Era uma vez um menino de 11 anos que passava o tempo livre a tocar piano. Já o fazia desde muito pequeno e aprendera quase tudo por ouvido. Todas as pessoas que o ouviam elogiavam-no profundamente, todas excepto o pai, que voltava costas a resmungar:
-Em primeiro os estudos, primeiro, os estudos.
Era daquele tipo de pessoas que se aborrece facilmente em museus e que na rádio só ouve notícias. Para ele, o filho podia ser mesmo o mais conceituado músico a nível mundial, nunca aceitaria tal como profissão respeitável. Contudo, o pequeno amante da música era o melhor aluno da classe, pelo que o pai nada mais podia fazer que não consentir que ele passasse horas a fio brincando com as teclas.
A mãe, por outro lado, vivia deliciada pelo dom do filho. O seu próprio tio fora pianista e, não tendo mais família, deixara o grande instrumento de meia cauda à única sobrinha. Ela lamentava nunca ter aprendido, mas, felizmente, o gene musical parecia ter sido transmitido ao seu pequeno. Gabava muito as suas capacidades, de cada vez que ia ao mercado, e quem já o ouvira podia confirmar que ela não exagerava nos elogios.
O pequeno pianista nutria um carinho especial pela grande colecção de discos do tio-avô que a mãe guardara no sótão. Quando não estava a tocar, ouvia uma daquelas preciosidades musicais, deitado, saboreando as melodias.
Adorava Vivaldi e as suas
Quatro Estações, venerava Mozart e a
Flauta Mágica, arrepiava-se com Beethoven e a
Quinta Sinfonia, descontraía com
Bolero de Ravel e acelerava com o
Voo do Mosquito de Rimsky-Korsakov ou
Gayane de Kachaturiam. Porém, de longe, o seu preferido era Tchaikovsky. Adaptar músicas do bailado Quebra-Nozes para piano apenas fora um desafio e uma aventura. Terminar havia sido uma conquista. E um marco.
A primeira vez que apresentara aquele conjunto de
seis músicas que, no total, duravam quinze minutos, fora num restaurante de uma cidade das redondezas. Encantara todos os que estavam presentes e o conservador do teatro municipal convidou-o a tocar aquela peça, na semana seguinte, no próprio teatro. A mãe não queria acreditar e perguntou se haveria pessoas a assistir. Com a resposta afirmativa, o pai, por sua vez, perguntou se iriam receber algum tipo de remuneração. Ambos satisfeitos, aprovaram a proposta e levaram o filho a casa, para ensaiar sempre que tivesse algum momento disponível.
No primeiro espectáculo, a peça apareceu enquadrada dentro de um programa de recitais dos melhores músicos das redondezas, mas foi decididamente ele quem recebeu mais aplausos. As pessoas queriam ver outra vez aquele prodígio. "E sem nunca ter aulas!" admiravam-se.
Foi assim que as sextas-feiras à noite se tornaram uma rotina. Durante a semana, escolhia as músicas que adaptava a piano com cada vez maior facilidade. De manhã, a mãe ia buscar o fato à lavandaria, de tarde fazia-se o ensaio geral, com a supervisão de um músico qualificado, que o corrigia em um ou dois pontos. O pai conduzia.
-Vamos chegar atrasados! - era o discurso da mãe, todas as noites. Chegavam sempre com meia hora de antecedência.
Um pequeno toque de maquilhagem nos bastidores. E ali estava.
Aquela sala era um abismo. No palco, o som dos seus passos ecoaria não fosse abafado pelo enorme aplauso da multidão. Plateia, balcão. E aquelas varandinhas adoráveis.
O piano, pronto para o receber. O banco já ajustado.
Fazia uma pequena vénia e sentava-se. Respirava fundo, como lhe dizia a mãe.
Qual quê. Aquilo era a sua brincadeira preferida, era o que mais gostava de fazer. E havia pessoas que o adoravam. Era fantástico, ele não conseguia estar nervoso, apenas sentia um formigueiro antes de cada espectáculo, nunca mais começa, nunca mais começa.
Havia um pequeno jogo que gostava de fazer de cada vez que entrava em palco. Percorria a multidão com os olhos até encontrar uma menina da sua idade, talvez acompanhada pelos pais, talvez pelos tios, pela irmã mais velha, pela avó, e fixava-a, distinguia-la de todos os outros. Era para ela que sorria, para ela que orientava todas as vénias, todos os olhares. Por cada concerto, havia uma menina incógnita que, sem o saber, seria sua namorada nos minutos em que ele era uma estrela aos olhos de todos.
