Noites de Verão

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O Sol pousa no poente, a luz estremece, o negro inunda-nos. A Lua nasce.
Saio à rua, em manga curta e calções. Está quente mas não está calor. O ar envolve-me num abraço morno e a brisa esfria todas as possibilidades de isto tudo ser demasiado insuportável.
Saio à rua, em manga curta e calções. Está escuro, só se vêem estrelas, a Lua, raras nuvens. E casas pitorescas lá ao longe. Caminho com calma sobre a terra batida. Trago sandálias simples, quase como se fosse descalça.
Ando um pouco, à luz da Lua. Cheira a pinheiros, mimosas e eucaliptos. Cheira a arvoredo e a serra. Cheira a terra quente. Quente como um abraço maternal.
Ando um pouco, à luz da Lua. Os grilos cantam, suaves, compassados. As folhas do bosque estremecem com a brisa que as afaga, ouve-se o bater de galhos contra galhos, ouve-se o vento. Ouve-se, ao longe, a ribeira que cai em pequena queda de água.
Ando um pouco, à luz da Lua. E depois corro. Deixo que o vente me penteie o cabelo, deixo que a morna brisa seja braços de um abraço, deixo que esta doce terra me seja a minha casa.
Sinto-me em casa.
Estou na terra de meus pais, em terra onde outrora se conheceram. Este chão murmura e grita as histórias de séculos passados e promete-me que estou em casa.
Sigo carroças e imagino-os na sua mocidade. Nesta pequena aldeia que deveria ter sido a minha.

Este ritmo que nos percorre, na praia

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Quero o prazer astuto de beijar o mar.
Quero a liquidez de tais lábios, magoosos de tão salgados. Quero esbracejar, entrar na areia e encher-me nela, rebolar-mo-nos, movimentos bruscos e convergentes, eu contra ela, ela contra mim, rebolamo-nos, movimentos doces de esgares de prazer. Este ritmo não pára, são os tambores do pulsar da vida, os tambores do pulsar do coração, este ritmo não pára, eu nela, ela à minha volta, abraçando-me, e esquecemos quem somos, esquecemos o que somos, somos tudo o que sentimos e sentimos este ritmo cada vez mais forte, cada vez mais rápido, cada vez mais intenso. O mar, o mar enche-se de ciúme, inunda-nos no nosso abraço, agarra-nos, está no meio de nós, percorre-nos a espinha, cavalga-nos o corpo e, naquele exacto momento, estremecemos, estremecemos em frio, em fome, em prazer do que somos, em prazer de quem somos e neste momento somos o que sentimos.

Quero afligir-me nas tuas águas
Quero afogar-te em minhas mágoas
Quero afogar-te em mim
e roubar-te a respiração.
Quero cravar-te nos meus braços.

Nos verdes campos

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Era um dia nos verdes campos. Estávamos sós, estávamos calmos. Éramos, seriamos só nós. Enfim sós.E sós que fazíamos? Conjugávamos todos os presentes do indicativo de olhar. Olhávamo-nos profundamente e explorávamos todas as variações, cada degrau da graduação, um arco-íris de modos de ver.
O campo é simples. É um céu, algumas nuvens, é uma clareira verdejante, algumas árvores. Sós estamos. No campo. Tu comigo, eu contigo - e sem querer estar mais além deste momento e deste lugar.
Tu moves-te com agilidade, uma certa destreza adquirida com o passar dos tempos corridos a pontapé. Eu vejo-te tão eficaz e por fim compreendo que tu és imaginário, és uma sombra de vapor que parte da minha própria cabeça e que se desfaz num gesto mais ousado.
Estás comprometido. E eu amo-te.
Fecho os olhos e deixo as lágrimas correr.
Antes amar e não ser correspondido
Antes chorar por não amar
Que perder de um modo tão dramático o nosso amor, a nossa alma gémea.
Adormeço na clareira, agora à beira rio. Quis contar-te algo, descrever-te a luz do sol que se espelha na água e brilha como se amanhã não houvesse, mas depois lembro que és imaginário. Amo-te e por isso te choro.Levanto-me e parto para casa.
Para a nossa cabana, para a minha cabana. O meu abrigo provisório, sempre provisórias são as minhas casas. Nela olho para as paredes ocas, para as prateleiras vazias, para o espaço que sobra em excesso da tua ausência. Recordo uma vez mais que não existes. E que nunca te hei-de ver.
A um canto, um colchão e um saco-cama. Uma almofada, uma boneca de pano. Uma lanterna, uma vela. Uma mochila meia aberta.
Ainda só pernoitei uma vez nesta casa, neste outro lar construído do nada. Quanto tempo serei capaz de ficar? Não me interessa - as minhas necessidades logo o hão-de ditar. Estou à mercê do momento, de cada momento.
E a cada momento sei que te amo e que ainda não te encontrei e que não posso estar contigo. Talvez nunca.
Comigo trago meia dúzia de livros. Os meus queridos companheiros de viagem. Três cadernos, duas canetas de tinta permanente, recargas. A história de uma amante da vida que sofreu toda a infância perdas tão duras quanto pôde aguentar. A história de duas viajantes solitárias que correm o mundo procurando melhorar as vidas às suas voltas com chocolate e toda a sua magia. A história destas duas viajantes que se tornaram quatro. A história dos adolescentes musicais. Ah, histórias! Depois, as minhas. Um diário, um de notas e um de histórias. Hoje e amanhã, tal como ontem, continuo a ser o que escrevo e é na escrita que continuo a revelar-me verdadeira.
Afinados seguem comigo vozes de cantares. "Perde a estrela d'alva o seu fulgor", canta Zeca Afonso, em doces acordes, embalando algum menino, ou menina como eu. Pequena, adormeço, após fechar os olhos. A Lua entra pelas frestas do telhado. Quis amar-te tanto e quis tanto estar sozinha que agora essa é a dor que mais me angustia.
Já nem o ter de andar nómada me causa transtorno - não, é mesmo para isto que nasci - é a tua ausência eterna, o vazio da tua não presença que nunca existiu. Quero-te algures comigo, para provares o café matinal que exala da cafeteira improvisada, para saboreares o chá da noite, o calor que conforta por dentro e prepara já o corpo para repousar.
Querido, querido.
Sinto-te tanto a tua falta, nesta casa, cada canto tem menos vivacidade por tu não estares comigo.
Liberta-te das tuas inexistências e impossibilidades e vem sentar-te comigo, vamos os dois ver cometas à nova Lua.

Natural

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Vejo pequenas estátuas douradas feitas de trigo. O pão é o nosso ouro. O nosso dinheiro, a nossa vida.
É tudo o que temos.

Vejo um imenso azulejo de lápis-lazuli. O céu é o nosso azul.

O fogo os nossos ruis, a verdura as nossas esmeraldas.

A água cristalina são os nossos diamantes.

A névoa é um véu de prata.

Para quê procurar pelos recantos e profundezas do mundo se a riqueza abunda à superfície?
O pequeno lince fita-me com cautela. Estendo-lhe a mão e imobilizo-me. Espero. Ele avança com pequenos passos e atreve-se a aproximar o focinho. Fecho os olhos e reabro um pouco apenas. Mal respiro.
Atrás de mim, um ramo é partido por um coelhinho e esse som basta para o felino virar-se e fugir de mim.

O meu verdadeiro tesouro era ser capaz de acariciá-lo.