elas se perguntem se eu existi realmente ou fui apenas sonho ou imaginação, até que me esqueçam.
Tá bom, 'tá bom, já percebi, não digas mais nada. Sabes, deixa-me curioso esse artigo de jornal
Anúncio, interrompe ela.
Anúncio, pronto. Intriga-me, porque és a primeira da eternidade a aparecer aqui.
Agora, a nossa personagem vai ser um pouco maldosa para com o diabo e dizer-lhe algumas palavras de mau gosto. Nós, alheios, vamos ouvir, tentando compreender. Eles os dois entendem-se, isso é que interessa para a história, mas nós, aqui deste lado de fora, podemos ficar algo confusos. Aí ficam as palavras, de mau tom, que de mau tom só o sei serem, porque o Diabo se ressente e responde algo que não responderia a todos, ela diz
Por certo a sua mulher, ele responde com um olhar de poucos amigos, algo desconcentrado, e com o fraseado,
Cautela miúda, só se entra uma vez, dali não se sai, se a Morte é certa, porque não esperar?
Esperando, já há muito, responde-lhe assim: Porquê esperar?

Não há nada de bom lá em baixo.

Só vim para morrer.

Não encontras mais portas aqui. Só guardo para fora.
A entrada da caverna parece coberta com um véu negro, onde nem os vislumbres da vermelhidão do céu chegam. Talvez se devesse despedir, mas não sabe de quem nem do quê. Do Diabo, da clareira morta?
Só vim para morrer. Debruça-se nas portas do inferno, perante toda a escuridão. Só vim para morrer, ou assim espera que seja.