Noite e Alvorada

A noite esmorece num qualquer bar. É tarde. Já não há gargalhadas nem exaltos, apenas restos em cacos partidos, espalhados no chão. Esta é a hora em que os resistentes moem as dores de cabeça. Esta é a hora em que os poetas se afogam no desespero da existência e da vida.

Reencontro sombras nas esquinas, lamuriando-se, lembrando-me de quem sou. Estão aos cantos e espalhadas, perseguindo-me neste amanhecer. O céu é tremeluzente cor néon, como quem vai avariar a qualquer momento. Há um chio a dobradiças velhas e os gatos resmugam e rugem por um pedaço de sardinha. Tenho uma caneta e um papel na mão, mas o café ainda não abriu. É cedo, minha rica mãe!, é cedo e as silhuetas ainda são difusas e estas sombras confusas de becos escuros. É tudo oco, porque faz tudo eco, porque a noite vibra, agora não, agora não há ninguém. Nem mesmo o vagabundo sem abrigo e mal cheiroso. Nem os trabalhadores que se levantam com a alvorada. A esta hora, só há gatos nas tampas do lixo e milhentos ecos desinibidos vindos de lado nenhum. Neste silêncio, raia a manhã, agridoce, de brisa gelada, harmonia. Nem pássaros, nem cigarras, nada no meio das sombras. Anseio silenciosamente a manhã e as suas gentes. Quero, quero ver dia e mundo e não este medonho cenário. As nuvens passam a galope e o céu é branco. A cidade é negro contraste. Quero fugir daqui, mas não me atrevo, quero desaparecer, mas não posso, quero fechar os olhos a isto, mas não ver é saber ainda menos, é só escutar. Tenho medo.
16.o5.2o10