Depressão Pós-Depressão


Depressão Pós-Depressão
(aquilo de que ninguém nos avisou)

É mais um dia de viagem, da viagem inevitável que passo a semana a adiar, com medo de qualquer coisa que não existe. Já parece que passaram semanas desde a última, quando escrevi aquela carta num guardanapo, num misto de desespero e de melancolia, uma espécie de pedido de ajuda que ninguém vai ouvir - e que ninguém pode ajudar. Hoje, enquanto estendo a roupa, peça por peça, e dou uma entrevista imaginária, penso na depressão, que um dia esteve tão presente, ou todos os dias desde há três anos, agora sim, três anos e meio (e uma semana). Ainda os conto, aos dias, às semanas, aos meses, agora aos anos desde que perdi tudo. A esta hora, a 16 de Novembro de 2009, chovia intensamente e eu estava para apanhar o comboio nocturno até casa. Entrei com um sorriso no comboio, saí com um peso no peito e lágrimas incontáveis, e algo que não sabia bem o que era. Foi aí que a guerra começou.

Agora, olhando para trás, vejo os dias com terapia, sem terapia, com depressão, sem depressão, com medicação, sem medicação, com uma clareza infinita. Aqueles dias em que lutei, em que não precisei mais de lutar, cada dia, cada acção, teve  uma resposta no meu cérebro. Um dia, deixei de viver, de pensar, de lutar. Limitava-me a estar e a receber toda a dor insuportável, sem pensar muito dela, porque pensar implicava sentir cada golpe com uma intensidade incrível. Afinal, de que nos serve pensar?
Os dias da depressão vieram e ficaram, e, hoje, olho para a romantização e preconceito para com a doença. As pessoas diziam-me para ir correr, para sair de casa. Belo. É doloroso olhar para trás e saber que todas essas pessoas não me podem ajudar. É como dizer a alguém que tenha cancro para ir correr e sair de casa, na esperança de que a doença desapareça, como que por magia. Não há magia. Não há ajuda. Nem o psiquiatra pode fazer-nos ultrapassar, se bem que torne a dor um pouco mais suportável, quando é demasiada. Consegue ajudar-nos a deixar as noites de insónias, mas tudo o resto é trabalho nosso. Gritamos por ajuda, mas estamos presos no nosso próprio corpo. Não há nada de bonito ou fácil na depressão.
Porém, um dia, a dor desaparece. Um dia, conseguimo-nos levantar da cama, conseguimos vestir-nos com energia, tomar banho, sair de casa. Conseguimos querer alguma coisa, fixar objectivos. No entanto, tão depressa como aparece, estes espasmos vão embora. Esta é a pós-depressão, aquela de que ninguém nos avisa. A minha primeira vez foi no verão de 2010. Deixei os comprimidos, depois de mais de meio ano presa a eles, fiz os exames, comecei em férias. No ano seguinte, fui viver para Coimbra. Então, em Janeiro de 2011, recomeçou. Como se volta a uma depressão depois de sair das garras, do fundo do poço? Não tinha a certeza, mas, quando em Fevereiro voltei a perder tudo, já não queria saber. Eu *merecia* aquela bem dita depressão. Como raio conseguiria sobreviver sem ser debaixo dos lençóis e sem pensar em nada? Durante o verão, as coisas não melhoraram. Apesar de ser só uma ligeira sensação, não tão forte como a primeira vez, nada mudava.
Já em Setembro, a vida começou a dar frutos positivos. Um exame de época especial que resultou num 15, um novo ano, colegas de casa fantásticas. Estava a caminho da felicidade, da normalidade, outra vez. Estava outra vez na pós-depressão - e, em breve, ia voltar aos calabouços da minha mente. Muito em breve. Fins de Outubro, inícios de Novembro, voltei a faltar às aulas, a cortar-me na casa de banho. Talvez em Março, a minha mãe arranjou-me anti-depressivos leves, e eu tentei fingir que as coisas estavam a melhorar.
A primeira vez que me tentei matar, foi a 19 de Junho de 2012. Depois disso, ao ver-me tão desesperada, voltei ao psiquiatra.
A minha última consulta foi em Dezembro e, no início de Abril deste ano, já tinha deixado totalmente a medicação - outra vez.

