Rapaz da bicicleta I

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Há um banco de jardim, velho, inclinado, junto à ponte. A bicicleta não cai do braço, no rio já é pouca a água, não é só de ser verão, também o rio se cansa, também o rio se morre. No início, há apenas espaço vazio. Então, começa ele, aquilo das mães é verdade. E muito ficou por dizer. Acha-las monstros, todas. Todas não, há sempre quem fuja à regra, mas nem tudo que não seja premeditado é desculpável. És muito dura para com ela, odeia-la. Não, amo-a, só que também não lhe perdoo. Devias aprender. Não. Ficam segundos em calma. Foi uma infância difícil. E que infância não é, se perguntas se me batiam, se me faziam trabalhar, se não me davam amor, se passei fome, se passei frio, se tive traumas, a tudo responderia não. Então. Esquecemos facilmente do quão difícil é ser criança, é tão fácil chorar, é tão fácil ter medo do absurdo, é tão fácil recear, a crueldade inocente dos adultos. Não achas que seja a altura em que somos mais felizes. Nunca somos, apenas achamos que sim, porque logo o esquecemos, aliás, o próprio conceito de felicidade é absurdo. Explica-te, por favor. Não sei, ao certo, no fundo felicidade é um estado tão inalcançável quanto a perfeição. Ninguém é perfeito. Ou ninguém perdoa as faltas dos outros mas desculpa, inevitavelmente, todas as suas. Já o pôs a sorrir com o trocadilho. Suponho que sim. Não seria tão radical quanto tu, não quer dizer que a perfeição exista, apenas que é efémera, se é que sabemos realmente o que é, é um estado, um momento, cristalino, onde tudo existe em harmonia e que se quebra no segundo seguinte. E aplicas o mesmo à felicidade. Essa contradiz-se a si própria, sabes, por intuição deve estar interligada com a perfeição, a tua satisfação pessoal depende do grau de perfeição do momento. Hum, estou a seguir. E a felicidade teria uma resposta mais ou menos positiva, como um riso, não. Acho que sim. Então pensa num momento verdadeiramente perfeito, que sintas toda essa harmonia cristalina, por mais curto que seja. Imagino. Consegues rir. Rir. Sentes-te mais inclinado às gargalhadas ou às lágrimas. Agora que falas nisso. Ou seja, a felicidade exclui-se a si própria. Ou a perfeição não seja felicidade. Consegues dizê-lo sinceramente. Não sei, tenho de pensar, mas não tem de ser a única fonte. Dá exemplos. Alcançar algo que se deseja, talvez, aquela alegria. Que parece durar para sempre. Sim. Mas nunca dura, nunca é permanente. Podes ter tudo quanto queiras. E nunca ser feliz. Desejar não alimenta a felicidade, mas a vontade de viver. Então, que sentiste quando eu parei a bicicleta e vim falar contigo. Incredulidade. Só. Bom, pelo meu raciocínio, vontade de viver. E felicidade. Talvez, um pequeno esgar. Como um momento perfeito. Só em sonhos imaginado. Mas desejado. Sim. E não te apeteceu sorrir, por dentro. Não. Não me mintas. Agora que penso nisso, os sorrisos só vêm depois, naquele momento é só aquilo. Lágrimas. Por dentro, como dizes. De alegria. De felicidade. Não é o mesmo. Não. Então que é alegria. Pensar que te vou ver amanhã.

