Não quero Falecer.

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Façamos falecer as cores pálidas e bizarras deste mundo. E todas as mentes que não nós, que nos aprisionam. Falecer é a palavra mais feia que já ouvi dizer, é seca e áspera, parece dita pelo próprio falecido que pelos vivos. É daquelas palavras que deveriam ser abolidas do nosso vocabulário por se demonstrarem tão abomináveis.
Que divagações são estas?
São as de quem nada espera a não ser a morte.
Não a morte, a desexistência, existir farta. É um fardo. Odeio.

como me apetece acabar com tudo isto e escrever do modo que prefira, para não ter mais de olhar para nada, disto estou farta.



AAAAAARGH!!!!!!!!!!

pouico falta pois a isto para ser uma especie de piano, mas eu tenho dcada vex menos parciencia para corricir o que estcrevo ou dfe ohlar para o telclado, volas, venoho maisl que vvafazerm,


fim da narrATGICVA

Teoria das Caixas

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Depois do choro,
Depois da tristeza,
Depois do desespero,
Depois da angústia,
Depois da raiva,

Há o tudo, há nada,
A vontade não existe,
Apenas este peso de existir.

Encolho os ombros,
Encolho-me.

Abraço-me num canto.

Se um dia o universo
Fora uma caixa negra
Encaixotada numa branca,
Encaixotada noutra negra,
Encaixotada noutra branca
E assim pela eternidade,
Em caixas cada vez maiores,

Hoje sou eu que me escondo
Dentro de caixas cada vez mais pequenas.
Dentro da caixa do mundo,
Dentro da caixa do país,
Dentro da caixa da minha terra,
Dentro da caixa dos amigos,
Dentro da caixa da casa,
Dentro da caixa da família,
Dentro da caixa do meu quarto,
Até, por fim, na caixa só minha,

Fechada a fita-cola,
De onde não saia,
Ninguém me aborreça,
Não veja o que está lá fora,
Não tenha de sentir nem de pensar.

Aguentando o fardo da existência
Tão mal-vinda, tão maldita.

Sempre é melhor viver numa caixa,
Apenas comigo e com o pouco ar que respiro.


Não há pais, opiniões,
Falsas pessoas, preocupações,
Não há medicamentos,
Psicólogos ou psiquiatras.

E, na verdade,
Que diferença faz
Viver numa caixa
Ou a vida que nos atiram,
Não será também ela
Uma espécie de caixa?

Desespero para toda a vida, malditas decisões definitivas...

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Um assunto urgente que me deixou paralisada. A suspirar... Ora bolas! Quem me mandou atrever-me a desejar o impossível? Eu própria, e agrada-me a minha mente aberta, mas deixo-me entristecer e volto para casa, tocar piano.
E penso naquilo que terei de escolher, a decisão já tão próxima, sabendo que vou errar, quer dizer, nem sei se vou saber conseguir. Para onde quero ir? Agora? Arquitectura. Ontem? Antropologia. Amanhã? Quem saberá?
Por isso toco acordes mais alto, porque só gosto do que não tem saída.
Já é muito tarde para ginástica, não sou suficientemente boa para música, a ciência está descuidada, a escrita caminha ao esquecimento, a psicologia está longe.
O futuro que desapareça com o futuro! Quero é ir para Paris, trabalhar num café em Montmartre, como soube desde que li The Lollipop Shoes, como confirmei quando lá estive e como assegurei quando vi Amélie.
Não quero mais que isso, por que não percebem? Nem que tenha de pedir esmola a tocar violino.
21.04.2009

Afinal não sou - Bernardo Soares

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De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de
quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-Ihes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.

