Negrito

Já me levantei às cinco da manhã e fiquei a ouviu o bater da chuva na calçada, de hoje, de amanhã, dos dias que virão. Há pássaros pequenos que não se importam das gotas gordas, aproveitam o banho para ir à caça das migalhas. Eu nem me consigo levantar da cama. Aquelas ovelhas e aqueles galos e até mesmo as vacas que pastam não têm doenças mentais, não têm de tomar os comprimidos às horas certas. A pergunta é, queres ficar bem? A pergunta é, queres deixar de ser quem és? Queres abandonar a rapariga, a menina que, no casamento, despiu a camisa, desatou o cabelo, descalçou os sapatos e acarinhou a água? Queres deixar de ser a paixão do dono do café? Queres não ser especial para o fotógrafo do casamento? Que importa se os outros te acham estranha? Que importa se o rapaz da bicicleta não parou naquele dia, mas parou no teu texto e veio falar contigo? Que importa se o rapaz da bicicleta, o mesmo que gostou do teu desenho, não gosta realmente de ti - porque não tem motivo nenhum para gostar e és tu que crias todos estes fantasmas na tua cabeça.
Voltando aos cavalos, ao mato, a ouvir a chuva. A ouvir o esgoto, como uma cascata, debaixo dos nossos pés. Voltando à terra tenra. À terra verde. A andar no meio dos plátanos, acariciá-los. Tudo o que eu escrevo é uma confusão, mas passo a mão pelos troncos, enquanto passeio, enquanto piso o chão que piso, com a agilidade de quem voa em sonhos, aquele voar sem certeza, sem ligeireza, só com a crença de voar, de quem cai ou não cai, de quem pode fazer tudo, de chegar ao café e dizer, vim para aqui a voar, vou voar o mundo todo. Como quem diz, vou caminhar o mundo todo - e é isso mesmo que vou fazer.
Já fervo, como o chá. Já desapareço entre um bolo que não trouxe hoje das Trinas, daquele belo paraíso de três mesas e um amor, e uma obsessão  O paraíso dos loucos em liberdade, das pessoas que são o que são, sem medos.
Já fervo, porque ele viu o desenho e disse logo, "o rapaz da bicicleta".
Já fervo, porque a borboleta morreu, mas em mim não morre nunca e eu vivo em inferno, na minha memória, a reler e reler o que acontece.
Preciso de outro psiquiatra.
Tento ver a beleza em tudo e vejo, mas quando tento ser feliz, sinto-me a traí-la. "Hei-de amar-te para sempre". Ser feliz é traí-la, é esquecê-la.
Eu bloqueio porque não tenho mais nada a dizer. Não tenho mais histórias, não tenho mais caprichos, não tenho mais ambições. Pergunto-me se estou mesmo a viver a minha história, se estou a fingir que vivo alguma coisa. A minha vontade ainda é a mesma que no verão passado.
Ajuda-me, Santiago!