Livro do Inferno - As Cores

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As cores.
Misturam-se, fundem-se, confundidas em manchas difusas, de castanho, de breu, de vermelho, talvez de verde muito, muito morto. Das paredes agrestes, do chão rude. Ela vai, enquanto caminham as pessoas. Esses espectros magoam de os olhar. Fantasmas não falam, não murmuram, talvez rumurejem para si mesmos, sem, porém, se darem. Ela vai, em passos, olhando em volta. Eles assomam à janela, medonhos, caras sem cara, secas, apenas para regressar ao interior. Sabem-se os próprios passos, só ela não sabe os que lhe pertencem.
A fome rói-lhe as entranhas. Comida a há. Suspiros abatidos aos cantos, dos que devoram o bife do prato. Os ovos enfrascados, remexidos até ao sumo. Não é que falte a comida, falta-lhe a ela.
Passos dos que sabem para onde têm de ir, não ela. Olha em volta, procurando recordar-se de algo que lhe remói a mente de há muito, muito tempo, sem saber o que é. As Galerias têm escuro apesar da luz. Têm calor, apesar do néon e da infinidade. Os corredores começam, acabam, terminam, desbocam em salões de figuras e silhuetas. As figuras são pessoas. As silhuetas são coisas.
A fome que a domina, os dentes que apodrecem.
Algures num canto há-de haver comida.
E por que não aventurar-se por outro corredor escuro, se todos são iguais e em todos há fantasmas.
Uma porta. Outra. Uma perante outra. Há que decidir-se. Pelo círculo ou pelo triângulo. De qualquer modo, são os dois o mesmo. Acaba onde começa. Matematicamente, perfeitos. Há que decidir entre um ou outro. Escolhe a porta à direita. Um bafo nauseabundo vem a seu encontro no momento em que se esvai pela curta fresta que delimita a porta e o limiar. O interior - ou exterior, da perspectiva dependendo - arde como as entranhas da própria terra: e instantâneamente ela compreende que ali não há comida. Talvez na porta à esquerda. De um passo atrás, puxa a maçaneta: e um cheiro semelhante, um vapor da mesma textura, sombras da mesma consistência vêm a seu encontro. Como portas paralelas darem para o mesmo simétrico mundo.
Já não se lembra porque aqui veio, aqui, ao mundo. Não se lembra de nascer, como se, desde todo o sempre, houvesse vivido nas galerias. Mas tem os dentes podres, pelo que se decide a uma das portas. Dos tubos exala o fumo, do chão, das paredes. Bacias marmóreas, donde escorre água. Passa-lhe as mãos. Em frente, um espelho; creme para os dentes. A água ferve. Enche os dentes em creme. Tem de se lavar nos lavabos públicos, porque não tem mais onde ir. Enconcha as mãos e recolhe líquido à boca. Espera e deita fora. As bacias, mármore; o chão, mámore; o branco, verde, em lodo. Regressará. Mas não ali, pois lavabos os há em cada corredor escuro. Não sabe como o sabe, mas sabe. Está certa da sua própria verdade.
Por agora, retirar-se-à, com a cadência da névoa ardente.

Livro do Inferno - Morte da Morte

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Mar haveria... mar...
Porém, costa aquela de um imenso, imerso, infinito corredor. Outras dessas colossais Galerias sem nome. Mar onde? Mar o quê? Mar, seco, agora, só palavra desidratada. Mar: muito, grande quantidade. Mar de calor, mar de corredores interligados, cavernas artificiais, forjadas na pedra. Como tantas palavras mortas, mar. Mortas, céu.
Céu: tecto, luz. Abóbada sem fim, pululada de luzes a todo o comprimento. Toda a extensão de galerias, corredores, céu, e céu tecto e céu luzes. Palavra morta, como tantas.
Mas não há palavra mais mora: que morte, morrer: morto.
Falar.
Falar também lhe parece morto, enquanto atravessa, em passo lento, as galerias infinitas. Pessoas, como fantasmas. Só.
Memória.
Não é que se esqueça das coisas, mas não há nada para recordar. Galerias, luzes, néon, corredores, fantasmas. Caminhar. Saber onde está: não sabe. Saber quem é: não sabe. E, depois, ecoam-lhe estas palavras soltas na memória, mar, céu, morte, outras, mas ela não se consegue lembrar do que significam, a que sabem. Sentir, nada. Sonhar, dormir, nada. Tudo confusão, como que um vidro sujo ou embaciado, que deixou ver e já não deixa. Comer. Tem fome.

