A cor das Joanninhas

Quero falar-te dos dias de tempestade. Dos dias em que acordo de um sonho para um pesadelo. Quero falar-te das ondas do mar, e como num dia te elevas na crista, para no outro te afogares no peso da rebentação. Da espiral que começa lenta e calma, e que cada vez te leva mais depressa para o fundo do poço, e só te dás conta quando já não podes sair. Quero falar-te do quanto os olhos pesam o dobro, do quanto o céu pesa o triplo, do quanto sair da cama pode ser adiável, para daqui a uma hora, para daqui a duas, para amanhã. Quero falar-te de como a cara dói quando tentas sorrir, porque até sorrir magoa. 
Quero falar-te daquele teste, no primeiro ano, onde comecei a chorar, mas não por causa do teste. Quero falar-te daquela aula, no segundo ano, onde comecei a chorar e ninguém deu conta. Quero falar-te daquele laboratório, no terceiro ano, de onde saí para ir à casa de banho, para abrir os pulsos em sumo de morango.
Quero falar-te dos dias em que a dor física doía menos que a amargura no meu coração. Daqueles em que os meus braços, o meu corpo, eram campos de batalha, de um ódio enraizado e um desespero transbordante. Quero falar-te de todas as vezes em que achei divertido o efeito alucinante da bebida com a medicação. Quero falar-te daquele dia em que tomei um, e tomei dois, e tomei três para ser feliz, e tomei quatro, e tomei cinco, e tomei seis, e somei sete, e ao fim já eram oito os que contaste, quando foram nove, e talvez dez, e até onze, e só parei nos doze porque já não tinha mais comigo. Quero muito falar-te desse dia, porque me salvaste, quando eu não queria ser salva. Quero falar-te das misturas, das buscas em casa por todo o tipo de drogas, e da pequena lata-bomba, guardada para emergências. Quero contar-te das vezes em que lancei tesouradas no cabelo, para não ser na carne. Quero contar-te de todas as vezes em que levei os dedos à boca sem querer saber. Quero falar-te daqueloutra vez em que o álcool foi demasiado abaixo com os comprimidos, e quem sabe não foi a segunda vez que tentei. Quero dizer-te de todas as vezes que fui para a cama por um beijo, por um abraço, porque penso assim tão pouco mais de nada de mim.
Quero falar-te de cabelos louros e olhos azuis, há tantos anos, afundados numa tristeza demasiada, e não conseguir fazer nada para ajudar a pessoa que mais amei no mundo. Quero falar-te de cabelos morenos e olhos castanhos, que hoje vi, e que são iguais àqueles azuis, e que são iguais àqueles que vejo ao espelho, e saber que não posso fazer nada.
Quero falar-te das músicas, dos livros, dos filmes, das pessoas, dos momentos virtuais que me ajudaram a aguentar nos piores momentos, e a sair, degrau a degrau, a escada infinita do fundo do poço.
Do fundo do poço, quero contar-te como a vida não volta a ser a mesma, porque agora viste o fundo. Do fundo do poço, não te quero nem falar.
Do cimo do poço, quero dizer-te o que nunca me disseram, como é difícil o intermédio, com um buraco aos nossos pés, a ameaçar puxar a qualquer momento. Quero contar-te dos meus passos inseguros e vagarosos para me manter à tona da água. Quero falar-te das coisas pequenas, da respiração devagar, de tudo a que me agarro para ir em frente, como uma corda invisível, e tentando esperar que me leve ao sítio certo.
Quero explicar-te que as minhas lutas ainda não estão vencidas.
Mas quero dizer-te que, um dia, o escuro torna-se luz, e respirar é fácil outra vez.