Tendências
Escrito nos dois dias de 25 e 26 de Maio de 2009,
enquanto me têm durado as Tendências Homicidas.
por Adriana Gaspar
Acto I
(o das sensações fortes)
Cena I
(a maior)
Vês?
Não quero saber da justiça dos outros. Deram-me a vida, deram-me o mundo, agora bichem-se nas consequências.
Não, não me importo de matar pessoas, findar com os figurantes desta história.
Matar todos que tornam o mundo mais desagradável. Este irritante povinho é o mesmo de sempre. Que morra.
Nem a ditadura bastou para os apaziguar, porque comeu os errados.
Tomara que o mundo fosse corrido a uma ditadura decente, que dizimasse todos aqueles que fossem podres de espírito, em vez de encavernar as pessoas erradas em tribunal.
Tomara que uma faca de justiça bastasse, que a educação mudasse e que esses cabrões desaparecessem de vez! São eles que povoam este mundo de disparates! Não estão só enterrados em lama, são eles que a produzem massivamente!
A pocilga é culpa deles! E é nela que querem que viva.
Tomara que não saíssem às ruas proclamando os prazeres naturais e que se apercebessem do serem tão grotescos e se conseguissem mudar a todos ou suicidarem-se para que eu não tivesse de perder toda a minha vida à procura de justiça!
Que se lixe! Que morras tu, Homem, toda a espécie, para que se dê fim a esta dor de cabeça.
Que se encerrem todas as instituições, que se destruam todas as invenções, já que não há milagre algum que faça esta gente desaparecer!
Que me deixem ser ao mundo, eu e a minha faca, chacinar todos esses bonecos de plástico eternos. Deixai-me rasgá-los, deixai-me satisfazer esta vontade, porque eu não quero saber da justiça do estado!
Eu sou eu e ninguém mais me importa!
É a mim que devo satisfazer.
É comigo que me preocupo, por isso faço tudo à minha maneira.
Encravem esta sociedade naqueles que precisam de regras e de orientações, porque eu não preciso!
Fugir desta ditadura medíocre e trocá-la por algo de verdadeiro e essencial e vamos a ver quem resulta melhor.
Querem apostas?
Vês? Quem achas que me tornou assim? Foi o mundo que me pariu, que me cuspiu para dentro dele e me sujeitou àquilo que me fez como sou. Quem me criou foi o mundo! O mundo criou a sua autodestruição. E dar-ma porque posso!
Tomara que fizessem a tal bomba com 10 raios da Terra! Que engolisse a América, a Ásia, a África, a Europa. Todo o planeta.
E Portugal! Especialmente, Portugal! Que fosse em primeiro, para terminar a minha desgraça.
Que se rebente Mafra, Lisboa, Lousã.
Que se expludam os Algarves!
Que a Guarda saia do mapa!
Para que se deixe de tentar igualar Versailles com mediocridades!
Para que o mundo possa suspirar de alívio, e logo a seguir que se partam os Estados Unidos e no segundo depois a restante Terra e que não sobre nada, nem satélites, nem ondas, nem património para extraterrestres, merda, que nada pode sobrar deste decrépito ser que não pode jamais voltar a existir!
Que se eclipse tudo!
Ou então, deixem-me matar.
Sem vida decente não há vida alguma, somos mero animal instintivo, deixai-me matar alguém como quem mata uma pobre aranha.
As aranhas não nos obstroem a mente!
Só quem as mata!
Sim, Deus perdeu de vista o Adão de barro.
Vês? Vês como Almada tinha razão?
"E com pena fez outro de bosta de boi"
E os ratos roeram-lhe os miolos que nunca prestaram e das caganitas nasceu Eva, mãe de todas as Meninas!
Mãe Natura, nunca deveria ser crime limpar os produtores da merda onde vivemos.
Não achas, Mãe?
Deixa-me ir à caça da justiça, Mãe.
Vamos acabar com esses.
Vamos juntas, Mãe.
Cena II
O mundo julga-me porque pode,
por isso mato porque posso
ou talvez posso porque mato.
O julgamento não é mais que constatação de factos com castigo no fim.
Eu matei como pude para ter uma casa mais agradável e quem me julga não tem vontade de pensar.
Linhas guias há de um livro que lhes rege a vida.
A minhas delas não precisa, porque o mundo me ensinou assim e assim me deixou fazer.
Se nunca matei foi por não querer injustiças que metam meus pais em trabalhos.
Coitados, tiveram-me, nem sabiam que lá vinha.
Podiam-me ter matado à nascença, por acidente, pobrezinha, e faziam outro, como se faz nestes casos, mais uma produtora de lama.
Pobrezinhos, não sabiam o que faziam.
Nem o sofrimento que me davam.
Coitados, tristes, inocentes, pobrezinhos.
Não, não sou culpa deles.
Sou culpa dos produtores de lama.
Cena III
Diz-me que raio de justiça é a justiça de estado.
Um homicídio é crime?
Se pudéssemos julgar doenças, quais apanhariam maior pena?
Aquelas que te fazem adormecer, calmamente, e nunca mais acordar ou as crónicas, que dão mais sofrimento por mais tempo?
Talvez devêssemos perguntar às pessoas.
Matar um cagão de lama é como esfaquear uma crónica.
