Tagarela

4.05.2032

Não percebo por que sou diferente dos outros.
Não me consigo habituar.
Apesar de todos os dias repetir o mesmo.
Todos os dias desde que nasci que o faço ou mo faziam.
Já devia ser automático.
Como enrolar a toalha depois do banho ou vestir o pijama antes de me ir deitar ou ajeitar o maillot na ginástica, quando chega a minha vez, ou lavar os dentes ou fazer café pela manhã ou atravessar sempre na primeira passadeira ou afastar-me de grupos na rua.
É automático para todos menos para mim.
Porquê?
Talvez porque não ache que seja necessário como nos dizem.
Talvez porque aprecie as rugas e porque não gosto daquele brilho de plástico.
Talvez porque me sinto confortável, de manhã, sem ela, e porque quase suspiro de alívio, quando a tiro, à noite.
Porque sabe bem, como tirar o bikini no mar e sentir as ondas.
Porque não me sinto exposta por aí além, sem ela.
Seja pelo que for, a verdade é que tenho de ter um aviso no espelho para me lembrar de repetir o de todas as madrugadas.
Já me devia ter habituado, não?
E então hoje esqueci-me.
Saí à rua assim, como acordo.
Lembro-me até de ter passado os olhos pelo espelho.
Pelo aviso em amarelo. Estava lá, auxiliar de memómria, cábula do dia-a-dia, mas não lhe dei importância. Já me habituei a ele.
Ao aviso sim, não à mensagem, à semântica da coisa.
Em maiúsculas, como se o grafismo servisse de muito, "MAQUILHAGEM", qual sentença.
Não é que não tenha jeito, como acontece com a roupa, o que me faz consultar as figuras das modelos da LaRedoute, antes de me vestir. Até tenho mãos para me maquilhar. E fico a encaixar bem na prateleira de "Linda".
Não, jeito não me falta. É simplesmente algo que não encaixa. Não me parece essencial. Bolas, o ser humano não foi capaz de chegar até aqui sem maquilhagem? Não terá a mamã natura posto proteção na pela? Sinceramente, nunca fui grande crente das coisas que nos contavam na escola e sempre me pareceram particularmente absurdas as teses de que "a maquilhagem é a roupa da cara, protege-nos do frio e do Sol, dos factores externos que a podem danificar". Para mim, pega mais a versão de que a make-up "protege-nos" dos factores internos que hoje em dia ninguém deseja e que rotulam a naturalidade como imperfeição indesejável.
Pronto, já disse. Não gosto de maquilhagem.
Não estou a falar de toda ela, claro.
Venero pintar a cara para saraus gimnicos.
Encher-me de cores e explorar os degradées, fazer arte na pele.
Mas, com franqueza!, é um espectáculo, é suposto representar, esconder quem sou para além das espargatas e dos mortais à retaguarda.
É suposto usar uma máscara.
Ah, mas quando saio à rua?
Hoje, aconteceu.
Levei tempo a dar-me conta.
Olhares escandalizados que pairavam à minha volta.
Inspecionei-me. Deus, vestira-me, ao menos. Não estava nua, nem de pijama. Nem tinha uma meia de cada cor nem trazia chinelos de quarto. E lembrava-me vagamente de ter passado a escova pelo cabelo,
Em suma, estava decente e apresentável. Qual era o drama?
Não posso adivinhar quem chamou a polícia. Esta não tardou, só tarda quendo se tratam de assuntos efectivamente

importantes, e quando vi o oficial na minha direcção, chegui, finalmente, à única conclusão esclarecedora de tudo aquilo.
"Sangue"
Era óbvio, devia ter havido um homicídio no prédio onde vivo e eu devia ter a cara coberta de sangue seco do ketchup di hamburger que comi hoje, logo hoje, eu que não costumo comer hamburgers vegetarianos com ketchup, por me fazerem lembrar os do McDonald's.
Uma análise dos resíduos na minha cara, que também podiam ser dos morangos que comi depois do hamburger, iria, certamente, demonstrar que não havia ADN humano naquelas gotas vermelhas, tão desencadeadoras de olhares perturbados.
O oficial das forças políciais foi bastante previsível na sua introdução de discurso
-a senhora está detida
e logo ali me deu vontade de reclamar, porque me chamam senhora desde o primeiro dia em que me veio o período, apesar de eu ter 10 anos, e continua a não fazer sentido, porque não sou casada e ainda nem sequer tenho idade para votar e só não barafustei porque, primeiro, não se barafusta com um oficial que acabou de afirmar que estás detida e porque, segundo, a restante acusação me deixou preplexa
-por se encontrar num local público sem maquilhagem.