Livro do Inferno - As Cores

As cores.
Misturam-se, fundem-se, confundidas em manchas difusas, de castanho, de breu, de vermelho, talvez de verde muito, muito morto. Das paredes agrestes, do chão rude. Ela vai, enquanto caminham as pessoas. Esses espectros magoam de os olhar. Fantasmas não falam, não murmuram, talvez rumurejem para si mesmos, sem, porém, se darem. Ela vai, em passos, olhando em volta. Eles assomam à janela, medonhos, caras sem cara, secas, apenas para regressar ao interior. Sabem-se os próprios passos, só ela não sabe os que lhe pertencem.
A fome rói-lhe as entranhas. Comida a há. Suspiros abatidos aos cantos, dos que devoram o bife do prato. Os ovos enfrascados, remexidos até ao sumo. Não é que falte a comida, falta-lhe a ela.
Passos dos que sabem para onde têm de ir, não ela. Olha em volta, procurando recordar-se de algo que lhe remói a mente de há muito, muito tempo, sem saber o que é. As Galerias têm escuro apesar da luz. Têm calor, apesar do néon e da infinidade. Os corredores começam, acabam, terminam, desbocam em salões de figuras e silhuetas. As figuras são pessoas. As silhuetas são coisas.
A fome que a domina, os dentes que apodrecem.
Algures num canto há-de haver comida.
E por que não aventurar-se por outro corredor escuro, se todos são iguais e em todos há fantasmas.
Uma porta. Outra. Uma perante outra. Há que decidir-se. Pelo círculo ou pelo triângulo. De qualquer modo, são os dois o mesmo. Acaba onde começa. Matematicamente, perfeitos. Há que decidir entre um ou outro. Escolhe a porta à direita. Um bafo nauseabundo vem a seu encontro no momento em que se esvai pela curta fresta que delimita a porta e o limiar. O interior - ou exterior, da perspectiva dependendo - arde como as entranhas da própria terra: e instantâneamente ela compreende que ali não há comida. Talvez na porta à esquerda. De um passo atrás, puxa a maçaneta: e um cheiro semelhante, um vapor da mesma textura, sombras da mesma consistência vêm a seu encontro. Como portas paralelas darem para o mesmo simétrico mundo.
Já não se lembra porque aqui veio, aqui, ao mundo. Não se lembra de nascer, como se, desde todo o sempre, houvesse vivido nas galerias. Mas tem os dentes podres, pelo que se decide a uma das portas. Dos tubos exala o fumo, do chão, das paredes. Bacias marmóreas, donde escorre água. Passa-lhe as mãos. Em frente, um espelho; creme para os dentes. A água ferve. Enche os dentes em creme. Tem de se lavar nos lavabos públicos, porque não tem mais onde ir. Enconcha as mãos e recolhe líquido à boca. Espera e deita fora. As bacias, mármore; o chão, mámore; o branco, verde, em lodo. Regressará. Mas não ali, pois lavabos os há em cada corredor escuro. Não sabe como o sabe, mas sabe. Está certa da sua própria verdade.
Por agora, retirar-se-à, com a cadência da névoa ardente.

1 críticas: (+add yours?)

Bruno Miguel disse...

Tirando a parte dos dentes podres e de se ir lavar a casas de banho públicas, a fome lembrou-me o que passei em Lisboa... E a tua escrita continua cheia de carga negativa.