A vida estava melhor, tenho de dizer. Eu a viver em Guimarães, num mestrado com os colegas mais fantásticos que alguma vez tive. Sim, o mestrado não era exactamente aquilo que eu queria, mas há coisas piores. Já tinha meio ano, um semestre feito. Só faltam mais 6 cadeiras. Deixei os comprimidos. Não me sinto deprimida, raios.
Então, porque quero desistir?
A depressão pós-depressão não está nos folhetos de aviso à entrada dos dentistas. E qualquer pessoa assume, o cancro não metastizou, foi completamente erradicado do teu corpo - a guerra acabou - está tudo bem, certo? Claro que está tudo bem. Então, porque quero desistir?
A depressão pós-depressão é aquela letargia, aquelas tentativas. É quando voltar ao mundo real dói. Foi aí que estive tantas vezes, sem saber, e voltei à depressão. A depressão pós-depressão é como estar numa cidade destruída pela guerra. A guerra acabou, mas não sobrou pedra sobre pedra. Essa cidade é a nossa cabeça. Temos de reconstruir tudo outra vez. Pedimos ajuda. Queremos ir para fora, para longe, recomeçar, como se o problema fosse o mundo e não fomos nós próprios. Agarramo-nos com uma força incrível às pequenas alegrias, que acabam demasiado depressa, porque o mundo, se não queria saber da depressão, também não quer saber da estúpida impatológica depressão-pós-depressão.
Estendo a roupa, peça por peça, com cuidado, acarinhando o sol, enquanto penso em tudo isto. Ouço e vejo os pássaros, tento descobrir com cuidado a origem de cada canto, cada bico aberto, com alegre simpatia. É primavera, mas sei demasiado bem que as minhas depressões não são sazonais. Estar na pós-depressão é como um preso que, depois de 20 anos a cumprir a pena, descobre um mundo totalmente diferente e não sabe o que fazer nele. A prisão pode ser o que é, mas, ao menos, é o mundo conhecido, por 20 anos. É claro que ele quer voltar.
É claro que eu quero voltar. Dou-me em voltas com perguntas que não sei como formular, quero desistir do mestrado e fugir para uma cidade desconhecida, e fazer um trabalho simples, limpar um supermercado, qualquer coisa com um horário fechado, sem trabalho para casa, para chegar e escrever, ter ideias enquanto trabalho e escrever um livro quando acabar. Uma vida com o mínimo de preocupações, até estar pronta a ter responsabilidades, uma vez mais. De momento, estou inapta a ter responsabilidades. Não estudo. Não faço os trabalhos. Não me junto ao grupo. Vou a casa sempre que consigo, mesmo que tenha coisas marcadas. Choro nos braços da minha mãe, sem conseguir compreender porquê. Mas hoje, hoje compreendo, e sei que só dependo de mim. Que ninguém me conseguirá dar ajuda. Não sei o que fazer, mas precisava que os outros compreendessem. Precisava de congelar a matrícula este ano, mas não posso. Não me importo de não acabar o mestrado. Neste momento, não me importo com nada, a não ser tentar não regressar ao estado depressivo.
Repito-me mil vezes. Pergunto-me quando escrevi cada texto, se estava ou não neste estado, se foi a depressão ou a pós-depressão que me escreveu O Chapéu e o Pássaro, o Rapaz da Bicicleta. Setembro de 2010, Agosto de 2011: pós-depressão. Guardo esperança. Enquanto aqui, talvez consiga continuar a escrever. (Topiramato: pós-depressão, quase); (Diários da Avó Velha: Setembro de 2012, pós-Santiago, pós-depressão)
Ao menos isto, conseguir escrever. Conseguir esquecer. Voltar ao que já escrevi e ser o que sempre fui.