Cicatrizes

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Nestes dias em que tudo o que quero é morrer, surge esse cão em casa dos meus avós que me deixa apaixonada. Samoieda, cães grandes, como eu gosto. O Freddie tem 6 anos. Parece uma grande ovelha. Tem o focinho arranhado, vê-se a carne junto ao nariz. A orelha esquerda está caída. Tem várias feridas ao longo do corpo. Os antigos donos fartaram-se dele. Uns vizinhos dos meus avós, lá da terra, tinham-no abrigado e davam-lhe de comer. Por vezes, ele fugia e só o viam muito depois. Ofereceram-no aos meus avós. E aqui está ele, agora. Quis voltar da cidade dos estudantes para casa no dia em que o trouxeram. Hoje, demos-lhe banho. Está escovado, asseado, mas o pêlo ainda não adquiriu o tom original branco. As crostas das feridas saíram no banho e ele começou a sangrar por demasiados lados. Está cheio de pulgas. Há que o levar ao veterinário. Agora, eu, com os braços cortados, quando só me apetece morrer, com ataques de ansiedade e de pânico dia sim, dia não. Eu, que assim que chego à terra roubo os medicamentos da minha mãe. Aparece-me o Freddie e eu não lhe resisto. O Freddie é um cão grande que só ladra quando precisa de ladrar. Eu gosto de cães grandes, não gosto nada dos pequenos. O Freddie enternece-me. Adoro fazer-lhe festas, correr para ele e abraçá-lo. Adoro dar-lhe beijinhos. Adoro quando ele me deixa lambuzada. Quero morrer, mas também quero o Freddie. O Freddie é óptima companhia. É um bom amigo. Agora que a Pantera desapareceu, há já mais de um ano, eu preciso de alguém. A Joanna desapareceu, o Yuri está longe. Não vou mentir a ninguém, não vou mentir a mim mesma. Não tenho mais amigos. Tenho o André, mas não posso falar com ele como falava com a Jo ou com o Yuri. E ele não me pode fazer companhia como a Pantera ou o Freddie. Estou a pensar voltar ao psiquiatra, à psicóloga. Quero curar-me, definitivamente. Voltei a ler. Escrevo, de vez em quando. Estou a escrever para o NaNoWriMo, mas muito pouco. Adoro as minhas colegas de casa, mas estou a ir-me a baixo, injustificadamente. Quero estar sempre onde não estou. Em casa, quero estar em Coimbra. Em Coimbra, quero estar em casa. Na praia, quero estar bem longe dali. Quero dormir o tempo todo. Para não pensar nas promessas de nunca mais me magoar. Para não pensar na vontade infinita e assoladora de parar já. Para não pensar que não há sentido em continuar. Tenho o Freddie e o Freddie vai morrer em breve, sabe-se lá quando. A mamã diz que estou a ficar como a minha prima e é quase verdade. Sabe-se lá se não é verdade mesmo - só que de maneiras diferentes. Sabe-se lá porque sou tão parva.
Sinto que me cortam as pernas cada vez que quero viver os meus sonhos com alguém. Não é que não o possa fazer sozinha. Mas quero muito mais partilhada. Quero entardeceres de outono com o Freddie.

Rapaz da bicicleta I

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Há um banco de jardim, velho, inclinado, junto à ponte. A bicicleta não cai do braço, no rio já é pouca a água, não é só de ser verão, também o rio se cansa, também o rio se morre. No início, há apenas espaço vazio. Então, começa ele, aquilo das mães é verdade. E muito ficou por dizer. Acha-las monstros, todas. Todas não, há sempre quem fuja à regra, mas nem tudo que não seja premeditado é desculpável. És muito dura para com ela, odeia-la. Não, amo-a, só que também não lhe perdoo. Devias aprender. Não. Ficam segundos em calma. Foi uma infância difícil. E que infância não é, se perguntas se me batiam, se me faziam trabalhar, se não me davam amor, se passei fome, se passei frio, se tive traumas, a tudo responderia não. Então. Esquecemos facilmente do quão difícil é ser criança, é tão fácil chorar, é tão fácil ter medo do absurdo, é tão fácil recear, a crueldade inocente dos adultos. Não achas que seja a altura em que somos mais felizes. Nunca somos, apenas achamos que sim, porque logo o esquecemos, aliás, o próprio conceito de felicidade é absurdo. Explica-te, por favor. Não sei, ao certo, no fundo felicidade é um estado tão inalcançável quanto a perfeição. Ninguém é perfeito. Ou ninguém perdoa as faltas dos outros mas desculpa, inevitavelmente, todas as suas. Já o pôs a sorrir com o trocadilho. Suponho que sim. Não seria tão radical quanto tu, não quer dizer que a perfeição exista, apenas que é efémera, se é que sabemos realmente o que é, é um estado, um momento, cristalino, onde tudo existe em harmonia e que se quebra no segundo seguinte. E aplicas o mesmo à felicidade. Essa contradiz-se a si própria, sabes, por intuição deve estar interligada com a perfeição, a tua satisfação pessoal depende do grau de perfeição do momento. Hum, estou a seguir. E a felicidade teria uma resposta mais ou menos positiva, como um riso, não. Acho que sim. Então pensa num momento verdadeiramente perfeito, que sintas toda essa harmonia cristalina, por mais curto que seja. Imagino. Consegues rir. Rir. Sentes-te mais inclinado às gargalhadas ou às lágrimas. Agora que falas nisso. Ou seja, a felicidade exclui-se a si própria. Ou a perfeição não seja felicidade. Consegues dizê-lo sinceramente. Não sei, tenho de pensar, mas não tem de ser a única fonte. Dá exemplos. Alcançar algo que se deseja, talvez, aquela alegria. Que parece durar para sempre. Sim. Mas nunca dura, nunca é permanente. Podes ter tudo quanto queiras. E nunca ser feliz. Desejar não alimenta a felicidade, mas a vontade de viver. Então, que sentiste quando eu parei a bicicleta e vim falar contigo. Incredulidade. Só. Bom, pelo meu raciocínio, vontade de viver. E felicidade. Talvez, um pequeno esgar. Como um momento perfeito. Só em sonhos imaginado. Mas desejado. Sim. E não te apeteceu sorrir, por dentro. Não. Não me mintas. Agora que penso nisso, os sorrisos só vêm depois, naquele momento é só aquilo. Lágrimas. Por dentro, como dizes. De alegria. De felicidade. Não é o mesmo. Não. Então que é alegria. Pensar que te vou ver amanhã.

