Novo Dia (macabro e parvo)

Um dia novo amanhecia no largo, o mar ouvia-se ao longe e as gaivotas pousavam no topo dos edifícios, calmas, como a brisa. Esse dia que começava alinhava-se com os outros dias, no correr do tempo e assemelhava-se a tantos outros. Se o pudéssemos saber de antemão, não nos preocuparíamos tanto quando atravessamos a estrada ou quando nadamos no mar, sob o olhar perturbador da bandeira vermelha. E, por outro lado, se não tivéssemos esse cuidado, tudo seria alterado e o dia poderia ser diferente.
O Sol, as nuvens desaparecidas, a brisa calma eram todos prenúncios de bom dia. Podemos imaginar mil e uma maneiras de não ser, mas, por agora, vamos ser optimistas. Porque esta manhã começa bela.
Um gato passeia agilmente por entre os escombros. Pois, sim, esta cidade está despedaçada e não se vêem sobreviventes. Excepto aquele gato. E o mar. O gato percorre o que já foram avenidas com passo rápido, para não se deixar apanhar pelo que tenha ficado para trás. Este gato não tem destino, porque acompanha a vida pelo que ela é presentemente. Para este gato, não há passado nem futuro. A cidade está assim porque sempre foi assim, porque sempre será assim. Não é que ele não se lembre - simplesmente, não quer lembrar.
O gato avança por entre estilhaços de parede escura, caída, desfeita, desmoronada. Algo emerge daquele pedaço de terra. Uma mão, um braço, um ombro. O gato segue viagem e deixamo-lo entregue a si próprio, pois decerto que quem só olha o presente não tem grandes histórias a contar senão as que podemos ver.
O Sol ergue-se do mar, tal como a mão se ergue dos blocos de madeira e pedra degradados pelo tempo e pelas bombas. A luz esmorece, até o Sol se envergonha perante tal visão: há uma extensão de um ser que luta pela vida. O Sol esconde-se atrás da primeira nuvem que encontra. A mão procura, apalpa o ar, apalpa o chão, retorce-se e está retorcida, já não é mão, já não é braço. Está sangrada, está ferida. Será que vive?
Cai para o lado.
Está morta.

O Sol nasce, então, descansado. A brisa treme e faz tremer a areia. O Verão morre no céu e o frio inunda a terra. O Sol não diz nada, só ilumina, não aquece. A cidade apagada, despedaçada, torna-se inferno gelado.
A cidade cai para o lado.
Está morta.
O Sol está morto, já nem ilumina, está escondido, envergonhado, está morto.
E a brisa, só penteia remoinhos na areia.
Até que já nem isso, a brisa esmorece.
Está morta.
Está tudo morto.

2 críticas: (+add yours?)

Ynot disse...

Adoro non-scence.... este texto é quase um non-scence dramático :P está muito bom óh Didi ;)

(este coment é completamente espontâneo xD)

Unknown disse...

Oh gosh. Amei.