in Livro do Desassossego, Bernardo Soares

Conto do Pequeno Pianista

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Era uma vez um menino de 11 anos que passava o tempo livre a tocar piano. Já o fazia desde muito pequeno e aprendera quase tudo por ouvido. Todas as pessoas que o ouviam elogiavam-no profundamente, todas excepto o pai, que voltava costas a resmungar:
-Em primeiro os estudos, primeiro, os estudos.
Era daquele tipo de pessoas que se aborrece facilmente em museus e que na rádio só ouve notícias. Para ele, o filho podia ser mesmo o mais conceituado músico a nível mundial, nunca aceitaria tal como profissão respeitável. Contudo, o pequeno amante da música era o melhor aluno da classe, pelo que o pai nada mais podia fazer que não consentir que ele passasse horas a fio brincando com as teclas.
A mãe, por outro lado, vivia deliciada pelo dom do filho. O seu próprio tio fora pianista e, não tendo mais família, deixara o grande instrumento de meia cauda à única sobrinha. Ela lamentava nunca ter aprendido, mas, felizmente, o gene musical parecia ter sido transmitido ao seu pequeno. Gabava muito as suas capacidades, de cada vez que ia ao mercado, e quem já o ouvira podia confirmar que ela não exagerava nos elogios.
O pequeno pianista nutria um carinho especial pela grande colecção de discos do tio-avô que a mãe guardara no sótão. Quando não estava a tocar, ouvia uma daquelas preciosidades musicais, deitado, saboreando as melodias.
Adorava Vivaldi e as suas Quatro Estações, venerava Mozart e a Flauta Mágica, arrepiava-se com Beethoven e a Quinta Sinfonia, descontraía com Bolero de Ravel e acelerava com o Voo do Mosquito de Rimsky-Korsakov ou Gayane de Kachaturiam. Porém, de longe, o seu preferido era Tchaikovsky. Adaptar músicas do bailado Quebra-Nozes para piano apenas fora um desafio e uma aventura. Terminar havia sido uma conquista. E um marco.
A primeira vez que apresentara aquele conjunto de seis músicas que, no total, duravam quinze minutos, fora num restaurante de uma cidade das redondezas. Encantara todos os que estavam presentes e o conservador do teatro municipal convidou-o a tocar aquela peça, na semana seguinte, no próprio teatro. A mãe não queria acreditar e perguntou se haveria pessoas a assistir. Com a resposta afirmativa, o pai, por sua vez, perguntou se iriam receber algum tipo de remuneração. Ambos satisfeitos, aprovaram a proposta e levaram o filho a casa, para ensaiar sempre que tivesse algum momento disponível.
No primeiro espectáculo, a peça apareceu enquadrada dentro de um programa de recitais dos melhores músicos das redondezas, mas foi decididamente ele quem recebeu mais aplausos. As pessoas queriam ver outra vez aquele prodígio. "E sem nunca ter aulas!" admiravam-se.

Foi assim que as sextas-feiras à noite se tornaram uma rotina. Durante a semana, escolhia as músicas que adaptava a piano com cada vez maior facilidade. De manhã, a mãe ia buscar o fato à lavandaria, de tarde fazia-se o ensaio geral, com a supervisão de um músico qualificado, que o corrigia em um ou dois pontos. O pai conduzia.
-Vamos chegar atrasados! - era o discurso da mãe, todas as noites. Chegavam sempre com meia hora de antecedência.
Um pequeno toque de maquilhagem nos bastidores. E ali estava.

Aquela sala era um abismo. No palco, o som dos seus passos ecoaria não fosse abafado pelo enorme aplauso da multidão. Plateia, balcão. E aquelas varandinhas adoráveis.
O piano, pronto para o receber. O banco já ajustado.
Fazia uma pequena vénia e sentava-se. Respirava fundo, como lhe dizia a mãe.
Qual quê. Aquilo era a sua brincadeira preferida, era o que mais gostava de fazer. E havia pessoas que o adoravam. Era fantástico, ele não conseguia estar nervoso, apenas sentia um formigueiro antes de cada espectáculo, nunca mais começa, nunca mais começa.

