Chegada

O comboio pára, num último solavanco, agarremo-nos ao que pudermos.
Um livro ou outro que cai, uma velhota que, depois do esforço para se levantar, aterra de novo no assento.
Tento espreitar para a rua, mas a janela devolve-me a minha própria cara, aquela face retorcida que me segue por todas as superfícies espelhadas.
Meia dúzia de empurrões depois, estou às portas, de saída daquele, apesar de tudo, lugar confortável - é suposto sair depressa, parece que nos dão pontapés até o fazermos - num salto, porque é tremendamente mais divertido que descer os ridículos íngremes degraus, estou fora. Cheira a noite e a óleo. Cheira a borracha. Com sorte, cheira a serra e árvores, mas hoje não.

Uma vez mais, sou abandonada no apeadeiro, largada pela lagarta que com vagar se afasta. Com vagar, não, com muita pressa. Olho sempre para trás, vê-la partir deixa-me melancólica. Depois, sigo contra a torrente de pessoas: vão todas para outro lado, qualquer que seja, não é o meu. Eu vou sozinha. Fico sozinha.

É noite, agora. Sempre de noite. Sempre sozinha.

Sigo pelas ruas amargas. Não há passeio, sequer, só estrada, casas e linha. Os carros passam numa corrida desesperada. Não há luz, a não ser a de um ou outro candeeiro a avariar.

Vou ouvindo os meus passos, esperando que sejam os únicos que vá ouvir. Conto-os. Ou canto baixinho.

Sozinha, aconchegando o meu "livro do comboio" que não é livro do comboio coisa nenhuma, isso não é mais que um pretexto para o aconchegar contra mim, é o meu preferido.

Sou eu e ele, numa rua de fábricas abandonadas, tentando ignorar o que vejo. Aqueles olhos verdes que me seguem.
Imagino-os sempre verdes, ou qualquer outra cor que me faça estremecer em medo.

Acelero o passo.
Sozinha, de noite.

E com passados de outras vidas a atormentarem-me.
"Podia ter sido eu. Podia ter sido eu."
E os olhos verdes vão-me seguindo.

Querem fazer uma ideia?
Eu vejo cabeças de dragão em osgas.
Imaginem, então, o que verei na sombra da presença de um monstro de pessoa.

Nunca há passeio.
E as ruas estreitam e a luz é cada vez menos.

E o frio que tanto adoro, torna-se desconfortável, prende os movimentos.
Tento ignorar tudo e observo a minha sombra cintilante. Na maior parte do tempo, não há sombra.

Vou sempre só, mas não estou só.
Tenho os olhos verdes que tanto odeio, tenho o medo e a angústia. Tenho uma torrente de pensamentos e de recordações inventadas, que não são minhas mas serão de alguém. De alguém tão próximo...

Fecho os olhos.
Nestes dias, não cheira a nada. Nem a lavado, nem a serra, nem a puro, nem a arvoredo.

Comigo vêm os cheiros do comboio, à falta de outros: a tosse, a rugas e pele a sair, a mofo, a velho.

Já nem há animais a cumprimentar.
Recolheram ao conforto.

Está tudo molhado e cinzento, excepto que não é cinzento porque é de noite.
É tudo negro ou cor de lâmpada quase a avariar.

É tudo gotejante e não há uma única estrela para amostra.

Dou os últimos passos.
Em casa, por fim.

Estes dez minutos a pé cansam mais que o resto do dia.


E é tudo tão feio...

1 críticas: (+add yours?)

lerrnst disse...

o mundo não foi feito para que vejas as estrelas todos os dias, mas mesmo quando não as vês, elas estão lá a brilhar para ti...