Livro do Inferno - As Cores

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As cores.
Misturam-se, fundem-se, confundidas em manchas difusas, de castanho, de breu, de vermelho, talvez de verde muito, muito morto. Das paredes agrestes, do chão rude. Ela vai, enquanto caminham as pessoas. Esses espectros magoam de os olhar. Fantasmas não falam, não murmuram, talvez rumurejem para si mesmos, sem, porém, se darem. Ela vai, em passos, olhando em volta. Eles assomam à janela, medonhos, caras sem cara, secas, apenas para regressar ao interior. Sabem-se os próprios passos, só ela não sabe os que lhe pertencem.
A fome rói-lhe as entranhas. Comida a há. Suspiros abatidos aos cantos, dos que devoram o bife do prato. Os ovos enfrascados, remexidos até ao sumo. Não é que falte a comida, falta-lhe a ela.
Passos dos que sabem para onde têm de ir, não ela. Olha em volta, procurando recordar-se de algo que lhe remói a mente de há muito, muito tempo, sem saber o que é. As Galerias têm escuro apesar da luz. Têm calor, apesar do néon e da infinidade. Os corredores começam, acabam, terminam, desbocam em salões de figuras e silhuetas. As figuras são pessoas. As silhuetas são coisas.
A fome que a domina, os dentes que apodrecem.
Algures num canto há-de haver comida.
E por que não aventurar-se por outro corredor escuro, se todos são iguais e em todos há fantasmas.
Uma porta. Outra. Uma perante outra. Há que decidir-se. Pelo círculo ou pelo triângulo. De qualquer modo, são os dois o mesmo. Acaba onde começa. Matematicamente, perfeitos. Há que decidir entre um ou outro. Escolhe a porta à direita. Um bafo nauseabundo vem a seu encontro no momento em que se esvai pela curta fresta que delimita a porta e o limiar. O interior - ou exterior, da perspectiva dependendo - arde como as entranhas da própria terra: e instantâneamente ela compreende que ali não há comida. Talvez na porta à esquerda. De um passo atrás, puxa a maçaneta: e um cheiro semelhante, um vapor da mesma textura, sombras da mesma consistência vêm a seu encontro. Como portas paralelas darem para o mesmo simétrico mundo.
Já não se lembra porque aqui veio, aqui, ao mundo. Não se lembra de nascer, como se, desde todo o sempre, houvesse vivido nas galerias. Mas tem os dentes podres, pelo que se decide a uma das portas. Dos tubos exala o fumo, do chão, das paredes. Bacias marmóreas, donde escorre água. Passa-lhe as mãos. Em frente, um espelho; creme para os dentes. A água ferve. Enche os dentes em creme. Tem de se lavar nos lavabos públicos, porque não tem mais onde ir. Enconcha as mãos e recolhe líquido à boca. Espera e deita fora. As bacias, mármore; o chão, mámore; o branco, verde, em lodo. Regressará. Mas não ali, pois lavabos os há em cada corredor escuro. Não sabe como o sabe, mas sabe. Está certa da sua própria verdade.
Por agora, retirar-se-à, com a cadência da névoa ardente.

Livro do Inferno - Morte da Morte

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Mar haveria... mar...
Porém, costa aquela de um imenso, imerso, infinito corredor. Outras dessas colossais Galerias sem nome. Mar onde? Mar o quê? Mar, seco, agora, só palavra desidratada. Mar: muito, grande quantidade. Mar de calor, mar de corredores interligados, cavernas artificiais, forjadas na pedra. Como tantas palavras mortas, mar. Mortas, céu.
Céu: tecto, luz. Abóbada sem fim, pululada de luzes a todo o comprimento. Toda a extensão de galerias, corredores, céu, e céu tecto e céu luzes. Palavra morta, como tantas.
Mas não há palavra mais mora: que morte, morrer: morto.
Falar.
Falar também lhe parece morto, enquanto atravessa, em passo lento, as galerias infinitas. Pessoas, como fantasmas. Só.
Memória.
Não é que se esqueça das coisas, mas não há nada para recordar. Galerias, luzes, néon, corredores, fantasmas. Caminhar. Saber onde está: não sabe. Saber quem é: não sabe. E, depois, ecoam-lhe estas palavras soltas na memória, mar, céu, morte, outras, mas ela não se consegue lembrar do que significam, a que sabem. Sentir, nada. Sonhar, dormir, nada. Tudo confusão, como que um vidro sujo ou embaciado, que deixou ver e já não deixa. Comer. Tem fome.