Dentro de si, havia uma pequena esperança de que, algures no mundo, uma rapariga se enamorasse secretamente pelo pianista enquanto duravam os concertos que via. Dentro de si, havia a esperança de, um dia, os seus olhares se cruzarem e aí seriam verdadeiramente namorados por uma noite.
Eram sempre diferentes, não queria perder a oportunidade de a escolher só por se ter decidido pelo tipo de rapariga que mais gostava. Havia a menina triste do nariz pequenino, a lourinha dos olhos verdes, a do cabelo cor de cenoura, a da pele cor de chocolate, a que não parava de sorrir, a do vestido com flores, a da borboleta a atar o cabelo, a das tranças. Só não a escolhia entre as que estivessem aborrecidas, as que parecessem obrigadas a estar ali, as que odiassem aquele tipo de música. A pequena que o procurava por todas as salas de espectáculo do mundo certamente que gostava de ouvir boa música.
Daquela vez, nada de mais. Olhos castanhos-escuros, cabelo preto que se confundia com o casaco e vestido da mesma cor. Já estava sentada e ele nada mais conseguia ver. Pena. Tinha a certeza que a sua pequena trazia sapatos de fada. Não havia nada de particularmente diferente no físico dela. Era tão normal, podia ter aparecido como figurante num filme, uma personagem daquelas que passamos por ela e nem a vemos. Não teria sequer reparado nela não fosse o ar desafiador e triste. Como se toda a sua aldeia tivesse sido posta em chamas e ela fosse a única sobrevivente, desesperando por vingança.
Viu-a enquanto caminhava até ao piano. Hoje, é só a ti que vejo, é só a ti que amo. Esta noite, tudo o que eu tocar vai ser para ti, profundamente dedicado à tua pessoa. Ela não aplaudiu com a multidão quando ele chegou. Claro que não. Ele ainda não a merecera. Virou os passos na direcção dela e inclinou-se numa vénia. Olhava para ele. Muitas os faziam, na realidade, quase todo o auditório.
Começou. Eram aquelas seis músicas adaptadas do Quebra-Nozes de Tchaikovsky. A primeira. Sabia as teclas de cor, apesar da complexidade, raras eram as vezes em que consultava o lugar das mãos. Na maioria do tempo, fechava os olhos, abrindo-os para encarar a multidão. Corrigindo, para olhar para a sua pequena por uma noite namorada.
Segunda música, a ela dedicada, a
dança da fada do açúcar. Se lhe pudesse ver os sapatos, tinha a certeza seriam azuis, brilhantes, pareceriam feitos em porcelana, ou talvez fossem apenas como o piano. Sim, aquela música era perfeita para ela, porque parecia descrever o modo como daria um passo após o outro, cauteloso e sorrateiro, deslumbrante. A escolha daquela peça era perfeita.
Olhou para ela, na pequena pausa entre a
música seguinte. Os olhos tinham amansado e ele pôs-se a viver o ritmo frenético que o esperava. O piano era dele, mas isso não importava, era aquilo que lhe oferecia, tecla após tecla, grandes acordes, os dedos leves e pesados ao mesmo tempo, sempre fiel ao original, sem um único erro. De olhos fechados, sorria. De olhos fechados, conseguiu imaginá-la a sorrir sem mostrar os dentes.
Esta nova era uma
pequena música de amor. Imitar uma harpa no piano era uma tarefa fastiosa, tinha de ser tão delicado e tocar tantas notas de seguida, mas os olhos de ambos cruzaram-se e a música era para ela e para ela nada menos que perfeito, nada menos que o que ela merecia. Saberia que era uma canção de amor? Claro que sabia, aquele olhar dizia tudo, dizia que se derretia e desfazia e que cada fechar de olhos não era mais que puro deleite. Esta música é só para nós, saltou para a parte mais difícil, acompanhando a música com a cabeça e o corpo, de olhos fechados, saboreando e aperfeiçoando cada tom. Os dedos fluíam tão naturalmente pelo teclado que a única coisa em que pensava realmente era nela.
