Conto dos Livros Desconhecidos
Mãe Mãe
Nós divergimos porque eu posso ficar longos momentos a contemplar a lua, enquanto ela lhe deita um vislumbre e desvia o olhar. Nós divergimos porque eu tapo os ouvidos, cada vez que ela discorre sobre roupas e roupas e mais roupas, como se a conversa não me fastiasse, como se o interesse fosse mútuo. Nós divergimos porque não conseguimos ver os mesmos filmes. Ela vê os meus e diz que são muito tristes, eu vejo os dela e não consigo decifrar um pouco de originalidade ou um pensamento um pouco mais profundo. Claro que conseguimos ser parecidas e gosto que ela tenha alguma profundidade de pensamento, mas, por tantas vezes, as vontades dela vêm contra o suposto "amor incondicional" que tem por mim. E eu quero dizer-lhe, gosta de mim como sou, não como queres que seja!, mas sou a boneca dela e nada posso fazer.
Olho para a lua e sinto-me cósmica, sinto-me a orbitar, naquele espaço enorme, "pendurado" do outro lado da atmosfera, tão perto no universo, tão longe e tão visível, tão belo. A suspensão das nuvens, o espectro das cores do céu, não consigo evitar sentir-me aérea, as estrelas, o sol, não consigo evitar sentir-me cósmica.
Quando tu me falas em roupas, quando tu me mostras roupas, eu não sinto nada a não ser um vazio. Ok, sim, eu visto, estou quente, sobrevivo ao inverno. Não, mais não. Deixa o meu cabelo. Deixa-me roer as unhas. Deixa-me ter as sobrancelhas por arranjar. Não quero saber se fico bem de vestido ou não, não sou uma boneca, não sou uma peça de exposição, mãe, sou uma pessoa, mãe, não quero que as pessoas vejam, quero que as pessoas ouçam, apesar de não falar. Quero sentir-me infinita com elas, estelar como as constelações, natural como o vento. Não quero saber quem fez quando nem o quê, não quero saber do carro novo nem do carro velho, se me vens falar, fala-me de viagens de comboios, de passeios a pé, de grandes peregrinações a Santiago, de grandes viagens na estrada, sim, de carro, mas não do carro, a menos que o carro seja a tua casa.
Mãe, deixa-me fazer figuras infantis, hoje, na baixa, deixa-me pisar a pedra branca mas não a azul, deixa-me gritar de alegria ao ver uma das setas amarelas que segue para Norte, deixa-me andar pela beira dos passeios. Não sou uma boneca. Não sou uma obra de arte.
Eu não te conheço, tu não me conheces, vivemos longe, na mesma casa. Às vezes, estamos tão ligadas, até tu desconverares com essas tretas.
Já pensaste por que raio tenho de ir ao psiquiatra todos os meses? Já pensaste por que raio estou a tomar anti-porcarias e anti-doenças-mentais? Já pensaste por que raio às vezes grito, do nada, de medo, de fúria, de alegria, de tristeza?
Não sou a tua boneca, mãe. Vivemos em mundos diferentes.
With love,
me
Utopia
[Sonhos de Utopia, num jardim de infância]
Uma casa, afastada de tudo, num campo meio ao descampado, meio à orla da floresta. O meu sonho, é uma casa, uma casinha, sem vizinhos, sem excessos. Um jardim de ideias, jamais limpo dos musgos e das poeiras do inverno. Uma gota que passa, sem se lavar. Uma casinha, com o mais simples, esta casa adorável, onde as divisões se fundem e que uma vasta biblioteca preenche. Estamos no inverno, estamos no verão. Uma casa sem microondas, sem tostadeira, sem triturador, só uma casa, com meia dúzia de festas e afectos, carinhos a quem por lá passe, para ir ler um livro, ou para me ir ver a mim. O branco, no meio das madeiras, no meio das tílias. Os livros, o cheiro a livros. O meu sonho é uma cama no chão, rodeada de livros. Música.