A destruição das almas já está feita, mas os que vierem a seguir já não sofrem.
(E que bem lhes faremos por privá-los disso?)
Que se danem, eles.
Quero, eu, viver sem estes cabrões comigo. O mundo cuspiu-me para dentro dele, a culpa é dele, ele criou-me.
E vou matá-los, estripá-los, desmembrá-los.
Matem-me a mim primeiro, se conseguirem. Tentem encarcerar-me, destruir-me, como fizeram aos meus amigos, vamos ver quem ganha.
Experimenta só.
Mas não tentes mexer no meu sentido de justiça.
Cena IV
Acabar com todos é poder dar o sorriso final. Malvados figurantes. Se a mesquinhes cegasse, o mundo seria governado pela mulher do médico. Mas a mesquinhes dá dinheiro.
E nós nascemos pré-fodidos.
E obrigam-nos a suportar isto.
Dividam-nos duma vez, bolas! Medíocres conformistas para longe!
Deixem-me em paz de uma vez por todas!
Não quero o mundo nem quero religiões nem quero sequer ter nascido.
Pobres dos que, como eu, se apercebem de que nos benzemos na lama e que o Lodaçal não é metáfora.
Vamos juntos! Vamos matá-los!
Por favor, dêem descanso à minha alma e satisfaçam a sede das minhas mãos. Deixem-me carregar as minhas espadas e abrir o peito dos infiéis e despojá-los do corpo onde não mereciam ter encarnado.
Dêem paz ao meu sossego, à minha cabeça. Deixem-me matá-los!, tou farta de figurantes! Já não o disse? Estou farta!
Acto II
(sossego)
Cena I
Fleur de lys
que se entranha. Gotas de rosa, espinhosa, pequenos morangos que ficam presos ao canto...
Extermínio de todos em cenário bonito, lama por sangue, lama por sangue, muito por pouco, lama por sangue, a mente acaba, lama por sangue.
Todos atarefados por calma.
E enquanto a vida se esvai pela ponta da minha faca fico um segundo mais calma, um segundo mais leve.
Com sangue se escreve, os infiéis findaram.
Com sangue se escreve, "25 de Maio de 2009, a lama foi trocada por sangue, os infiéis findaram".
Flor, faca de lis.
Finda os outros por mim, como ponta de caneta e a tinta é sangue.
Que bonito e plácido é hoje o mundo.
E os infiéis tornam-se úteis, tornam-se escritos maravilhosos.
Tomara que todos os dias fossem vermelhos e calmos como o de hoje.
Que todas as horas fossem desta paz d'alma, desprovidas de sensações excessivas.
Fleur de lys hoje está em paz.
Cena II
Boa, majestosa morte. Não há mais barulho.
Ninguém vai gritar por perdão nem por socorro nem por deus nem por futebolista nem por mamã.
Silêncio absoluto por fim. Calou, para sempre.
O sangue que escorre, sem força, e lama que já não tem quem a adore e evapora.
Boa, majestosa morte. Tão logo silenciosa, faca que rasga o ar como um lírio a acariciar a brisa, faca de lis que abre o peito como pétala de lis que tomba.
Todos mortos e agora já posso descansar.
Todos menos eu e os outros. Aqueles que têm fome de descanso, fartos da ânsia que os infiéis nutrem por nós. Sobrámos os anormais.
O corpo é bom, já livre do demónio.
Os inconvenientes foram.
Tinham-me dito para esperar uma ditadura. Estou farta de esperar. Boa, majestosa morte em primeiro.
Já não dói.
O mundo já é lindo, pela primeira vez alguém o pode apreciar.
Vês?
O mundo natural e o mundo artificial em perfeita sintonia, em perfeita beleza.
Todos mortos e eu em fim séria.
Em fim séria e com o poder na minha mão.
Em fim séria e livre.
Em fim com os meus.
Por fim nós.
Só.
Consegui, Mestre Almada.
Cena III
(Dedicado ao único tribunal que ainda me consegue castigar a alma)
Não fui má.
Fui agradável, fiz um bem ao mundo.
Vês?
Repara como é lindo o mundo, hoje.
Não fiz nada de mal. Fui rápida, de que serviam estas vidas que caminhavam à morte?
Não vieram cá fazer mais nada, estavam só à espera do fim. Dei-lhes o fim mais depressa, sem sofrimento.
Mãe, não, nunca fiz nada de mal, não fui má, não fui, mãe, não, não chores, mãe, mãe!, olha como é bonito o mundo, mãe, mãe?, mamã?, não gostaste, mãe?, mãe!, desculpa, mamã, mas não chores, porque eu fico triste, mãe, abre a tua mente, mãe, eles iam morrer de qualquer modo, eu não fiz nada de mal, mamã, olha, olha que agradável é o mundo, mãe, não percebes?, porque é que não percebes, mãe?, olha que felizes podemos ser, mãe, percebe, pára de chorar, mãe, preciso que tu percebas.
Mas, mãe, eu não sou um monstro.
Mãe, mamã, estás a sonhar, acorda!
Acorda, mãe, e vamos fingir que não se passou nada, que foi só um sonho, que esta vida não se passou e que esta gente nunca existiu, acorda!
Está tudo bem, mãe? Acho que tiveste um pesadelo.
Tendências
por Adriana Gaspar
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