Agora a
dança chinesa, algo de tão mais divertido que certamente a animaria um pouco. Fez os possíveis para conseguir gestos abertos e esforçou-se nas caras engraçadas, tal como vira fazer tantos pianistas famosos. Era uma música muito pequenina, mas todos se riram. Havia algo de cómico. Com um sorriso nos lábios, passou à
última. Mais uma de amor, mais uma com harpa de fundo, que espelhava delicadeza e que variava por toda ela. Quis tanto saboreá-la que acabou antes que desse conta.
Já aplausos? De pé, da sua namorada daquela noite que o ia deixar para sempre em breves momentos. Como passara tão depressa aquela última se era a maior de todas? Prendera-se no pensamento e agora tinha de se levantar, porque estava tudo acabado. Ele era o menino do piano que acabara de tocar Tchaikovsky e tinha lágrimas nos olhos, mas ninguém estava suficientemente próximo que as pudesse ver. Ela já ia de costas, uma vez mais, no fim todas iam, no fim, os sapatos de fada não eram mais que vulgares sandálias.
Voltou-se para os bastidores, para os braços da mãe.
-Vá, não correu assim tão mal, só tropeçaste numa nota, ninguém reparou.
-Tu dás-lhe demasiados mimos. - resmungava o pai - Se é para continuar a sério todas as semanas, não podem haver erros.
Virou-se para a sala vazia, sem luzes, sem barulhos. Largou o aconchego da mãe.
-O papá tem razão, tenho de treinar, este piano é um pouco maior e eu não estou habituado, mas tem de sair perfeito na semana que vem.
Perfeito. Para ser perfeito, aquela música não podia acabar nunca. Era a sua parte preferida porque parecia conter uma história dentro dela. Era a que o fazia viver mais, a mais poética, a mais expressiva. Precisava de a tocar as vezes que fossem precisas até ficar completa, até ficar perfeita.
Sentou-se e voltou àquela escada feita pela harpa. Começou a misturar mais instrumentos, tornando-a cada vez mais difícil. Viveu cada sensação deles, como se cada um contasse uma história. Deixou-os lutar um pouco uns contra os outros, até os juntar na construção do mesmo, tentou escalar as emoções até ao cimo. Lembrou-se da menina de verdadeiros sapatos de fada que um dia o estaria a ver, sentiu aquilo de que a música falava e sentido conseguiu tocar ainda melhor, sem nunca desistir. Depois, lembrou-se do fim de cada noite, em que todas elas se iam embora e tocou aquele trecho destroçado. Enfim, voltou a esperança de um dia a encontrar, era só esperar, e para ela tocou até não mais poder, chamando-a. Abrandou o ritmo, preparando-se para o final, suave, como os passos de uma fada. Aquela tinha sido perfeita e tinha a certeza que, quando abrisse os olhos e espreitasse para trás do piano, ela estaria ali.
Abriu os olhos e, espreitando, a menina dos olhos em desafio triste estava a olhar para ele. Não disse nada nem aplaudiu. Os sapatos eram azuis, eram tal como os havia imaginado, eram brilhantes e pareciam porcelana.
Levantou-se. Ganhou coragem. O coração batia a cem à hora, mas podia ser a única oportunidade.
-O concerto de hoje foi dedicado a ti, tens de saber, deves saber disso.
-Eu sei. Tu construías a música conforme a expressão dos meus olhos que deviam espelhar o que sentia. Mas a última música passou demasiado depressa, eu fiquei distraída com um pormenor, uma lembrança antiga. E tinha esperança de a ouvir outra vez.
-Tinha esperança de que viesses. Esta noite, foste minha namorada.
-Fomos namorados enquanto tocavas.
-E agora, continuamos a ser?
Ela hesitou e desviou o olhar.
-Não pode ser. Não posso.
-Porquê?
-Porque eu gosto de raparigas.
Calaram-se os dois. Foi ele que recomeçou.
-Mas, enquanto tocar, nenhum de nós vai ser pessoa, nem homem nem mulher, vamos ser música, vamos ser só o ser que toca e o ser que ouve, ambos os seres que sentem. Aí, poderemos ser namorados?
-Enquanto tocares, sim. - concordou.
-E durante o resto do tempo?
-Eu serei eu, tu serás tu, se quiseres podes ser meu amigo e podemos ter longas conversas à beira do lago, podemos ouvir música, podemos ler e fazer histórias. Mas namorada tua não poderei ser.
O pequeno pianista voltou ao teclado e tocou o trecho melancólico da última música, aquele em que se parecia desfazer em tristeza.