Desde que se lembra, tem fome. Desde que se lembra, nunca comeu.
Decerto se lembraria se tivesse comido. Sim, de certeza. Talvez…

O Livro do Inferno - O Pobre Diabo

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As escarpas abriam numa clareira circular. O céu sangrava todo o vermelho. Do outro lado, uma caverna negra, com o fim a cair de vista, como uma grande boca de um peixe emergente, colossal.
Sentado, resguardando a entrada, uma aterradora figura, de olhos atentos, postos nela. Sentiu-se a paralisar. Talvez devesse voltar atrás, mas nem ao menos era capaz de pensar. Nenhum músculo respondia. O ar tinha fugido. O coração não parava, magoava como facas cravadas no peito.
Quis acordar. Aquele pesadelo macabro tinha de terminar. Oh, mas, para seu terror, sabia-se bem consciente. Nada podia ser mais real. Tomou coragem. A jornada fora imensa, não podia deixar-se naquele impasse, pois a besta não parecia fazer nada, limitando-se a observar. Engoliu em seco.
Um primeiro passo em frente.
Diabo seja! - berrou a criatura, fazendo-a saltar em sobressalto. Que raio és tu?
Permaneceu sem articular palavra.
Não esperava que um som minimamente humano saísse das entranhas de tão inconcebível ser. Os olhos que a fitavam, agora, carregados de inquisições.
A medo, começou.
Eu vim até aqui. Para vir morrer, pensou. Para vir morrer, disse em murmúrio.
O quê? replicou a criatura. Tens de dizer isso mais alto, porra!
Ela fez-se repetir, um pouco mais audível. Ele respondeu com cara de troça.
Anda até aqui, chamou-a com o braço. Que não entendo um corno do que dizes!
A medo, cautelosamente, avançou. Avançou até olhar, nos olhos, a besta. Foi então que reparou que este era mais baixo que ela.
Desembucha de lá.
Vim para morrer.
O medonhinho franziu o olhar.
Argh! Bah.
Lançou-lhe um esgar de nojo.
Mas será que ninguém me deixa em paz? Primeiro lá de dentro, agora do raio daqui de fora!
Ela estranhou-lhe a linguagem. Sim, era grosseiro.
De onde já se viu um ser divino tão grosseiro. Apontou-lhe a boca de baleia encovada.
Sabes que é aquilo?
O inferno?, perguntou-se, em voz alta.
A besta deu pequenos passos, de um lado para o outro.
Inferno, purgatório, submundo, o que lhe quiseres chamar. É terra de ninguém, to garanto. Quem morre, é para ali que vai. Naturalmente, põe alguém de guarda, porque aqueles danados querem voltar à vida. Onde já se viu isto? É o Diabo, o Bicho, o bobo da corte, a troça de todos que se escolhe. Estou cá, desde sempre, impedindo os tolos de voltar. Vivos e mortos no mesmo mundo! Separo-os aqui. E agora chegas-me tu, a quereres entrar. Saem uns, entram outros. Lotação esgotada, aguarde, por favor! Bah. Ao menos aqui nem há música. Aqui estou eu, para todos rirem. Do cornudo, sem maneiras.
Dizem as lendas que o Diabo é maldoso. Que causa o mal no mundo.
O mal? Já não basta ser porteiro, agora sou o mal? Achas que sou segurança de lá de baixo? Achas que não te vou deixar entrar? Qual quê! Todos os vivos seguros, comigo aqui. Protejo este mundo, assim é que é! Sem mim, eram almas penadas a vingar por todo o lado. E só espaço para essa gente toda? Ali em baixo há todo o espaço que possas imaginar! Aqui não, já mal podemos connosco, olha o que iria ser do mundo sem mim!
Dizem os mitos que o Diabo é o imperador dos Infernos, o supremo soberano.
O quê?
E isto di-lo com voz de grande espanto. Depois, contorce-se para trás numa gargalhada, meia risada, meia grunhida.
Tanta fama! Proveito, qu'é dele? Mas digo-te uma coisa. Poucas vezes estive ali abaixo e não guardo saudades. Ser rei naquilo não era reinar, era ser escravo! Lá em baixo estão todos mortos. Ah ah, eu rei! Bem bom, talvez pudesse ter descanso. Em vez de porteiro do casebre fúnebre.
Faz uma pausa para a olhar, de cima a baixo. Franze as sobrancelhas.
Com que então queres morrer, hum?
Assente. Sim, senhor.
E como descobriste o caminho para aqui?
Um mapa, responde ela. Um mapa, num anúncio de jornal. Folheio o jornal e ali está. Como morrer em cinco passos, Guia para a travessia do Vale dos Infernos.
Os tempos, Diabo!, os tempos! Já não me bastam os que passam a morte a querer viver, agora terei filinha a compasso de espera, todos para falar com o Diabo!, entrevistas com o Diabo!, 24 horas na vida do Diabo!, fora os parvalhões que não querem viver. Não o sabias ter feito com um veneno ou uma corda, como antigamente?
Ela desvia o olhar. Não quero deixar vestígios de mim. Não quero que nada fique para trás, nenhuma prova, nenhum corpo. Quero ser uma vaga memória na mente daqueles com que me cruzei. Parou para respirar. Quero que elas se perguntem se eu existi realmente ou fui apenas sonho ou imaginação, até que me esqueçam.
Tá bom, 'tá bom, já percebi, não digas mais nada. Sabes, deixa-me curioso esse artigo de jornal
Anúncio, interrompe ela.
Anúncio, pronto. Intriga-me, porque és a primeira da eternidade a aparecer aqui.
Agora, a nossa personagem vai ser um pouco maldosa para com o diabo e dizer-lhe algumas palavras de mau gosto. Nós, alheios, vamos ouvir, tentando compreender. Eles os dois entendem-se, isso é que interessa para a história, mas nós, aqui deste lado de fora, podemos ficar algo confusos. Aí ficam as palavras, de mau tom, que de mau tom só o sei serem, porque o Diabo se ressente e responde algo que não responderia a todos, ela diz
Por certo a sua mulher, ele responde com um olhar de poucos amigos, algo desconcentrado, e com o fraseado,
Cautela miúda, só se entra uma vez, dali não se sai, se a Morte é certa, porque não esperar?
Esperando, já há muito, responde-lhe assim: Porquê esperar?

