Conto a uma escritora

Contar a história do que realmente aconteceu. Não houve escândalo, foi tudo o mais discreto possível, de qualquer modo, estava no início. Tu escreves bem, dissera-lhe a amiga. Os outros colegas leram e gostaram, alguns. Outros não, mas fizeram-se de fingidos, também passaram. Eventualmente, as páginas chegaram às mãos da professora de português. Tu escreves bem, e acrescentou-lhe agora a outra ladainha, porque não tentas publicar? Ela não ia dizer que não em frente a uma professora, baixou os olhos e corou, uma resposta tímida de agradecimento, mas sem sentido. Uma editora de segunda aceitou logo, claro, quem não aceita meia dúzia de trocos, seja pelo que for? Assim se viu saído o primeiro livro, também ele de olhos baixos, tímido, lá ao canto das prateleiras, sempre só. Sempre teve alguma saída, porque o que vai de boca em boca alguma coisa há-de levar, tantos aqueles que o compram e nem o chegam a ler, mas isso a ela nem lhe interessa, até fica feliz, continua a não dar pelo nome que se deu na capa, que raio disso é nome, claro que fica mais bonito ter um volume grosso nas mãos do que páginas perdidas rabiscadas a esferográfica ou tinta permanente, mas continua, lá dentro, uma pesada angústia a revolver-lhe as entranhas. No jantar, sagrado, dos domingos, reunia-se toda a família, eram os tios mais velhos, os primos quase licenciados, já formados na bebedeira, os tios mais novos e os primos de fraldas, que ainda não entendiam uma palavra que fosse dita, o avô na poltrona ao canto da cozinha, coisa mais estranha, uma poltrona em plena cozinha, enfim, os hábitos tomaram-se assim quando foi tempo de nos habituar, hoje se alguém tirasse a dita poltrona da cozinha, então sim, todos estranhariam, de não ver a poltrona, de não ver o avô, que é certo que o avô está onde estiver a poltrona, fumando cachimbo, que decerto estará onde o avô estiver, depois a avó que diz que o avô se casou com ela por gostar tanto da poltrona, mas depois também cora, porque recorda tudo o que já se passou naqueles almofadões e encosto acolchoado, numa cadeira tão grande dá para fazer muita coisa, que raio de pensamentos agora foi ter, anda de um lado para o outro, fingindo-se atarefada, é o modo, enfim, que tem de abafar os suspiros da nostalgia, tempos que foram há muito e não hão-de repetir-se nunca mais. Naquela cozinha, àquela mesa, onde cada vez mais são os pratos e os lugares e as pessoas, onde a cadeira de bebé nunca se chega a tirar, não porque o bebé não cresça, mas porque, dado o pulo, já lá vem outro, é o mal das famílias numerosas - mal ou bem, depende de cada um, para esta nossa tímida menina é mal, lá terá os seus motivos para não gostar da vida parida aos seus pés, naquela atmosfera sente-se a tensão, o orgulho, a senhora escritora, com dezassete anos apenas já tem um livro editado que está a ser um sucesso!, e já todos, bebés inclusive, têm um exemplar, mas, pois, os bebés não o lerão já, é para quando um dia compreenderem, aliás, ninguém admite, mas ninguém leu, ainda. Quando alguém tem um daqueles livros de capa laranja suave, letras castanhas e finas, nas mãos, dá-se-lhe um aperto, só de os ver, como se tivessem a alma dela nas mãos, não apenas um livro, se o abrem, então, em vez de se sentir liberta, incomoda-se, a alma é quase como o sexo, íntimo lugar onde mexer, não andamos por aí a apalpar o sexo uns aos outros, ainda temos respeito, mas que era feito dele quando lhe folheavam os livros e sorriam perante a mancha difusa de palavras, se nunca sequer lhe haviam sorrido antes, que era feito desse respeito, quando punham na boca as palavras, escritora, tão nova, onde estava tudo.
Mãe, não leias, mas não havia modo de a dissuadir, mãe dela tinha a obrigação primária de ler o que a filha escrevia, tanto mais editado!, e deu-lhe um beijo na fronte e afirmou que gostava muito dela, de tanto amor transbordante que o seu objecto se encolheu e resignou, de que valia tentar fazer a mãe perceber que não ia achar ali um conto de fadas, se ela até lhe emoldurara umas pinturas a marcadores, dos tempos do infantário, feias até à exaustão, e as pendurou na parede do corredor, ainda lá hoje devem estar. Mas logo nas primeiras páginas a mãe franziu o sobrolho e lembrou-se de que tinha trabalhos de casa para corrigir, desta feita ficou a filha aliviada, não era aquela a hora das suplicias - que seria do mundo se as mães conseguissem ver a alma aos filhos? Confiada a estes pensamentos, fugiu com o livro onde a mãe não o visse e não se lembrasse mais dele.