Havia um pequeno jogo que gostava de fazer de cada vez que entrava em palco. Percorria a multidão com os olhos até encontrar uma menina da sua idade, talvez acompanhada pelos pais, talvez pelos tios, pela irmã mais velha, pela avó, e fixava-a, distinguia-la de todos os outros. Era para ela que sorria, para ela que orientava todas as vénias, todos os olhares. Por cada concerto, havia uma menina incógnita que, sem o saber, seria sua namorada nos minutos em que ele era uma estrela aos olhos de todos.
Dentro de si, havia uma pequena esperança de que, algures no mundo, uma rapariga se enamorasse secretamente pelo pianista enquanto duravam os concertos que via. Dentro de si, havia a esperança de, um dia, os seus olhares se cruzarem e aí seriam verdadeiramente namorados por uma noite.
Eram sempre diferentes, não queria perder a oportunidade de a escolher só por se ter decidido pelo tipo de rapariga que mais gostava. Havia a menina triste do nariz pequenino, a lourinha dos olhos verdes, a do cabelo cor de cenoura, a da pele cor de chocolate, a que não parava de sorrir, a do vestido com flores, a da borboleta a atar o cabelo, a das tranças. Só não a escolhia entre as que estivessem aborrecidas, as que parecessem obrigadas a estar ali, as que odiassem aquele tipo de música. A pequena que o procurava por todas as salas de espectáculo do mundo certamente que gostava de ouvir boa música.
Daquela vez, nada de mais. Olhos castanhos-escuros, cabelo preto que se confundia com o casaco e vestido da mesma cor. Já estava sentada e ele nada mais conseguia ver. Pena. Tinha a certeza que a sua pequena trazia sapatos de fada. Não havia nada de particularmente diferente no físico dela. Era tão normal, podia ter aparecido como figurante num filme, uma personagem daquelas que passamos por ela e nem a vemos. Não teria sequer reparado nela não fosse o ar desafiador e triste. Como se toda a sua aldeia tivesse sido posta em chamas e ela fosse a única sobrevivente, desesperando por vingança.
Viu-a enquanto caminhava até ao piano. Hoje, é só a ti que vejo, é só a ti que amo. Esta noite, tudo o que eu tocar vai ser para ti, profundamente dedicado à tua pessoa. Ela não aplaudiu com a multidão quando ele chegou. Claro que não. Ele ainda não a merecera. Virou os passos na direcção dela e inclinou-se numa vénia. Olhava para ele. Muitas os faziam, na realidade, quase todo o auditório.
Começou. Eram aquelas seis músicas adaptadas do Quebra-Nozes de Tchaikovsky. A primeira. Sabia as teclas de cor, apesar da complexidade, raras eram as vezes em que consultava o lugar das mãos. Na maioria do tempo, fechava os olhos, abrindo-os para encarar a multidão. Corrigindo, para olhar para a sua pequena por uma noite namorada.
Segunda música, a ela dedicada, a dança da fada do açúcar. Se lhe pudesse ver os sapatos, tinha a certeza seriam azuis, brilhantes, pareceriam feitos em porcelana, ou talvez fossem apenas como o piano. Sim, aquela música era perfeita para ela, porque parecia descrever o modo como daria um passo após o outro, cauteloso e sorrateiro, deslumbrante. A escolha daquela peça era perfeita.
Olhou para ela, na pequena pausa entre a música seguinte. Os olhos tinham amansado e ele pôs-se a viver o ritmo frenético que o esperava. O piano era dele, mas isso não importava, era aquilo que lhe oferecia, tecla após tecla, grandes acordes, os dedos leves e pesados ao mesmo tempo, sempre fiel ao original, sem um único erro. De olhos fechados, sorria. De olhos fechados, conseguiu imaginá-la a sorrir sem mostrar os dentes.
Esta nova era uma pequena música de amor. Imitar uma harpa no piano era uma tarefa fastiosa, tinha de ser tão delicado e tocar tantas notas de seguida, mas os olhos de ambos cruzaram-se e a música era para ela e para ela nada menos que perfeito, nada menos que o que ela merecia. Saberia que era uma canção de amor? Claro que sabia, aquele olhar dizia tudo, dizia que se derretia e desfazia e que cada fechar de olhos não era mais que puro deleite. Esta música é só para nós, saltou para a parte mais difícil, acompanhando a música com a cabeça e o corpo, de olhos fechados, saboreando e aperfeiçoando cada tom. Os dedos fluíam tão naturalmente pelo teclado que a única coisa em que pensava realmente era nela.