Não há nada de bom lá em baixo.

Só vim para morrer.

Não encontras mais portas aqui. Só guardo para fora.
A entrada da caverna parece coberta com um véu negro, onde nem os vislumbres da vermelhidão do céu chegam. Talvez se devesse despedir, mas não sabe de quem nem do quê. Do Diabo, da clareira morta?
Só vim para morrer. Debruça-se nas portas do inferno, perante toda a escuridão. Só vim para morrer, ou assim espera que seja.

O Livro do Inferno - Nos Portões do Inferno

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Um segredo. Montas, altas, como ondas. Precipícios cor de uma laranja sangrenta. Um segredo, esse que caminha por entre os escombros. Sabemos e vemos, dando passos inseguros. Estacando, por vezes. Hesitante, outras. Confiante quando apressa. É um cabelo escuro. Ela está pronta, mas nem sempre avança. Tem arrepios. A certeza não consegue esfumar o medo. Um segredo. Ali, não há quem a detenha.
Tenho-te em passo passadiço, no passeio enfadonhado dos negados ao mundo. Já esperas a morte atrás de cada escarpa. Um vulto esquelético, um sorriso que não sorri. Esperas frio. Tenho-te ao meu ritmo, passo após passo. Esperas dor. Doença. Crueldade.
Não se apercebe da caminhada, por vezes, absorvida nos próprios pensamentos. O céu torna-se um vermelho cada vez mais vivo. Como se o sol se estivesse a pôr e a noite não mais chegasse. Não há plantas. Nem o mero vestígio de verde. Um tímido musgo, um feto. As escarpas ladeiam o desfiladeiro. Sem pedras. Sem imperfeições. Não pode ver para lá dos desvios.
Aqueles caminhos, pensa, são cruelmente labirínticos. Agarra-se com força ao papel, cheio de vincos, amachucado, que traz consigo desde ainda antes dos Jardins desérticos que atravessa.
Da vida injusta. Cruel.
Caminha ao fim, sem saber quando o fim irá chegar. Caminha ao sabor de si mesma, aterrada. Sabe bem porquê. Sabe que não há meia volta a dar. Todos os passos são em frente, os dela dados, os dela pensados. Inclinam-se as encostas, em seu redor, ora vira à esquerda, ora à direita, sem vislumbrar desfecho a tanta perambulação.
Tenho-te em minha lei e, apesar disso, no caminho certo. Irás chegar onde tens de chegar, confio-te essa conversa. Passeia-te, frágil, com os teus receios. Falta menos de nada.
Os Portões estão ao virar da esquina.
Sim, a escrita gasta não mente. As letras impressas indicam-lhe o passeio, guiando-lhe os passos. Sim, já está na última linha, as palavras ditam-lhe para continuar. Está no fim.
Perante si, a figura escura, que tanto receava.

Mundo de todos iguais (humildade zero)

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Quase nos queimam vivos se damos a nossa pouco humilde mas sincera opinião. Frequentemente me dizem: "Já imaginaste o que seria do mundo se fossemos todos iguais?". Na verdade, somos todos praticamente iguais - aliás, alguém que apareça diferente é rapidamente alienado. Os mecanismos de tortura social são activados. Imagino um mundo de pessoas todas iguais: e vejo cidades repletas de arranha-céus, vejo salas e cozinhas e quartos e casas de banho, vejo as famílias reunidas no sofá, à televisão. Por isso, dando uma outra volta à questão: imagino que já o seja. Não faço parte desse mundo precisamente por ser diferente. A entrada é-me vedada. Um mundo repleto de pessoas que aguardam as instruções: programas na televisão para verem, revistas de moda que lhes dizem que vestir, prateleiras de hipermercados que decidem o que hão-de comer, estações de rádio que ditam as músicas que se devem ouvir - e estaríamos, ainda, no princípio desta lista de instruções, do manual de viver e conviver. Se fossem pessoas como tu, o cenário seria ainda mais cruel que a realidade.

