Regresso a EP

O homem da recepção é amável, mais amável do que o habitual na recepção os hotéis. Lembrado que já aqui estivemos há dois anos, previne-nos que no número 216 se ouve o gotejar de algum cano mal amanhado, no 323 não passa um dia que não aconteça uma desgraça e que todos os restantes quartos estão ocupados.
-Temos, também, um psiquiatra, no 3º andar, que costuma receber os seus pacientes no hotel. Não é permitido, mas ninguém o sabe ou fingem não saber.
Depois, acrescentou num tom mais baixo:
-Consta que recebe doentes mentais.
O meu marido franziu o sobrolho naquele gesto tão característico de desaprovação. O homem da recepção acrescentou, ainda, um sorriso.
-Como muda o mundo em dois anos...
-Ficamos com o 323.-disse, recordando que queria, precisamente, curar as minhas enxaquecas e que um gotejar pela noite fora só poderia agravar a situação.
Subimos pelo elevador que, pelos vistos, já estava consertado. De algum modo, a bagagem chegou antes de nós.
O meu marido, que não é mesmo meu marido, só a fingir, para enganarmos os polícias da imigração, o meu marido encolheu-se ao entrar no quarto 323. Era efectivamente diferente do de haviam dois anos.
As paredes estavam pintadas de gatos, gatos pretos, mas não como em pinturas normais, mas grotescos, medonhos, tentando cativar a presa ou cravar-lhe as unhas. Dei comigo a adorá-los.
Nisto, um sentimento familiar, meio nostalgico, de curiosidade atrevida apoderou-se de mim e deixei o meu marido que não é meu marido a bocejar naquele quarto salpicado de gatos.
Fora o homem da recepção que mo dissera, sem o outro o ouvir. Então foi para lá que me dirigi. Não estaria interessada em psiquiatras, ora, claro que não.
Cruzei-me com ele no corredor. Quem mais poderia ser?
"O meu sorriso é demasiado disforme, os meus gestos são demasiado abertos, a minha presença demasiada."
Quem mais poderia ser?
Larguei, naquele momento, toda a minha vida fútil de enxaquecas e nada mais que um sério absolutamente doloroso, rígido e absurdo, para dar o braço ao meu companheiro de toda a vida.
Fui, de braço dado com Edgar Perry, fazer chover no quarto dos gatos.
Abençoado homem da recepção, por saber ler corações.