Chega em fim o fim dos exames, altura de baixar os óculos de sol da cabeleira para os olhos, calçar sandálias e um vestido mais leve, sair assim à rua festejar o verão que se avizinha. Já se passou muito tempo desde o primeiro livro, o próximo tem direito a apresentação ao público, dia vinte e cinco do mês que vem, com cinco ou seis pessoas da rádio e dos jornais, mais para a família e amigos - ora, ela não compreende porque há-de apresentar o livro novo à família e amigos, se é certo que são os primeiros a correr para ele e os últimos a perceber o que ele diz. E a mãe pergunta, o que vais levar, e a filha responde, oh, mãe, sei lá, falta mais de um mês, e achas muito?, quem o pergunta é a mãe, conhecendo-te como conheço, menina, precisas de bem mais tempo para te arranjares com duas peças decentes, sem pareceres um manhuço, é um dia como os outros, mãe, um dia como os outros!, exclama a mãe com surpresa, sim, não é nada, também não estou a pensar no que hei-de levar no dia vinte e três, nem mesmo no dia seis, que é muito mais perto, como podes dizer isso?, pergunta a mãe, de mãos na cara, trémulas, vai lá estar a imprensa!, e tu só te preocupas com o que os outros dizem, e tu nem te preocupas com nada!, não é bem assim, mãe, simplesmente não olho para as roupas como tu, pois não, e sabes porquê? porque estás gorda e nada te fica bem, se fosses elegante ias ver como gostavas de combinar as coisas como deve ser, mas fica palhaço à vontade, se gostas assim!
A isto a filha não responde nem ressente, já está habituada, conversas que começam da mesma maneira, acabam da mesma maneira, ao papel dela já o tem decorado, o guião diz que, com esta deixa, a mãe deve sair do cenário e a mãe sai, realmente, evidente que segue o mesmo guião, não se enganou nem trocou, como por vezes acontece, e andam as duas desentendidas por julgarem diferente a mesma coisa ou a mesma coisa por coisas diferentes.
Houve uma noite, um jantar de domingo, em roda da mesa, sem esquecer a poltrona nem o cachimbo, em que as emoções trouxeram até lágrimas de comoção, estando o televisor ligado, como era habitual, mas todos sabiam o que ia ser diferente, os bebés tiveram de ser forçados a silenciar o choro, pois todos ouviam atentamente o que o Professor Marcelo tinha a dizer, muitos ouvindo sem ouvir, porque só queriam ver, ver, então ali estava, um outro livro tímido, espreitando, o nome da família precedido por um feminino, o primeiro livro levado assim à televisão, a primeira vez que o Professor Marcelo se lhe referia, e lá estava ela, recebendo aplausos e abraços e lágrimas, enterrando-se no assento, como que o dia do aniversário tivesse chegado mais cedo, ali estavam todos a olhá-la e bater palmas, ela sem saber que fazer da cara, que fazer das mãos, ao menos antes podia fixar os olhos no bolo, nas velas, na chama, ali nem isso, tinha de se contentar com o lombo devorado. Apeteceu-lhe, também, chorar, mas afogada de tristeza.
Jovem escritora. Como tudo põe a cru, apesar de tão nova, tão pouco experiente, parece prever os males onde os há e não finge que não os vê. E as obras publicadas com que conta. Uma encruzilhada de histórias, para o público mais novato, chama-se Nahaia, nome mais estranho, depois uma colectânea de contos, desde meia página a meio livro, mas sempre chamados contos, o dos Pulsos está lá, qualquer outro também, se procurarmos. Um policial, estranho quebrar da corrente, mas também bizarro a seu modo, chama-se Culpa dos Inocentes, saiba-se porquê, talvez tenha sido outrora outra ideia de que depois se fez título, ainda um misto de comédia com outro mundo bizarro, As Ocorrências mais Estranhas e Extraordinárias da Vida de Edgar Perry, fiquemos com Edgar Perry, para abreviar, depois há aquele tenebroso Crónicas do Lodaçal, o das viagens de carro ao país, Desejo de Estrada, ou como se chama, e há ainda o que começa nos Portões do Inferno e não se sabe bem onde termina.
Agora a mãe quer ler. Tem de ler, é inevitável. Bate à porta do quarto da filha, diz, isto é acerca de mim?, a filha diz-lhe que não. Mãe só tens uma, por isso tem de ser acerca de mim. Essa não sou eu, responde-lhe a filha, fui eu que inventei uma e que inventei a outra. Inventaste de onde?, da minha cabeça. E sabes lá tu como são as outras mães?, por isso inventei. A mãe ajoelhou-se à beira da cama. Os olhos morriam em lágrimas, tu achas que sou assim?, perguntou entre soluços.
Tudo isto está a matar-me.
Voltei ao psiquiatra. Que vai ser hoje? Já nem me recordo da primeira razão, a minha mãe leva-me ao psiquiatra desde muito cedo, porque ele é uma espécie de amigo de infância. Que vai ser hoje? Já fui diagnosticada com depressões, fobias sociais, esquizofrenias, apetite compulsivo, já usaram todos os termos que conseguiram, dissecaram todos os meus sonhos e todos os meus textos. Os livros só fizeram pior. Agora, há material. Ele pega ao acaso numa frase de um livro e molda-a até chegar onde quer.
É verdade que fui encontrada dentro de um armário, a cheirar mal do egoísmo de me ter matado. São coisas que se fazem. Tinha a alma tão suja que já nem sabia como a haveria de limpar.

1 críticas: (+add yours?)

AGMatos disse...

Escrevi depois de ler Saramago.

"Quando leio, fica-me o ritmo do escritor, da narrativa, na cabeça, como que começa um discurso mental a descrever tudo o que faço, vejo e imagino."