Pseudo-grito-por-ajuda (ficção #2)

Já escrevi tantas cartas de suicídio que lhes perdi a conta. Desta vez, porém, não vou cair na hipocrisia de desculpar toda a gente. Não vou dizer à minha mãe que a culpa não é dela. Oh, sim, porque a culpa é tua, mãe. É tua, pai. Avós, primos, tios, de toda a família. A culpa é dos caixas de supermercado e dos fabricantes de rolhas. Das apresentadoras de programas de entretenimento familiar, das actrizes das novelas rascas da televisão. Dos catálogos da LaRedoute, das músicas sem música que passam na rádio, dos exames nacionais, dos médicos, dos relojoeiros, dos banqueiros, dos romances baratos, dos feridos de guerra, das empregadas de limpeza. A culpa é dos técnicos de manutenção de piscinas. De quem nos faz uma geração mais estúpida, a cada dia. Das gerações anteriores, por terem tantos problemazinhos. Dos padres, dos polícias, dos encenadores. Das faculdades.

Já escrevi tantas destas que me sinto afogada. Tantas vezes voltei atrás, por remorsos. Pedi desculpas, absolvi-vos do crime.

Aos modelos de perfeição dirijo esta responsabilidade. Como nos tapam os olhos. Compremos mais. Tenhamos tudo. O mundo. Sejamos felizes. Aos modelos atribuo tudo. Ao medo da dor e da morte. E como nos tentam proteger da realidade com sorrisinhos de plástico, como tudo o que existe, atrás das câmaras. Sejamos lindos. A culpa é das preocupações fúteis em manter as unhas arranjadas, simétricas, com o verniz delineado. Dos cremes para a pele brilhante e hidratada, dos anúncios que o proclamam como essencial, como qualidade de vida.

Estou farta do receio da morte. Do prolongamento da vida, para podermos apodrecer, cada vez mais sozinhos, cada vez menos capazes, cada vez mais dependentes, ao apodrecer do mundo. De anúncios, até nos noticiários, em quanto vai o jackpot do Euromilhões? Farta do que nos ensinam na escola, com professores frustrados, para depois aprendermos a fazer uma porcaria qualquer na universidade, para nos atirarem à cara que não existiam tais comodidades nos anos que passaram, para arranjarmos um emprego, para chegarmos a casa, ao fim do dia, cansados e fartos. Para aprendermos a ser professores frustrados ou incompetentes de outra área qualquer. Para o ponto alto da nossa vida ser jantar à frente da televisão, cada dia. Para o ponto alto da nossa vida ser o fim de semana, quando não sabemos o que fazer com tanto tempo livre, acabando por não fazer nada e chegar ao fim, achando que passou tão depressa. Vamos criar filhos, como quem cria ilusões e desilusões. Estou farta de Natais sem significado, de Páscoas celebradas como dias importantes - ainda se fossem! - de vizinhos e falsas amizades, falsos sorrisos, peúgas compradas à pressa para aniversário, para demonstrar o quanto gostamos uns dos outros.

À minha mãe, por querer de mim a perfeição que eu não quero. Por querer o melhor para mim que não quero. Por esperar que viva para sempre. Por ver em mim quem não sou. Por me amar, incondicionalmente, quando preciso de ser amada pela pessoa que sou.

Não quero ser escrava de uma sociedade. Não quero ter medo. Não quero seguir modelos. Quero ser livre de um modo como nunca fui. Não ter nada, porque chegamos a este mundo sem nada. Só depois nos impõem uma família, um lar, uma vida. Quero cortar laços e não amar ninguém. Não quero ser especial. Não quero andar bem vestida, não quero ter cabelo bem cortado, não quero saber das feridas, dos hematomas, das cicatrizes. Não quero esconder.

Ao viver, sinto-me um bocado como a minha vizinha. Vou contar-vos da minha vizinha, para o caso de não saberem. Ela acorda, trata das tarefas domésticas. Depois, senta-se todo o santo dia no baloiço da varanda e fica a ver as pessoas que passam e a falar com elas. Trata das flores, por vezes vai dar umas voltas. Para passar nos mesmos sítios e ver as mesmas pessoas. Por vezes, vai até países estrangeiros. Para ver coisas diferentes, numa espécie de orgia mental.

Um dia, essa senhora vai morrer e vai para debaixo de terra. E rapidamente será esquecida. Basta a extinção desta geração. Esquecer pessoas mortas é muito fácil.

Ao viver, sinto-me num baloiço de varanda. É verdade que o mundo se vai modificando e transformando, mas vejo-o como o passar dos dias, no calendário. No final, é tudo tão insignificante.

Poderia partir em busca de mim mesma, mas não acredito que haja nada. Quanto mais nos procuramos, mais infelicidade encontramos. Quanto mais verdadeiros a nós mesmos, menos há que seguir.

Renunciar à vida é o meu último acto de fidelidade a mim mesma. Despedaçar o corpo que me foi dado. Roubar-lhe toda a beleza, abandoná-lo. Sem música, filmes, livros, sem mais nada mas eu, seguir na última aventura.

Bem hajam, odeio-vos.