Diários da Avó Velha


A Avó Velha diz coisas, conta-nos histórias, da Avó Velha, que nos quis a todos. Levo-a hoje pela mão, ver o mar à chuva, porque a Velha gosta, porquê não sei.

Anda, Velha, digo-lhe, por avó já não a trato, ninguém a trata, e a quem a chame Avó Velha, logo responde, a quem chamas avó?, que, sempre fui velha, mas avó não sou a ninguém, nunca tive filhos.

Porque a Avó Velha não tem memória, não lembra o passado, não imagina o futuro, não sabe o presente. Vive, num mundo dela, díspar, alheado. Por isso a temos de puxar pela mão. Velha é o único nome que tem. Os papéis, os documentos, perderam-se. Os filhos, meus pais, meus avós, sabem de onde vieram, mas não sabem de onde ela vem. Esqueceu o nome, ou diz que esqueceu.

E as autoridades danadas. Dizem-nos o sermão, muitas vezes, que sem identidade, só há incógnita, e das incógnitas nasce o caos: e, com caos, não há civilização. Mas, depois de toda a investigação, saem sempre de incógnitas, cuspindo, entredentes, "Escumalha cigana", para a Avó Velha e, quem sabe, também para nós.

Trago-a pela mão e sentamo-nos no muro molhado que ladeia a costa, virados para o mar, os pés balançando como pêndulos. A Avó suspira e solta,

Acho que deixei o chá por beber na mesa de cabeceira.

Com uma mão, seguro o guarda-chuva que nos abriga a ambos. Com a outra, protejo uma série de cadernos de capa dura, pretos, encarnados, verdes, amarelos, carcomidos pelo tempo. Toco-lhe o braço, para saber que é com ela que falo.

Velha, lê.

Estendo-lhe um dos cadernos. Ela toma-o e abre-o. Passa os dedos pelos caracteres indecifráveis.

Está uma boa chuva, comenta. A chuva areja o ar e areja o chão, lava as cidades e deixa os campos respirar.

Para meu desconsolo, devolve-me o caderno, sem nada revelar. Do que sabemos, foi ela quem os escreveu, ao longo dos anos, porque às vezes a vemos fazendo, na mesma linguagem oculta, deixando-os esquecidos pelos cantos. Já foram lidos e investigados e corridos de uma ponta à outra, pelas autoridades, em busca de um nome, de uma identidade. Por familiares, à procura de histórias, contos, material que se possa vender pelas livrarias. Por mim, e pela congregação, para darmos o nome à campa e a Deus. Vá lá, velha...

Um dia, disse-lho, assim. E ela respondeu-me, queres tu saber o que aqui está escrito? Que não queria outra coisa, prosei eu. Por Deus?, tornou. Benzi-me e ela riu-se. Sendo assim, continuou, não to direi.

Apesar de sentido, agora não menciono Deus, mas ela não esquece. Por maiores as minhas manhas, sabe sempre que fui eu. Ou me responde com silêncio, ou pergunta,

Olha lá, acreditas em Deus?

E eu não posso mentir. E, aí, sei que perdi.

Ela olha ao mar, às ondas, e os lábios movem-se, num murmúrio imperceptível, dir-se-ia, numa oração. Porém, para um ouvido tísico e atento como o meu, as leis das marés, dos luares, da precipitação, decifram-se no vago mistério daqueles rumores. Talvez sejam assim compostos os cadernos da Velha. Mas será fatal a minha insistência, pois nunca perco a esperança de os descodificar, tal como às supostas orações. Quem sabe, aqueles cadernos sejam efectivamente os diários que todos supõem ser. Quem sabe, a Avó Velha não é tão herege quanto se pensa e cada palavra seja uma confissão e uma comunhão com Deus. Pois que a Avó Velha é tão bondosa, para com todos, e sabe tanto, parece que tudo, e faz gestos que provocam milagres. A Avó Velha é, afinal, a última santa - ou assim o espero.

Quando eu era criança, chocava-me verdadeiramente quando ela dizia que não tinha filhos. Porquê, Velha, porquê?, se tens a casa cheia deles? Respondia-me que nunca quisera ter filhos. E eu chorava. Depois, quando apareceram as autoridades, quando os nossos pais e avós foram buscar os documentos, para ver quem era aquela grande mãe que a todos educara, descobriamos nós, os mais novos, e eles, os polícias e advogados, que ninguém era filho da grande senhora. Não satisfeitos, não convencidos, mandaram fazer testes e testes, ADN e maternidade, e cada resultado confirmou-se. Descobri que os meus primos não tinham o mesmo apelido que eu. Quem eram todas aquelas pessoas em minha casa? Quem era, especialmente, aquela senhora velha, que de nada se lembrava? Com o tempo, perdoei-lhe a pouca ortodoxia, a heresia, pela bondade que praticava, como todo o bom crente deveria praticar. Porém, há coisas que não se engolem e a minha esperança tem permanecido depositada naqueles mil e um cadernos, mil e um quartos trancados, portas de pedra.