Quem és tu?

Vamos estar aqui com os pés bem assentes na Terra. Vamos estar aqui com cabeça, tronco e membros.

Está bem, então. O meu corpo vai ficar na cadeira até ao toque da campainha. Entretanto, porém, vou matá-lo por algum tempo.

Vou deixar o meu bem mais antigo nesta sala, oco, desprovido de vida, e vou-me iluminar bem longe, onde não há nuvens, nem cores, nem estrelas, nem pássaros, nem flores, nem glândulas endócrinas, nem Deus, nem louvados, nem abençoados, nem circo, nem vida, nem morte. Só eu.

Muito para além da filosofia, da psicologia, a verdade única. Cá, compreendo como funciona toda a matéria, cada mecanismo, cada lei, mas que me importa, agora, a matéria? Cá, desprovida de hormonas, estou desprovida de sentimentos. A matéria comporta-se de um modo tão simples d'entender. Mas, mas cá, sou só uma consciência. Não há corpo, pensamento, não há vapor, não há escuro. Não há, simplesmente.

E, uma vez cá, para quê voltar à aulinha? À vida?

Não vou revelar o único segredo que acho devido guardar. O motivo para que o meu corpo seja animado por uma espécie d'alma. Não o vou revelar.

Mas houve um motivo. E por esse mesmo motivo, tenho de voltar.

Através do conhecimento adquirido lá, que desde sempre conheci, reanimo o sistema nervoso. Foi como que um sonho que durou tempo nenhum. Para as outras pessoas, o meu corpo apenas piscou os olhos. Pessoas que não se apercebem do extraordinário milagre do corpo que, perante eles, ressuscitou.

Um único ser soube. Um de pensamentos e impulsos. O software que ajuda a animar o meu corpo. Ego. Ela tenta imaginar a minha viagem, imaginando um fantasma a sair do corpo que partilhamos, a voar, até às estrelas. Mas duas palavras bastam para descrever o lá: não há.´

E tu, Ego, imaginas luzes d'iluminação, campos verdejantes, um sorriso. Falta-te imaginação, Ego. A espécie humana tem lapsos d'imaginação.

Possui grande criatividade, sim, mas falta imaginação.

Eu sou o nada, Ego. Sou o vazio na tua vida que não compreendes. Sou nem um arroto d'ar da tua lata de refrigerante. Sou o nem. E, no entanto, sou tudo.