Arrotar & Conversas à beira do abismo

Na manga trazemos o ventre mas não contamos. Escondemos. Na manga trazemos ideias clandestinas, espreitando. Escondemos, há polícias por todo o lado e todos os cantos, escondidos em busca da morte do pensamento. Na manga trazemos a vida mas fingimos também autómatos. Como os outros, disfarçados, escondidos. Na manga trazemos os nomes de todos e o segredo, aquele segredo de quem vai esmagar o arroteiro.
O arroteiro.
O Arroteiro.
O Arroteiro arrota ordens. Arrota exigências de submissão. O Arroteiro aloja-se em qualquer cérebro que queira, porque é um modo de pensar. Aloja-se e contra ele ninguém pode. A não ser quem pense para além do que o que lhe apresentam. E nós trazemos as ideias na manga e os escravos do Arroteiro que não nos vejam ou arrancar-nos-iam os olhos. E nós trazemos alguém e esse alguém é todos nós juntos e vem na manga.
É agora.
E eu não estou sozinha. Antes pensava que sim e com nervosismo espreitava pela manga ver se ainda repousava o pequeno. Dorme, dorme, pequenino. Pensava que estava até encontrar o génio, sob a forma de folhas debaixo da pedra tumular. Pensava que era a única viva até encontrar o gémeo, o meu irmão gémeo. Pensava que éramos os únicos até encontrar todos os outros e agora o segredo é nosso e o pequeno já não é só o meu, é o que ia em todos e de todos o melhor e o melhor é o melhor de todos e irá ser maior que o Arroteiro, porque é a força de todos nós que pensamos e todos juntos e conseguimos, mas temos de manter isto em segredo, senão chamam-nos loucos e saltam-nos e arrancam-nos os olhos e deleitam-se em puro prazer a devorá-los. Escondamos na manga o nosso segredo, longe da vista. Ninguém sabe nem desconfia, porque somos mais um, apenas.
Só que não somos mais um. Somos todos. E todos um apenas. Mas não mais um.
Somos o um que te vai destronar e destroçar.

Cuidado.
Cuidado para a manga não subir.

Cautela aí onde pões os pés.
Dá-me a mão, senão caio.
Desculpa.
Isso não importa agora. Apenas chegar ao fim.
Meu querido irmão, olha onde chegou a nossa família.
À beira do abismo, bem vejo.
E os outros que existiam caíram todos e sobrámos só nós contra o monstro arrotador, não foi?
Não olhes. Não olhes. Não chores.
A culpa não é deles, eles é que ganharam a inércia e a inércia é quase inata…
Pois não é deles.
Eu não quero cair.
Então não olhes para baixo.
Somos tantos e antes pensava que era só uma.
Tu sabias que éramos tantos, só não sabias que nos íamos encontrar.
Somos tantos e somos tão suficientes. E há neve.
Há neve e nuvens.
O mundo ainda é bonito, não é? A natureza não pensa e assim triunfa sempre.
Dá-me a mão, vais cair.
Queres sentar?
Tu queres?
Eu sento sozinha.
Eu sento contigo.
Eu amo-te.
Eu sei.
E, se nos pudéssemos ver, verdadeiramente, seriamos iguais, seriamos gémeos.
Somos gémeos. E eu amo-te, irmã da minha alma.
E à nossa família.
E à nossa família.
O Arroteiro é fúria.
E nós fúria contra ele.
E quem ganha?
O que vencer. Isto não é um conto de fadas.
Eu conheci-te, irmão, e conheci a nossa família. Eu ganhei. E tive ideias por isso também ganhei. Porque o Arroteiro quis uma sociedade desprovida delas.
Então, eu também ganhei. Ganhámos os dois. E ganhou toda a nossa família.
E o Arroteiro?
O Arroteiro perdeu quando quis escravos.
E as pessoas?
As pessoas perderam quando se deixaram cair.
Então somos nós os vencedores?
Somos nós.
Só nós?
Só nós.
E de que nos vale isso?
Nada vale, como a vida. Mas lava a alma.
E a alma vale tudo, certo?
Vale o fim e o início.
E nós estamos no fim?
O fim chegou, o Arroteiro está perto.
Então perdemos?
Nunca, maninha. Nunca perdemos. Nunca mais.
Somos os maiores.
Pois somos.
Somos tudo.
E o tudo está a chegar ao fim.
Somos o fim.
Somos o fim.
E depois?
Depois, um novo início.