Agora a dança chinesa, algo de tão mais divertido que certamente a animaria um pouco. Fez os possíveis para conseguir gestos abertos e esforçou-se nas caras engraçadas, tal como vira fazer tantos pianistas famosos. Era uma música muito pequenina, mas todos se riram. Havia algo de cómico. Com um sorriso nos lábios, passou à última. Mais uma de amor, mais uma com harpa de fundo, que espelhava delicadeza e que variava por toda ela. Quis tanto saboreá-la que acabou antes que desse conta.
Já aplausos? De pé, da sua namorada daquela noite que o ia deixar para sempre em breves momentos. Como passara tão depressa aquela última se era a maior de todas? Prendera-se no pensamento e agora tinha de se levantar, porque estava tudo acabado. Ele era o menino do piano que acabara de tocar Tchaikovsky e tinha lágrimas nos olhos, mas ninguém estava suficientemente próximo que as pudesse ver. Ela já ia de costas, uma vez mais, no fim todas iam, no fim, os sapatos de fada não eram mais que vulgares sandálias.
Voltou-se para os bastidores, para os braços da mãe.
-Vá, não correu assim tão mal, só tropeçaste numa nota, ninguém reparou.
-Tu dás-lhe demasiados mimos. - resmungava o pai - Se é para continuar a sério todas as semanas, não podem haver erros.
Virou-se para a sala vazia, sem luzes, sem barulhos. Largou o aconchego da mãe.
-O papá tem razão, tenho de treinar, este piano é um pouco maior e eu não estou habituado, mas tem de sair perfeito na semana que vem.

Perfeito. Para ser perfeito, aquela música não podia acabar nunca. Era a sua parte preferida porque parecia conter uma história dentro dela. Era a que o fazia viver mais, a mais poética, a mais expressiva. Precisava de a tocar as vezes que fossem precisas até ficar completa, até ficar perfeita.
Sentou-se e voltou àquela escada feita pela harpa. Começou a misturar mais instrumentos, tornando-a cada vez mais difícil. Viveu cada sensação deles, como se cada um contasse uma história. Deixou-os lutar um pouco uns contra os outros, até os juntar na construção do mesmo, tentou escalar as emoções até ao cimo. Lembrou-se da menina de verdadeiros sapatos de fada que um dia o estaria a ver, sentiu aquilo de que a música falava e sentido conseguiu tocar ainda melhor, sem nunca desistir. Depois, lembrou-se do fim de cada noite, em que todas elas se iam embora e tocou aquele trecho destroçado. Enfim, voltou a esperança de um dia a encontrar, era só esperar, e para ela tocou até não mais poder, chamando-a. Abrandou o ritmo, preparando-se para o final, suave, como os passos de uma fada. Aquela tinha sido perfeita e tinha a certeza que, quando abrisse os olhos e espreitasse para trás do piano, ela estaria ali.
Abriu os olhos e, espreitando, a menina dos olhos em desafio triste estava a olhar para ele. Não disse nada nem aplaudiu. Os sapatos eram azuis, eram tal como os havia imaginado, eram brilhantes e pareciam porcelana.
Levantou-se. Ganhou coragem. O coração batia a cem à hora, mas podia ser a única oportunidade.
-O concerto de hoje foi dedicado a ti, tens de saber, deves saber disso.
-Eu sei. Tu construías a música conforme a expressão dos meus olhos que deviam espelhar o que sentia. Mas a última música passou demasiado depressa, eu fiquei distraída com um pormenor, uma lembrança antiga. E tinha esperança de a ouvir outra vez.
-Tinha esperança de que viesses. Esta noite, foste minha namorada.
-Fomos namorados enquanto tocavas.
-E agora, continuamos a ser?
Ela hesitou e desviou o olhar.
-Não pode ser. Não posso.
-Porquê?
-Porque eu gosto de raparigas.
Calaram-se os dois. Foi ele que recomeçou.
-Mas, enquanto tocar, nenhum de nós vai ser pessoa, nem homem nem mulher, vamos ser música, vamos ser só o ser que toca e o ser que ouve, ambos os seres que sentem. Aí, poderemos ser namorados?
-Enquanto tocares, sim. - concordou.
-E durante o resto do tempo?
-Eu serei eu, tu serás tu, se quiseres podes ser meu amigo e podemos ter longas conversas à beira do lago, podemos ouvir música, podemos ler e fazer histórias. Mas namorada tua não poderei ser.