Desde que se lembra, tem fome. Desde que se lembra, nunca comeu.
Decerto se lembraria se tivesse comido. Sim, de certeza. Talvez…

O Livro do Inferno - O Pobre Diabo

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As escarpas abriam numa clareira circular. O céu sangrava todo o vermelho. Do outro lado, uma caverna negra, com o fim a cair de vista, como uma grande boca de um peixe emergente, colossal.
Sentado, resguardando a entrada, uma aterradora figura, de olhos atentos, postos nela. Sentiu-se a paralisar. Talvez devesse voltar atrás, mas nem ao menos era capaz de pensar. Nenhum músculo respondia. O ar tinha fugido. O coração não parava, magoava como facas cravadas no peito.
Quis acordar. Aquele pesadelo macabro tinha de terminar. Oh, mas, para seu terror, sabia-se bem consciente. Nada podia ser mais real. Tomou coragem. A jornada fora imensa, não podia deixar-se naquele impasse, pois a besta não parecia fazer nada, limitando-se a observar. Engoliu em seco.
Um primeiro passo em frente.
Diabo seja! - berrou a criatura, fazendo-a saltar em sobressalto. Que raio és tu?
Permaneceu sem articular palavra.
Não esperava que um som minimamente humano saísse das entranhas de tão inconcebível ser. Os olhos que a fitavam, agora, carregados de inquisições.
A medo, começou.
Eu vim até aqui. Para vir morrer, pensou. Para vir morrer, disse em murmúrio.
O quê? replicou a criatura. Tens de dizer isso mais alto, porra!
Ela fez-se repetir, um pouco mais audível. Ele respondeu com cara de troça.
Anda até aqui, chamou-a com o braço. Que não entendo um corno do que dizes!
A medo, cautelosamente, avançou. Avançou até olhar, nos olhos, a besta. Foi então que reparou que este era mais baixo que ela.
Desembucha de lá.
Vim para morrer.
O medonhinho franziu o olhar.
Argh! Bah.
Lançou-lhe um esgar de nojo.
Mas será que ninguém me deixa em paz? Primeiro lá de dentro, agora do raio daqui de fora!
Ela estranhou-lhe a linguagem. Sim, era grosseiro.
De onde já se viu um ser divino tão grosseiro. Apontou-lhe a boca de baleia encovada.
Sabes que é aquilo?
O inferno?, perguntou-se, em voz alta.
A besta deu pequenos passos, de um lado para o outro.
Inferno, purgatório, submundo, o que lhe quiseres chamar. É terra de ninguém, to garanto. Quem morre, é para ali que vai. Naturalmente, põe alguém de guarda, porque aqueles danados querem voltar à vida. Onde já se viu isto? É o Diabo, o Bicho, o bobo da corte, a troça de todos que se escolhe. Estou cá, desde sempre, impedindo os tolos de voltar. Vivos e mortos no mesmo mundo! Separo-os aqui. E agora chegas-me tu, a quereres entrar. Saem uns, entram outros. Lotação esgotada, aguarde, por favor! Bah. Ao menos aqui nem há música. Aqui estou eu, para todos rirem. Do cornudo, sem maneiras.
Dizem as lendas que o Diabo é maldoso. Que causa o mal no mundo.
O mal? Já não basta ser porteiro, agora sou o mal? Achas que sou segurança de lá de baixo? Achas que não te vou deixar entrar? Qual quê! Todos os vivos seguros, comigo aqui. Protejo este mundo, assim é que é! Sem mim, eram almas penadas a vingar por todo o lado. E só espaço para essa gente toda? Ali em baixo há todo o espaço que possas imaginar! Aqui não, já mal podemos connosco, olha o que iria ser do mundo sem mim!
Dizem os mitos que o Diabo é o imperador dos Infernos, o supremo soberano.
O quê?
E isto di-lo com voz de grande espanto. Depois, contorce-se para trás numa gargalhada, meia risada, meia grunhida.
Tanta fama! Proveito, qu'é dele? Mas digo-te uma coisa. Poucas vezes estive ali abaixo e não guardo saudades. Ser rei naquilo não era reinar, era ser escravo! Lá em baixo estão todos mortos. Ah ah, eu rei! Bem bom, talvez pudesse ter descanso. Em vez de porteiro do casebre fúnebre.
Faz uma pausa para a olhar, de cima a baixo. Franze as sobrancelhas.
Com que então queres morrer, hum?
Assente. Sim, senhor.
E como descobriste o caminho para aqui?
Um mapa, responde ela. Um mapa, num anúncio de jornal. Folheio o jornal e ali está. Como morrer em cinco passos, Guia para a travessia do Vale dos Infernos.
Os tempos, Diabo!, os tempos! Já não me bastam os que passam a morte a querer viver, agora terei filinha a compasso de espera, todos para falar com o Diabo!, entrevistas com o Diabo!, 24 horas na vida do Diabo!, fora os parvalhões que não querem viver. Não o sabias ter feito com um veneno ou uma corda, como antigamente?
Ela desvia o olhar. Não quero deixar vestígios de mim. Não quero que nada fique para trás, nenhuma prova, nenhum corpo. Quero ser uma vaga memória na mente daqueles com que me cruzei. Parou para respirar. Quero que elas se perguntem se eu existi realmente ou fui apenas sonho ou imaginação, até que me esqueçam.
Tá bom, 'tá bom, já percebi, não digas mais nada. Sabes, deixa-me curioso esse artigo de jornal
Anúncio, interrompe ela.
Anúncio, pronto. Intriga-me, porque és a primeira da eternidade a aparecer aqui.
Agora, a nossa personagem vai ser um pouco maldosa para com o diabo e dizer-lhe algumas palavras de mau gosto. Nós, alheios, vamos ouvir, tentando compreender. Eles os dois entendem-se, isso é que interessa para a história, mas nós, aqui deste lado de fora, podemos ficar algo confusos. Aí ficam as palavras, de mau tom, que de mau tom só o sei serem, porque o Diabo se ressente e responde algo que não responderia a todos, ela diz
Por certo a sua mulher, ele responde com um olhar de poucos amigos, algo desconcentrado, e com o fraseado,
Cautela miúda, só se entra uma vez, dali não se sai, se a Morte é certa, porque não esperar?
Esperando, já há muito, responde-lhe assim: Porquê esperar?