Uma casa onde as coisas pequenas são aquelas que a tornam casa. Como caixas em lata e os segredos que nelas se escondem, como bilhetes de comboios que já nem existem, ou cartas, quando já não se escrevem cartas. Como malas de papelão, com cadeado, a fustigar a imaginação. Como estojos de canetas de aparo, de tinteiros, de lápis de desenho, a carvão, a grafite, a pastel, como tintas de aguarelas. Onde os cadernos se amontoam, com vergonha do que trazem escrito, eu com vergonha do que neles escrevo.
Uma casa onde o chá sabe a chá, onde a televisão não é mais que um mito longínquo, onde, de vez em quando, se ouve o bater do teclado de uma máquina de escrever, antes de se dar o sonoro fim de parágrafo:
PIM!
Uma casa, com, queiram ou não, um livro de visitas, como se fosse um albergue do caminho, onde se sabe que a concha é o símbolo do viajante. Sem urgências, só meditações contemplativas, enquanto o sol se põe, o lusco-fusco adorna, ou quando a noite batalha com a manhã, em preto e branco, ou quando fechamos os olhos e somos só nós.
Com flores a brotar de lâmpadas, porque a imaginação cresce em lugares criativos.
Que te deu hoje, Adriana, nunca te vi tão optimista! (parece que o frasco das alegrias resulta mesmo), e ouvir boa música também *
Mãe Coimbra, Guimarães Madrinha
Diários da Avó Velha
Ponto Final
25.11.2010
"Bom dia."
Uma mensagem no telemóvel. Um sussurro de passagem. Uma nota escrita ao canto de um jornal. Um aglomerado aleatório na sopa de letras. Duas simples palavras que podem ser vistas em qualquer lado, mudaram o mundo para sempre.
"Bom dia, são oito horas em Portugal continental e na Madeira, sete horas nos Açores." diz o locutor, a voz vagueando pelos recantos do carro estacionado. O homem suspira. O carro é roubado. O homem suspira. Liga o motor e volta para trás e deixa o carro no exacto sítio onde o havia encontrado. Sai e fecha a porta com um estrondo. Lá dentro, a voz do locutor de rádio continua a fazer-se soar. Quem se aproxime, há-de ouvi-lo a desejar uma boa viagem, se for o caso.
"Se hoje trabalha, não se atrase, faltam seis minutos para as oito em ponto."
"Bom dia."
O homem caminha, em passos largos. Caminha de mãos nos bolsos e pragueja. Está arrependido e envergonhado. Olha as pessoas e todos o olham de volta e todos o julgam. Faces repreensivas é tudo o que consegue ver. Os pássaros. Lá no alto. Pardais cantando os crimes de que é acusado, os melros debitam a sentença. Lá no alto. As aves de rapina, em círculos apertados, prontas a arrancarem-lhe os olhos a qualquer momento.
"Bom dia."
Em Portugal. Porquê em Portugal? Parecia um país completamente aleatório. O minúsculo jardim sujo do canto da Europa. O homem sabe que não deve caminhar de mãos nos bolsos nem em passadas largas e rápidas, como um fugitivo. O homem sabe como se comportar - mas não consegue. Há uma urgência incontrolável que lhe toma a caminhada.
Atravessa um sinal vermelho sem se aperceber. Não vem lá ninguém. Continua pelas ruas, está quase lá. Os passos não abrandam. As mãos insistem em casar com os bolsos. No ar sente-se o aroma fumegante do preparado do dia, das cantinas azuis. O passeio está limpo. Não há lixo. A calçada é branca, ainda mais que a camisa suada do homem. Ele desce a avenida principal. Passa pela biblioteca, pelo mercado. Por estátuas de gentes que nunca conheceu. Na torre do relógio, o ponteiro dos minutos dá um pequeno salto e aponta certeiramente o céu. Faz soar oito badaladas.
O homem chegou à estação. Traz um porta-moedas gasto no bolso de trás. Tudo, tudo, tudo errado. Dirige-se à bilheteira. Os comboios apitam e o homem está cada vez mais nervoso.
- Bom dia.
As palavras são para ele, directas e ditas em voz alta.
- Bom dia.
O homem quer fugir dali. Quer falar com uma máquina acerca do bilhete. As máquinas compreendem-no muito melhor e não chamam a polícia.
- Salamanca. Ida e volta.
Que desperdício. Ida e volta. Mas era o máximo que podia por não dar nas vistas.
Trança de Mãos Dadas