O pequeno pianista voltou ao teclado e tocou o trecho melancólico da última música, aquele em que se parecia desfazer em tristeza.

Conto da noite (ou a morte da borboleta que caiu enquanto ascendia aos céus)

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por Adriana Gaspar de Matos, composto após a meia-noite do recém-chegado dia 10 de Janeiro de 2010, à memória de Joanna Sophia de Carvalho Matias, querida amiga, (e)ternamente nos nossos corações.

1h00 "Olha," aponta um dos irmãos para a janela em frente, "que é aquilo no parapeito? Será uma estrela?", "Não, é uma borboleta." Debruça-se a borboleta para o voo. "Oh, mas mano, a borboleta caiu.", "Pois foi, vê, tinha as asas partidas.", "Mas quem teria tamanha crueldade que despedaçasse as asas de uma linda borboleta? E que fez a inocente de mal para o merecer?", "Nada, mano, a justiça é uma ilusão, nem todo o dinheiro do mundo lhe poderia devolver as asas e o imbecil até já anda em casa."
1h23 "Há luzes lá fora.", "São as ambulâncias?" O irmão hesita e responde "Não. São fadas que a levam a voar de volta ao céu."

Lindo dia de chuva

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Estava um lindo dia de chuva, um cinza pastel choroso.
-Maldita chuva!- comentou a mãe.
A pé seguiam, mas ela não se queixava porque ela efectivamente adorava sentir aquelas lágrimas a escorrerem, geladas de nos gelar por dentro.
A chuva é que a ajudara naquele mau momento quando quisera deitar tudo cá para fora, gritar o mundo com a força que trouxera apertada na viagem de comboio, a chuva que com ela chorara a sua perda, que com ela gritara contra quem lhe roubara a melhor amiga. A chuva que com ela cantava, a chuva que com ela desenhava movimentos, gestos que as outras pessoas não apreciavam ver na rua, abria os braços e cumprimentava as pessoas com uma larga vénia, e a chuva parecia imitá-la, a chuva sempre tivera um tanto de loucura, pois os loucos é que adoram passear à chuva.

Os carros seguiam e atiravam a água aprisionada no alcatrão contra elas, uma onda no meio do nada, no meio de lado nenhum, uma onda citadina, de poesia nenhuma gerada, apenas do horror da cidade, porém uma onda poética.
As calças salpicadas em lama, encharcadas em chuva.Está um bom dia para não lavar a roupa, pensou, ao mesmo tempo que a mãe dizia
-Quando chegarmos a casa, tiras imediatamente essas calças e pões a lavar.
A mãe não-louca, a normal mãe. Dava-se feliz por ter uma mãe assim: se fosse louca, talvez tivesse a tendência a ser o contrário dela, ou seja, monotonamente normal. Ou talvez não.
O céu eram nesgas pintadas e eu gosto mesmo, mesmo muito, mas agora não é a minha história, é a dela, bolas, e ela gosta mesmo mesmo muito. São tão doces tão frios dias de chuva.
As cores de tudo mais definidas: as folhas amarelas mais amarelas, o castanho mais castanho, o verde musgo ou verde pinheiro mais vivo, o cinza das pedras um pouco mais escuro, um contraste acrescido comparado com o daqueles terríveis dias de calor.
O que ela gostava mesmo era de, no fim do dia, quando tudo parecia acabado, digitar tudo o que se lembrava por meio de palavras, gravar tudo na folha, atirar os dedos ao teclado e traduzir os pensamentos em algo legível, tal como faz agora, e, de tão habituada que está, não erra uma única letra, não falha e mesmo de olhos fechados sabe que não falha, pois é como que uma melodia tocada ao piano. Em dias de chuva.
Melodia tocada ao piano em dias de chuva, daqueles em que a luz vai abaixo e não sobra mais nada senão o piano e o violino e a máquina de escrever.
Pequenas coisas estas que me ajudam a não dizer não à vida nem aos meus pais, que me ajudam a não ficar para trás, não quero viver, mas, muito mais que isso, não quero magoar quem tanto gosta de mim.
Piano à chuva, piano ao luar.