Porém, se, acaso, fossem todos como eu. Vejo um mundo como uma espécie de paraíso. Vejo músicos e cientistas, físicos, engenheiros, matemáticos, violinistas, pintores, escritores, pensadores. Vejo-nos a criar algo livre de preconceitos. Vejo-nos a construir algo com gosto. Vejo a cultura a ser mais que meros massivos: a crescer, evoluir, edificar, grandiosa, construtiva, humana. Homens que beijam mulheres que beijam mulheres que beijam homens que beijam homens. Vejo amor, bondade, criatividade. O modo sublime como eclipsar-se-iam todos os defeitos: qual truque de magia!

Pseudo-grito-por-ajuda (ficção #2)

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Já escrevi tantas cartas de suicídio que lhes perdi a conta. Desta vez, porém, não vou cair na hipocrisia de desculpar toda a gente. Não vou dizer à minha mãe que a culpa não é dela. Oh, sim, porque a culpa é tua, mãe. É tua, pai. Avós, primos, tios, de toda a família. A culpa é dos caixas de supermercado e dos fabricantes de rolhas. Das apresentadoras de programas de entretenimento familiar, das actrizes das novelas rascas da televisão. Dos catálogos da LaRedoute, das músicas sem música que passam na rádio, dos exames nacionais, dos médicos, dos relojoeiros, dos banqueiros, dos romances baratos, dos feridos de guerra, das empregadas de limpeza. A culpa é dos técnicos de manutenção de piscinas. De quem nos faz uma geração mais estúpida, a cada dia. Das gerações anteriores, por terem tantos problemazinhos. Dos padres, dos polícias, dos encenadores. Das faculdades.

Já escrevi tantas destas que me sinto afogada. Tantas vezes voltei atrás, por remorsos. Pedi desculpas, absolvi-vos do crime.

Aos modelos de perfeição dirijo esta responsabilidade. Como nos tapam os olhos. Compremos mais. Tenhamos tudo. O mundo. Sejamos felizes. Aos modelos atribuo tudo. Ao medo da dor e da morte. E como nos tentam proteger da realidade com sorrisinhos de plástico, como tudo o que existe, atrás das câmaras. Sejamos lindos. A culpa é das preocupações fúteis em manter as unhas arranjadas, simétricas, com o verniz delineado. Dos cremes para a pele brilhante e hidratada, dos anúncios que o proclamam como essencial, como qualidade de vida.

Estou farta do receio da morte. Do prolongamento da vida, para podermos apodrecer, cada vez mais sozinhos, cada vez menos capazes, cada vez mais dependentes, ao apodrecer do mundo. De anúncios, até nos noticiários, em quanto vai o jackpot do Euromilhões? Farta do que nos ensinam na escola, com professores frustrados, para depois aprendermos a fazer uma porcaria qualquer na universidade, para nos atirarem à cara que não existiam tais comodidades nos anos que passaram, para arranjarmos um emprego, para chegarmos a casa, ao fim do dia, cansados e fartos. Para aprendermos a ser professores frustrados ou incompetentes de outra área qualquer. Para o ponto alto da nossa vida ser jantar à frente da televisão, cada dia. Para o ponto alto da nossa vida ser o fim de semana, quando não sabemos o que fazer com tanto tempo livre, acabando por não fazer nada e chegar ao fim, achando que passou tão depressa. Vamos criar filhos, como quem cria ilusões e desilusões. Estou farta de Natais sem significado, de Páscoas celebradas como dias importantes - ainda se fossem! - de vizinhos e falsas amizades, falsos sorrisos, peúgas compradas à pressa para aniversário, para demonstrar o quanto gostamos uns dos outros.

À minha mãe, por querer de mim a perfeição que eu não quero. Por querer o melhor para mim que não quero. Por esperar que viva para sempre. Por ver em mim quem não sou. Por me amar, incondicionalmente, quando preciso de ser amada pela pessoa que sou.

Não quero ser escrava de uma sociedade. Não quero ter medo. Não quero seguir modelos. Quero ser livre de um modo como nunca fui. Não ter nada, porque chegamos a este mundo sem nada. Só depois nos impõem uma família, um lar, uma vida. Quero cortar laços e não amar ninguém. Não quero ser especial. Não quero andar bem vestida, não quero ter cabelo bem cortado, não quero saber das feridas, dos hematomas, das cicatrizes. Não quero esconder.

Ao viver, sinto-me um bocado como a minha vizinha. Vou contar-vos da minha vizinha, para o caso de não saberem. Ela acorda, trata das tarefas domésticas. Depois, senta-se todo o santo dia no baloiço da varanda e fica a ver as pessoas que passam e a falar com elas. Trata das flores, por vezes vai dar umas voltas. Para passar nos mesmos sítios e ver as mesmas pessoas. Por vezes, vai até países estrangeiros. Para ver coisas diferentes, numa espécie de orgia mental.

Um dia, essa senhora vai morrer e vai para debaixo de terra. E rapidamente será esquecida. Basta a extinção desta geração. Esquecer pessoas mortas é muito fácil.

Ao viver, sinto-me num baloiço de varanda. É verdade que o mundo se vai modificando e transformando, mas vejo-o como o passar dos dias, no calendário. No final, é tudo tão insignificante.

Poderia partir em busca de mim mesma, mas não acredito que haja nada. Quanto mais nos procuramos, mais infelicidade encontramos. Quanto mais verdadeiros a nós mesmos, menos há que seguir.

