Tagarela (cont.)

(Continuação)
Foi como se me tivessem bloqueado o corpo e a mente. A surpresa abalou-me de tal modo que todo o resto se apagou. Em primeiro, o vazio confuso da não coincidência com a minha recém formada conclusão. Depois, o choque arrepiante de quando fazemos, inconscientemente, algo proibido. A sensação de tentar apagar, proteger de situação desconfortável.
Maravilhoso cérebro.
E, mas só na esquadra, a repulsa de tão ridícula ideia. Consegui, finalmente, articular:
-Sair sem maquilhagem é crime?
Ele olhou-me com o mesmo prazer com que olharia um verme. Era bastante evidente que não gostava de insectos.
-Está, por acaso, a fazer troça de mim? Ou da Justiça? Faz parte de algum movimento?
Na minha cabeça, nada fazia sentido. A maquilhagem sempre me parecera assessória, simplesmente demasiado global para que alguém passe desprecebido sem ela.
Depois, também havia aquela treta da proteção.
Mas crime? Nunca, jamais ouvira falar em tal.
-Onde raio está isso escrito?
E, com toda a amabilidade, o senhor oficial mostrou-me o livrinho das Leis.
Não posso, assim, por Lei, encontrar-me num lugar público sem maquilhagem, por "ofensa à integridade pública". Assim. Tratam-me como se passeasse sem roupa, porque a "maquilhagem é a roupa da cara" e, qualquer dia, estamos todos a usar máscaras por Lei.
-Ofensa à integridade pública? - E, dito isto ri-me. Conheço putas, das de nome, não das de profissão, que andam mais nuas que vestidas e que ofendem mais a integridade pública do que quem quer que seja sem maquilhagem. A essas Meninas quem as prende? Não decerto o senhor polícia, babando-se de cada vez que as vê passar.
O senhor agente parecia cada vez mais preocupado com a minha ignorância e com o meu comportamento. E, quando me ri do paradoxo inscrito em "integridade pública", levantou-se, recuou e disse:
-Talvez fosse melhor falar com os seus paizinhos?
Olha-me este! Era senhora e agora já tenho paizinhos?
-Veja a minha ficha.
Porque eu não sei onde eles param agora. Mas não lho disse.
Não havia contactos de familiares nos registos. Só o meu e o do Doutor. Foi a ele quem o senhor agente ligou.

-Estive a falar com o seu psiquiatra. Ele disse-me que a senhora é esquisi... sofre de esquizofrenia.
E, de repente, senhora outra vez.
-Oh, estragou a surpresa!
Sim, sou esquizofrénica. E daí? Significa que tenho dias mais bonitos, quando me esqueço de tomar os comprimidos. Significa que vemos coisas diferentes, quer dizer, que eu vejo mais coisas que o senhor, ou seja, que vejo melhor.
E daí? Hoje tomei os comprimidos. Tal como um exame toxicológico poderia confirmar. Quando tenho episódios, não me maquilho, obviamente, mas também não saio de casa.
O mundo perde toda a importância e é tudo eu.
Dizem que é como certas drogas. Nunca exprimentei. É batota. Pedrar-se pode toda a gente, esquizofrenia genuina só 1 em 100.
Mas calei-me.
Vi nesta história uma fuga.
Toda a gente desculpa os doentes mentais, é a própria Lei que manda.
-O seu psiquiatra diz que os comprimidos bloqueiam a doença
Doença? Tenha calme, não se pega.
-mas que, ainda assim, se pode esquecer de maquilhar, algo que precisa de um espelho para reparar.
Para mim, make-up é como o cabelo:
Cada um usa como quer.
E, se não se quiser, não tem.
Mas parece que ofendo a "integridade publica", já corrompida com todo o resto, cuja existência já é, por si só, uma ilusão.
-Para resolver o seu problema
Problema? Nenhum, não me importo de ter a cara despida.
-creio ter encontrado a solução.
Era uma máscara.
Ajustável à minha cabeça.
Não sei bem porquê, fez-me pensar nas coleiras que se põem nos cães para não se coçarem.
E voltou a imagem, o pensamento de à uns momentos.
"estamos todos a usar máscaras por Lei."