Não há nada de bom lá em baixo.

Só vim para morrer.

Não encontras mais portas aqui. Só guardo para fora.
A entrada da caverna parece coberta com um véu negro, onde nem os vislumbres da vermelhidão do céu chegam. Talvez se devesse despedir, mas não sabe de quem nem do quê. Do Diabo, da clareira morta?
Só vim para morrer. Debruça-se nas portas do inferno, perante toda a escuridão. Só vim para morrer, ou assim espera que seja.

O Livro do Inferno - Nos Portões do Inferno

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Um segredo. Montas, altas, como ondas. Precipícios cor de uma laranja sangrenta. Um segredo, esse que caminha por entre os escombros. Sabemos e vemos, dando passos inseguros. Estacando, por vezes. Hesitante, outras. Confiante quando apressa. É um cabelo escuro. Ela está pronta, mas nem sempre avança. Tem arrepios. A certeza não consegue esfumar o medo. Um segredo. Ali, não há quem a detenha.
Tenho-te em passo passadiço, no passeio enfadonhado dos negados ao mundo. Já esperas a morte atrás de cada escarpa. Um vulto esquelético, um sorriso que não sorri. Esperas frio. Tenho-te ao meu ritmo, passo após passo. Esperas dor. Doença. Crueldade.
Não se apercebe da caminhada, por vezes, absorvida nos próprios pensamentos. O céu torna-se um vermelho cada vez mais vivo. Como se o sol se estivesse a pôr e a noite não mais chegasse. Não há plantas. Nem o mero vestígio de verde. Um tímido musgo, um feto. As escarpas ladeiam o desfiladeiro. Sem pedras. Sem imperfeições. Não pode ver para lá dos desvios.
Aqueles caminhos, pensa, são cruelmente labirínticos. Agarra-se com força ao papel, cheio de vincos, amachucado, que traz consigo desde ainda antes dos Jardins desérticos que atravessa.
Da vida injusta. Cruel.
Caminha ao fim, sem saber quando o fim irá chegar. Caminha ao sabor de si mesma, aterrada. Sabe bem porquê. Sabe que não há meia volta a dar. Todos os passos são em frente, os dela dados, os dela pensados. Inclinam-se as encostas, em seu redor, ora vira à esquerda, ora à direita, sem vislumbrar desfecho a tanta perambulação.
Tenho-te em minha lei e, apesar disso, no caminho certo. Irás chegar onde tens de chegar, confio-te essa conversa. Passeia-te, frágil, com os teus receios. Falta menos de nada.
Os Portões estão ao virar da esquina.
Sim, a escrita gasta não mente. As letras impressas indicam-lhe o passeio, guiando-lhe os passos. Sim, já está na última linha, as palavras ditam-lhe para continuar. Está no fim.
Perante si, a figura escura, que tanto receava.