Renunciar à vida é o meu último acto de fidelidade a mim mesma. Despedaçar o corpo que me foi dado. Roubar-lhe toda a beleza, abandoná-lo. Sem música, filmes, livros, sem mais nada mas eu, seguir na última aventura.

Bem hajam, odeio-vos.

Dizer-te (ficção)

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Tu devias ter morrido nos meus braços. E não longe, no voo de um sexto andar de uma cidade distante.
Lembras-te de quando ficámos sozinhas no museu e passámos lá a noite? Quantas pessoas passaram a noite fechadas num museu? E não estávamos sozinhas: eu tinha-te a ti e tu tinhas-me a mim.
Tu devias ter caído a meus braços e não no asfalto duro ou na calçada suja.
Como naquele dia na praia, de mãos dadas, o mar rugindo, de mãos dadas, tu querias as ondas, eu queria beijar-te, querias que o mar te engolisse, queria salvar-te.
Tu devias ter esperado por mim. Mas não esperaste.
E assim vejo, a amiga que fui. Deste-me tudo que numa amizade tão forte poderia querer. Deste-me mais do que imaginei ser possível no mundo. E eu, que te dei de volta.
Devias saber que eu te amava. Deves, tens de saber que te amo.
Eu fui miserável para ti, mas amei-te sempre.
Tu sabias, certamente sabias. Pelo modo como te abracei, no meio de toda a gente. Pelo modo como te dei o meu casaco para não teres frio.
Tu devias ter-me dito. Porque tu sabes que eu compreenderia. Sem sentir o que sentias, sem ter passado o que passaste. Sabes que compreenderia.
E então eu haveria de apanhar o último autocarro e de correr, de subir as escadas a correr, para um último abraço, para um último beijo, um último olhar, um último sorriso. Dizer-te, amo-te, serás sempre a minha melhor amiga.
Por fim, deixar-te-ia ir, sem me veres chorar. Haveria de correr escadas abaixo, haveria de me deitar a teu lado, no chão, no teu sangue e chorar o teu crânio quebrado. Haveria de te abraçar e não querer largar, quando as ambulâncias chegassem. Haveria de sentir o teu corpo, rígido, frio.
Tu devias ter morrido nos meus braços. Deveriam ter-me levado numa confusão, já quase nem pessoa, a casa, deveriam ter falado com os meus pais. Quando as pessoas me vissem, desconfiariam sempre de mim. Porque não fiz nada, perguntar-se-iam. E eu deveria ser levada a casa com o teu caderno no bolso. E andar sempre com ele, como um guia e uma mensagem: tu amas-me e eu sou a tua melhor amiga.
Seria tudo diferente. Mas agora seria mais forte. E não teria deixado nada por dizer.
Amo-te.
Serás sempre a minha melhor amiga.

