Boas Mortes

Boas notícias, óptimas notícias, excelentes, fenomenais, indescritivelmente agradáveis.
Parece que o mundo vai acabar dentro de uma semana. Semana que vem, não serei mais pessoa e, então, serei a pessoa mais feliz que alguma vez em tempo algum existiu.
-Tem a certeza, senhor doutor?
-Eu lamento imenso, é irremediável e irreversível.

Magico em tudo o que posso fazer. Matar-me já é uma tentação bastante grande, avizinha-se como um sonho antigo espreitando e fazendo-me as delícias. Mas não devo morrer já. Esta morte não é minha, ainda. A data do nosso casamento já está marcada, o dia em que te vou aprisionar-te em meus braços e beijar-te docemente, triste, amiga morte.
Poderia matar-me já, sim, podia, abreviar o tempo de espera, mas este tortuoso mundo também reserva estranhas condições. Com uma semana apenas, parece que a criatividade excede os limites do possível, do que antes era possível.
Saio do meu triste apartamento com um sorriso na face, com o sorriso de quem sabe que vai morrer em breve.
O Sol refugiado atrás das nuvens brilha com muito mais intensidade e hoje é apenas meu. Comigo levo pouca coisa. A carteira, a caneta e o bloco de notas. Corro para o autocarro que me há-de levar à estação. Caminho sobre os carris do caminho de ferro com o equilíbrio de outros dias. À minha volta, as pessoas preocupam-se e deixam a urgência tomar conta dos seus rostos, as caras ficam deformadas e eu rio.
A triste sorte seria somente o não poder fazer nada, estar impedida pelo meu corpo de ir a lado algum e ainda assim se poderia fazer algo, escrever e viajar na mente.
Mas, felizmente, tenho esta porção de tempo e vou fugir com ela.

Aqui, além, mais além, que importa, esta semana é minha.

Saio no comboio rumo a uma cidade por conhecer. Telefonei-lhe de casa, ele deve estar à minha espera. À minha espera. Vejo a paisagem e absorvo-lhe cada traço, apesar de ir tão depressa. Já vi tudo isto noutros lugares, quase com a mesma forma, mas nunca perde o brilho, o esplendor e a essência de ser. Adoro ver a paisagem, nesta viagem particularmente, nesta viagem sabe bem, porque eu vou para parte incerta, vou para o desconhecido fazer tudo.
Tenho uma semana, tenho tudo. Tenho corpo ainda com forças, tenho tudo. Tenho companhia, tenho tudo. Tenho dinheiro como mo exigem estes tempos modernos, tenho tudo.
Se desço do comboio ou voo ainda pela janela, não sei. Acho que voo. Ele está à minha espera, corremos num abraço apertado.
Tenho uma semana, tenho companhia, tenho o mundo, tenho tudo.
Apanhamos um táxi porque estou farta de autocarros e de esperar e de parar em todo o lado. O meu tempo é todo mas todo não é assim tanto para quem tem uma semana. Vamos para o aeroporto, o grande centro dos aviões, não há tempo a perder.
A planar, sobre as nuvens, nós seguimos.
-WEEEEEEEE, fazem os meus braços, imitando o movimento de um avião exagerado, sou criança de novo, criança que vai atrás de paisagens.
Aquela terra nova, estrangeira, está coberta de frio e de gelo.

1 críticas: (+add yours?)

Anónimo disse...

Excelente texto. Simplesmente adorei.
Assim que o comecei a ler pensei logo numa serie que costumava ver semanalmente, o "Skins".
Não há melhor que o dia de desaparecer.