Amargura

Uma mancha que, por mais que a queiram ignorar, há-de destroçar-me, até desaparecer.

Num canto funesto dos meus sonhos, lá está ela. Oiço-a a soluçar, a suplicar, a pedir ajuda, e a sua dor torna-se na minha dor, os gritos não desaparecem e vêm comigo de casa para a escola para casa. Basta-me piscar os olhos, para ver a sua imagem, aquela menina, bem mais nova do que eu, atirada para o chão, como um trapo. Sei que foi vendida, pela família, por pouco mais de um euro, a um desses bordéis de onde ela nunca vai conseguir escapar. Sei, porque estes não são sonhos comuns, aparentam ser clarividências, visões, rasgos de revelação do que vai no mundo. A raiva, a dor, a angústia latejam, apertadas, no meu peito, e quem sou eu para sorrir perante a desgraça da pobre Radha? A crueldade de que alguém é capaz contra uma criança atormenta o meu coração. Subitamente, uma sombra abate-se, imensa e escura, naquele lugar de sofrimento, e a menina cala-se. Ela sabe e eu também sei quem é: a mulher gorda, dona do bordel. Traz mais um dos clientes, um porco javardo imundo asqueroso que não merece sequer tocar em Radha. Para a velha gorda, porém, as prioridades avaliam-se pelo dinheiro que lhe oferecem pela pequena. Com que dinheiro se compra a dignidade de uma menina? O homem usa e abusa dela, ela nada diz, mas pensa, com dor, pesar, angústia, tristeza, medo e raiva e as lágrimas, que não pode confessar, sou eu que as choro, como se uma força maior que eu me ajudasse a sobreviver a tanto mal... pois eu tenho de a chorar. É o único apoio que consigo transmitir. Se ela pudesse, ao menos, saber que, no mundo, alguém chora por ela...
A toda a hora, vejo aquela imagem, aquele vídeo. Nunca, nem por um segundo, me esqueço de Radha, da dor de Radha, comigo, aqui, tão confortável, e Radha, lá longe, na longínqua Índia. Vejo-a cada vez mais ao longe, mas, à volta dela, estão todas as meninas com menos de 18 anos, ilegais, daquele bordel, todas aquelas Radhas, presas, contra sua vontade, à volta da que eu conheço. E esta fica ainda mais longe e eu vejo, primeiro, todas as meninas de todos os bordéis da longínqua Índia, depois, todas as indianas menores que são forçadas a ser prostitutas, mesmo nos sítios mais horríveis. O grupo é inimaginável, a figura não desaparece dos meus olhos, mais abertos que nunca; já não tenho voz e não sei que força é essa que não me deixa morrer por toda a desgraça deste mundo. Mas o grupo cresce, ainda há mais, muito mais, para chocar o meu frágil coraçãozinho de lebre. Vejo todas as crianças que, na Índia, são exploradas, violadas, traficadas, vendidas, negociadas, escravizadas das mais brutais maneiras, e sofro violentamente. Claro que há mais, esta visão não pode ficar na Índia... Então, todos os meninos e todas as meninas de todo o mundo que de qualquer forma sofrem, que das mais variadas maneiras vêem os seus direitos violados emergem aos meus olhos. Vejo a guerra, a fome, a pobreza, a exploração, a destruição, a injustiça, mas vejo sem ver, porque, apesar de o ver, nada vejo, pois a verdade, o seu tormento, o seu medo, a sua fome, a sua angústia, só eles podem saber, não eu, um ser imbecil que nada sabe. Perante eles, só vejo que os meus caprichos são arrogantes e que a racionalidade do ser humano, de que tantos se orgulham, é a causa maior deste pesadelo.