Conto a uma escritora

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Contar a história do que realmente aconteceu. Não houve escândalo, foi tudo o mais discreto possível, de qualquer modo, estava no início. Tu escreves bem, dissera-lhe a amiga. Os outros colegas leram e gostaram, alguns. Outros não, mas fizeram-se de fingidos, também passaram. Eventualmente, as páginas chegaram às mãos da professora de português. Tu escreves bem, e acrescentou-lhe agora a outra ladainha, porque não tentas publicar? Ela não ia dizer que não em frente a uma professora, baixou os olhos e corou, uma resposta tímida de agradecimento, mas sem sentido. Uma editora de segunda aceitou logo, claro, quem não aceita meia dúzia de trocos, seja pelo que for? Assim se viu saído o primeiro livro, também ele de olhos baixos, tímido, lá ao canto das prateleiras, sempre só. Sempre teve alguma saída, porque o que vai de boca em boca alguma coisa há-de levar, tantos aqueles que o compram e nem o chegam a ler, mas isso a ela nem lhe interessa, até fica feliz, continua a não dar pelo nome que se deu na capa, que raio disso é nome, claro que fica mais bonito ter um volume grosso nas mãos do que páginas perdidas rabiscadas a esferográfica ou tinta permanente, mas continua, lá dentro, uma pesada angústia a revolver-lhe as entranhas. No jantar, sagrado, dos domingos, reunia-se toda a família, eram os tios mais velhos, os primos quase licenciados, já formados na bebedeira, os tios mais novos e os primos de fraldas, que ainda não entendiam uma palavra que fosse dita, o avô na poltrona ao canto da cozinha, coisa mais estranha, uma poltrona em plena cozinha, enfim, os hábitos tomaram-se assim quando foi tempo de nos habituar, hoje se alguém tirasse a dita poltrona da cozinha, então sim, todos estranhariam, de não ver a poltrona, de não ver o avô, que é certo que o avô está onde estiver a poltrona, fumando cachimbo, que decerto estará onde o avô estiver, depois a avó que diz que o avô se casou com ela por gostar tanto da poltrona, mas depois também cora, porque recorda tudo o que já se passou naqueles almofadões e encosto acolchoado, numa cadeira tão grande dá para fazer muita coisa, que raio de pensamentos agora foi ter, anda de um lado para o outro, fingindo-se atarefada, é o modo, enfim, que tem de abafar os suspiros da nostalgia, tempos que foram há muito e não hão-de repetir-se nunca mais. Naquela cozinha, àquela mesa, onde cada vez mais são os pratos e os lugares e as pessoas, onde a cadeira de bebé nunca se chega a tirar, não porque o bebé não cresça, mas porque, dado o pulo, já lá vem outro, é o mal das famílias numerosas - mal ou bem, depende de cada um, para esta nossa tímida menina é mal, lá terá os seus motivos para não gostar da vida parida aos seus pés, naquela atmosfera sente-se a tensão, o orgulho, a senhora escritora, com dezassete anos apenas já tem um livro editado que está a ser um sucesso!, e já todos, bebés inclusive, têm um exemplar, mas, pois, os bebés não o lerão já, é para quando um dia compreenderem, aliás, ninguém admite, mas ninguém leu, ainda. Quando alguém tem um daqueles livros de capa laranja suave, letras castanhas e finas, nas mãos, dá-se-lhe um aperto, só de os ver, como se tivessem a alma dela nas mãos, não apenas um livro, se o abrem, então, em vez de se sentir liberta, incomoda-se, a alma é quase como o sexo, íntimo lugar onde mexer, não andamos por aí a apalpar o sexo uns aos outros, ainda temos respeito, mas que era feito dele quando lhe folheavam os livros e sorriam perante a mancha difusa de palavras, se nunca sequer lhe haviam sorrido antes, que era feito desse respeito, quando punham na boca as palavras, escritora, tão nova, onde estava tudo.
Mãe, não leias, mas não havia modo de a dissuadir, mãe dela tinha a obrigação primária de ler o que a filha escrevia, tanto mais editado!, e deu-lhe um beijo na fronte e afirmou que gostava muito dela, de tanto amor transbordante que o seu objecto se encolheu e resignou, de que valia tentar fazer a mãe perceber que não ia achar ali um conto de fadas, se ela até lhe emoldurara umas pinturas a marcadores, dos tempos do infantário, feias até à exaustão, e as pendurou na parede do corredor, ainda lá hoje devem estar. Mas logo nas primeiras páginas a mãe franziu o sobrolho e lembrou-se de que tinha trabalhos de casa para corrigir, desta feita ficou a filha aliviada, não era aquela a hora das suplicias - que seria do mundo se as mães conseguissem ver a alma aos filhos? Confiada a estes pensamentos, fugiu com o livro onde a mãe não o visse e não se lembrasse mais dele.
Chega em fim o fim dos exames, altura de baixar os óculos de sol da cabeleira para os olhos, calçar sandálias e um vestido mais leve, sair assim à rua festejar o verão que se avizinha. Já se passou muito tempo desde o primeiro livro, o próximo tem direito a apresentação ao público, dia vinte e cinco do mês que vem, com cinco ou seis pessoas da rádio e dos jornais, mais para a família e amigos - ora, ela não compreende porque há-de apresentar o livro novo à família e amigos, se é certo que são os primeiros a correr para ele e os últimos a perceber o que ele diz. E a mãe pergunta, o que vais levar, e a filha responde, oh, mãe, sei lá, falta mais de um mês, e achas muito?, quem o pergunta é a mãe, conhecendo-te como conheço, menina, precisas de bem mais tempo para te arranjares com duas peças decentes, sem pareceres um manhuço, é um dia como os outros, mãe, um dia como os outros!, exclama a mãe com surpresa, sim, não é nada, também não estou a pensar no que hei-de levar no dia vinte e três, nem mesmo no dia seis, que é muito mais perto, como podes dizer isso?, pergunta a mãe, de mãos na cara, trémulas, vai lá estar a imprensa!, e tu só te preocupas com o que os outros dizem, e tu nem te preocupas com nada!, não é bem assim, mãe, simplesmente não olho para as roupas como tu, pois não, e sabes porquê? porque estás gorda e nada te fica bem, se fosses elegante ias ver como gostavas de combinar as coisas como deve ser, mas fica palhaço à vontade, se gostas assim!
A isto a filha não responde nem ressente, já está habituada, conversas que começam da mesma maneira, acabam da mesma maneira, ao papel dela já o tem decorado, o guião diz que, com esta deixa, a mãe deve sair do cenário e a mãe sai, realmente, evidente que segue o mesmo guião, não se enganou nem trocou, como por vezes acontece, e andam as duas desentendidas por julgarem diferente a mesma coisa ou a mesma coisa por coisas diferentes.
Houve uma noite, um jantar de domingo, em roda da mesa, sem esquecer a poltrona nem o cachimbo, em que as emoções trouxeram até lágrimas de comoção, estando o televisor ligado, como era habitual, mas todos sabiam o que ia ser diferente, os bebés tiveram de ser forçados a silenciar o choro, pois todos ouviam atentamente o que o Professor Marcelo tinha a dizer, muitos ouvindo sem ouvir, porque só queriam ver, ver, então ali estava, um outro livro tímido, espreitando, o nome da família precedido por um feminino, o primeiro livro levado assim à televisão, a primeira vez que o Professor Marcelo se lhe referia, e lá estava ela, recebendo aplausos e abraços e lágrimas, enterrando-se no assento, como que o dia do aniversário tivesse chegado mais cedo, ali estavam todos a olhá-la e bater palmas, ela sem saber que fazer da cara, que fazer das mãos, ao menos antes podia fixar os olhos no bolo, nas velas, na chama, ali nem isso, tinha de se contentar com o lombo devorado. Apeteceu-lhe, também, chorar, mas afogada de tristeza.
Jovem escritora. Como tudo põe a cru, apesar de tão nova, tão pouco experiente, parece prever os males onde os há e não finge que não os vê. E as obras publicadas com que conta. Uma encruzilhada de histórias, para o público mais novato, chama-se Nahaia, nome mais estranho, depois uma colectânea de contos, desde meia página a meio livro, mas sempre chamados contos, o dos Pulsos está lá, qualquer outro também, se procurarmos. Um policial, estranho quebrar da corrente, mas também bizarro a seu modo, chama-se Culpa dos Inocentes, saiba-se porquê, talvez tenha sido outrora outra ideia de que depois se fez título, ainda um misto de comédia com outro mundo bizarro, As Ocorrências mais Estranhas e Extraordinárias da Vida de Edgar Perry, fiquemos com Edgar Perry, para abreviar, depois há aquele tenebroso Crónicas do Lodaçal, o das viagens de carro ao país, Desejo de Estrada, ou como se chama, e há ainda o que começa nos Portões do Inferno e não se sabe bem onde termina.
Agora a mãe quer ler. Tem de ler, é inevitável. Bate à porta do quarto da filha, diz, isto é acerca de mim?, a filha diz-lhe que não. Mãe só tens uma, por isso tem de ser acerca de mim. Essa não sou eu, responde-lhe a filha, fui eu que inventei uma e que inventei a outra. Inventaste de onde?, da minha cabeça. E sabes lá tu como são as outras mães?, por isso inventei. A mãe ajoelhou-se à beira da cama. Os olhos morriam em lágrimas, tu achas que sou assim?, perguntou entre soluços.
Tudo isto está a matar-me.
Voltei ao psiquiatra. Que vai ser hoje? Já nem me recordo da primeira razão, a minha mãe leva-me ao psiquiatra desde muito cedo, porque ele é uma espécie de amigo de infância. Que vai ser hoje? Já fui diagnosticada com depressões, fobias sociais, esquizofrenias, apetite compulsivo, já usaram todos os termos que conseguiram, dissecaram todos os meus sonhos e todos os meus textos. Os livros só fizeram pior. Agora, há material. Ele pega ao acaso numa frase de um livro e molda-a até chegar onde quer.
É verdade que fui encontrada dentro de um armário, a cheirar mal do egoísmo de me ter matado. São coisas que se fazem. Tinha a alma tão suja que já nem sabia como a haveria de limpar.

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Acho que estou a matar a minha mãe. Dia após dia. Em cada sorriso a menos. Em cada chamada mais curta. Em cada noite fora de casa. Em olhares distantes quando estou com ela. Em respostas carregadas de sarcasmo.
Morre por minha culpa, lentamente.

Q: porque não tens orgulho em ser portuguesa?

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A: Que fiz eu para ser portuguesa? Lutei durante anos pela minha obtenção de nacionalidade? Ou andei pelo mundo até decidir assentar neste lugar? Ou, ao nascer, resolvi que iria falar português como língua materna? Caramba, não. Nasci aqui. “Decantaram-me” aqui. Impuseram-me um país, uma língua, uma família, um estatuto social, depositaram expectativas e moldaram-me a essa imagem. Como posso ter orgulho numa coisa de que não sou culpada e para a qual não contribuí? O orgulho pela nação é a primeira coisa que os fascistas fazem celebrar e cultivar. É esse orgulho a primeira causa de intolerância. Esse orgulho primitivo que sabemos lá se acaso merece existir. É a primeira causa de conflitos. E, depois, já se sabe, de guerra. Por isso eu não tenho orgulho em ser portuguesa. Não tomo créditos pelo que outras pessoas fizeram. Não tenho orgulho em ser um ser humano. Nem sequer tenho muito orgulho em estudar na cidade onde nasci, porque me limitei a seguir o que esperavam de mim. Ser portuguesa é uma etiqueta, impressa debaixo da minha pele.

Cansada

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A vida sabia-lhe a insípido. Diziam-lhe o que fazer e ela fazia. Trabalhava, como uma pequena formiga que não sobressaía. Ela não queria sobressair, de todo. Mas queria ser ela própria. Queria dar de si ao mundo - e não do que todo o ser humano é capaz de fazer. Era por isso que não tinha família. Depois de ser criada, vira-se obrigada a fugir. Não suportava as paredes daquele ninho de incompreensão, expectativas e hipocrisia. No entanto, sair de casa só lhe serviu para descobrir que a sociedade era um ninho em ponto grande. Em outros países, continuava o mesmo sentimento à beira-rio de conformismo. Não dizia a ninguém, mas sentia-se sozinha ao sentar-se com outros no sofá a ver televisão. Ninguém vivia. Apenas aceitavam. Existiam. E tal não era viver. Diziam-lhe que trabalhasse e ela trabalhava. Diziam-lhe que comesse e ela comia. Diziam-lhe que passasse os sábados e os domingos a arrumar o apartamento e lavar a casa de banho e ver televisão - e ela tudo fazia. No ecrã, rostos sorridentes. Sorria com eles. Porém, esse sorriso era uma máscara, tal como as dos actores do ecrã. Nada havia de verdadeiro. Apenas ordens não ditas. E sinais de assentimento, vagos, lentos, imperceptíveis. Era como uma vida sem cores nem som. De que lhes valiam se não lhe diziam nada?